O piano de John Lennon era um obstáculo. Naquelas cassetes, gravadas no seu apartamento em Nova Iorque na segunda metade da década de 70, podiam ouvir-se demos, trechos e apontamentos de canções que nunca foram lançadas oficialmente. Nos estúdios de Sussex ressoava a sua voz, inconfundível, uma espécie de artefacto arqueológico-musical que ressuscitava, nem que fosse por uns minutos, o músico assassinado em 1980. Mas havia algo no caminho. Algo que estava a mais.

“Sempre que queríamos um bocadinho mais da voz do John, o piano entrava em cena e encobria a paisagem”, diz em voz-off Paul McCartney, no mini-documentário lançado esta quarta-feira a propósito de Now and Then, anunciada no final de outubro e lançada esta quinta-feira como “a última canção dos Beatles” – ou, para ser mais exato, a última canção para a qual todos os membros da banda (os sobreviventes e os que já partiram) registaram a sua contribuição.

Em 1995, McCartney, em conjunto com os colegas George Harrison e Ringo Starr, tinham decidido juntar-se e gravar um par de novos temas a partir das cassetes de Lennon, a propósito do lançamento de The Beatles Anthology, um projeto multimédia de celebração do legado dos “Fab Four”. Duas das músicas, Free as a Bird e Real Love, foram finalizadas e lançadas como parte da coletânea de álbuns incluída naquele projeto. A terceira, Now and Then, provou ser demasiado desafiante do ponto de vista tecnológico, e acabou por ser “suspensa” durante mais de 25 anos – até agora.

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Para que a música pudesse, finalmente, vir a público, foram precisos anos de avanços tecnológicos – anos esses que também foram de perda para o quarteto britânico, e que atrasaram esta última empreitada. Em 2001, Harrison morreu de cancro no pulmão. “Quando perdemos o George, tirou-nos o chão… precisámos de quase um quarto de século, à espera do momento certo para trabalharmos na Now and Then outra vez”, explica McCartney no mesmo documentário.

O momento e o colaborador certos surgiram há cerca de dois anos. À margem da produção de The Beatles – Get Back, o massivo projeto de restauro de Peter Jackson, realizador da trilogia de O Senhor dos Anéis, foram concebidas uma série de novas tecnologias, com o objetivo de retratar, com a maior fidelidade e qualidade audiovisual possível, as semanas de gravação de Let it Be, o derradeiro álbum de estúdio do quarteto.

Uma dessas tecnologias foi o Machine Learning Processed Audio Software, ou “MAL”, um programa de inteligência artificial capaz de isolar e separar os diferentes componentes de um ficheiro de áudio. “A Máquina MAL do Peter Jackson consegue separar o que quer que seja”, diz Ringo Starr. Now and Then voltava a estar em cima da mesa.

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McCartney nunca tinha desistido da ideia de terminar a demo de Lennon. Em 2012, num documentário sobre o músico e produtor Jeff Lynne (que trabalhou com os três Beatles nas sessões de Sussex em 1995), o músico expressou vontade de retomar o projeto. “Tínhamos começado a trabalhar numa outra música, mas o George não estava para aí virado. Continua por aí, por isso vou acabá-la com o Jeff, um dia destes”.

As objeções levantadas por Harrison tinham sobretudo a ver com a má qualidade da gravação, aliada à referida presença constante do piano. Questões que, graças à tecnologia desenvolvida pela equipa de Peter Jackson, podiam agora ser resolvidas. “Na mistura, conseguimos agora pegar na voz do John sem levar o piano atrás, que tinha sido sempre um dos problemas. Agora podíamos fazer a mistura e montar uma gravação a sério”, diz McCartney.

De imediato, o músico começou a compor uma melodia no baixo que pudesse acompanhar os versos do refrão de Lennon. Às contribuições deste, juntaram-se as de Ringo Starr. “Achei uma ideia fantástica. [O Paul] colocou o baixo, enviou-me os ficheiros, e eu acrescentei a bateria”, explicou. Now and Then começava a ganhar forma.

O próximo passo era decidir o arranjo do tema. McCartney optou por uma secção de orquestra com cordas, modelada em secções semelhantes de clássicos da banda como Strawberry Fields ou Eleanor Rigby. A tarefa ficou a cargo do produtor Giles Martin – filho, justamente, do produtor de sempre da banda, George Martin.

O processo foi complexo, não só devido à especificidade necessária ao arranjo, cuja sonoridade deveria remeter para “os velhos tempos” da banda, mas porque o secretismo do projeto ditou que a própria orquestra não podia saber o que estava a tocar. “Tínhamos de pôr a música nas estantes de partitura para que os músicos a pudessem tocar, mas não lhes podíamos dizer que era uma nova música dos Beatles”, explicou Paul McCartney. A solução encontrada passou por fingir que a gravação se destinava a uma composição a solo do músico. “Foi tudo feito um bocadinho pela calada”, disse.

À versão original de Lennon, o seu parceiro de escrita poliu alguns dos versos e acrescentou outros, por forma a dar a conferir a Now and Then a clareza e coesão temática possível a uma música feita “a conta gotas”. Ao refrão lânguido e com destinatário vago de Lennon (And, now and then / If we must start again / Well, we will know for sure / That I will love you), McCartney acrescentou um par de versos chave, evocativos da história e do final prematuro dos Beatles e das amizades que se perderam e se recuperaram: I want you to be there for me / Always to return to me (em português: quero que estejas sempre lá para mim / Que voltes sempre para mim).

A última peça do puzzle foi a contribuição de Harrison. O guitarrista tinha gravado algumas ideias em 1995, e as gravações estavam guardadas desde então — ideias que nunca chegou a concluir. A solução passou, mais uma vez, por recuperar as demos do passado e terminá-las agora. Tecnicamente, a guitarra que se ouve no novo tema é tocada por Paul McCartney, mas tem como base a composição de Harrison (que pode ainda ser ouvido, ele próprio, a tocar em segundo plano no resto do tema). “O que acabei a fazer foi gravar um solo slide de guitarra no estilo do George. No fundo, era um tributo”, explicou.

O resultado final, todo ele um tributo, pode agora, por fim, ser ouvido. Now and Then, que em português quer dizer literalmente “agora e antes”, marca muito provavelmente o ponto final nas gravações originais dos Beatles. É uma despedida apropriada: o resultado final de décadas de gravações, bloqueios e avanços tecnológicos, funciona como uma celebração carregada de melancolia do legado de uma das maiores bandas de todos os tempos – uma recordação do que se fez, mas também daquilo que ficou por fazer.