Ao longo dos últimos trinta anos, o Clube do Colecionador dos CTT editou bons livros alusivos a séries temáticas das suas estampilhas postais, num elenco de títulos sempre reportado à portugalidade ou à presença de Portugal no mundo globalizado que este pequeno país ajudou a criar, mobilizando para tal os especialistas mais reconhecidos nas respetivas áreas — aliás as mais diversas, como falcoaria, ciência náutica, vinhas velhas, festas e romarias, indústria têxtil, arqueologia, escultura, cinema, arte do jardim, tertúlias em cafés, calçada portuguesa, gastronomia, ourivesaria arcaica, museus centenários, ferrovia, rios, heranças multiculturais, banda desenhada e muitas outras — e designers gráficos de comprovado mérito, como José Brandão, por exemplo.

Hoje, as tiragens baixaram a metade e os volumes perderam o texto em língua inglesa que os notabilizava, mas a busca de temas curiosos e de evidente interesse mantém-se intacta e concretiza-se em títulos como esta Viagem Botânica por Portugal de Luís Mendonça de Carvalho, também autor de As Plantas e os Portugueses, publicado em 2019 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e de que este álbum é claramente um sucedâneo ilustrado, diria mesmo ricamente ilustrado e com especial requinte e saber. A primeira fotografia é a da fadista Amália Rodrigues, “símbolo nacional”, com um dos seus muitos vestidos floridos, junto a um transbordante ramo de rosas, ela que um dia disse não saber o motivo de gostar tanto de flores (e ver-se a consultar um psicanalista por causa disso), enquanto o texto introdutório discorre sobre as migrações planetárias de plantas na sua relação com a formação e a história do nosso país, e o autor lembra que duas vergônteas de louro passaram em 1911 a constar da nova bandeira, a revolução de 1974 foi chamada “dos cravos” e em 2011 o parlamento instituiu o sobreiro como “árvore nacional” (p. 10) e a nossa toponímia “é riquíssima em nomes que aludem às plantas” (p. 11). No Monumento aos Restauradores, em Lisboa, a Vitória ergue a coroa da Glória (loureiro) e a palma do Triunfo (palmeira), p. 156. Parece, ainda assim, bastante pouco, diante do muito e bom que adiante se irá encontrar.

Esta viagem pela etnobotânica associada à arte e aos ritos populares começa pela distante ilha do Corvo, onde se distinguem engenhosas fechaduras em cedro-do-mato (atualmente em viva recuperação por novos artesãos) e ainda se fazem capachos para a soleira das casas com as folhas secas do dragoeiro (em São Miguel usam brácteas de milho), para depois encontrar no Faial xailes bordados a palha de trigo ou centeio sobre tule e, sobretudo, as minuciosas esculturas em miolo de figueira, de assombroso virtuosismo técnico e artístico, destacando a grande exposição no Museu da Horta de trabalhos feitos por Euclides Silveira da Rosa (1910-78). Em São Jorge, a Primavera é celebrada com bolos de véspera “carimbados” com pequenos chavões modelados no mesmo cedro-do-mato ou em faia-das-ilhas, em que são gravados motivos florais alusivos e a coroa do Divino Espírito Santo (p. 17). Em São Miguel, muito mais que bordados em dois tons de azul sobre linho, inspirados nos padrões e cores de velhas louças chinesas, impressionam os coloridos tapetes de flores que se estendem no longo percurso da procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres no quinto domingo depois da Páscoa.


Título: “Viagem Botânica por Portugal”
Autor: Luís Mendonça de Carvalho
Editor: CTT: Clube do Coleccionador dos Correios
Design: AF Atelier
Páginas: 138

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Na Madeira há chapéus de palmito, apitos em sabugueiro, rebuçados de funcho e, claro, bolo de mel de cana-de-acúçar, valiosos bordados em linha de algodão e linho, cestos e mobiliário em vime obtido do caule do salgueiro (“com o incremento do turismo durante o século XIX, tornaram-se populares em toda a Europa”; p. 29), além dum vinho também apreciado internacionalmente e de madeiras de excelente qualidade, como o barbusano e o vinhático, dito mogno-das-ilhas. O teto de alfarge na sé catedral do Funchal é uma belíssima obra de arte em zimbro e pinheiro que justifica torcicolos, mas o arquipélago distingue-se ainda hoje pelos telhados de colmo nas casas tradicionais de Santa (foto, p. 33) e por peças decorativas em embutidos de várias madeiras da floresta nativa e de árvores de fruto. A madeira de pau-branco aplicada nas solas dos carros de cesto de vime que do Monte descem até ao Livramento, no Funchal, foi também usada para o fabrico de prensas, fusos e conchas de varas nos lagares madeirenses (p. 30). As jovens saloias do Espírito Santo, da Ribeira Brava, que de cestas de vime no braço distribuem pétalas de rosa pelo caminho, têm folhas de alegra-campo penduradas pela roupa, e tão distintivas como os fios de ouro de ancestral tradição minhota que trazem ao pescoço.

Já o Algarve, de “solos e microclimas muito variáveis” (p. 34) e plantas introduzidas que hoje a identificam, como a alfarrobeira, a laranjeira, a amendoeira e a figueira, é “a única região do país onde podemos encontrar a única palmeira nativa da flora portuguesa, a conhecida palmeira-das-vassouras” (p. 38), cujas folhas em empreita são usadas em chapéus e muitos objetos de uso doméstico, como vassouras, cestos, alcofas e abanos. Cadeias de tesoura em madeira de amieiro, lembrando modelos romanos, são um ex-líbris de Monchique, mas o que mais distingue a região é a arte da cestaria em cana, que à sua maneira Jane Birkin celebrizou (há mesmo uma foto da cantora falecida em julho deste ano). No Baixo Alentejo, a cortiça extraída dos sobreiros é utilizada em muitos objetos de uso corrente, como o tarro, para guardar em temperatura constante o leite das ordenhas ou a refeição dos trabalhadores rurais, mas acredito que historiadores de “design popular” apreciem particularmente as dedeiras em cana, para proteção manual dos ceifeiros (foto p. 48). As belas estevas-do-ládano têm aplicações na perfumaria contemporânea, e os pinheiros-manos do litoral alentejano foram bem aproveitados na gastronomia, das alcomonias de Melides, Santo André e Santa Cruz até às pinhoadas de Alcácer do Sal. Celebra-se o Dia da Espiga como em todo o país, e em Barrancos há uma Romaria das Flores, na segunda-feira após a Pascoela.

Do Campo Branco alentejano à Serra da Estrela, azinheiras e sobreiros deram a pastores ociosos matéria-prima para a modelação de artefactos os mais variados, como as colheres de namorados ou de casamento, ricamente decoradas com motivos geométricos ou vegetalistas, também presentes em cadeiras e aparadores pintados a cores vivas em Évora e no Redondo, nas patuscas “meias graves” da Serra d’Ossa (foto p. 61), em lã ou algodão, ou nos exuberantes xailes de Nisa, de remota inspiração italo-renascentista (p. 65). Cirandas em caules de salgueiro e colmos de cana, cestos de salgueiro, esteiras de tábua e empalhamento de bunho para cadeiras e bancos são outras aplicações desse contínuo aproveitamento dos materiais botânicos que a terra dá, como os bordados em casca de castanha feitos em Marvão (foto p. 64).

As caixas de cartão ou de madeira das célebres ameixas de Elvas foram durante muito tempo enfeitadas com papel recortado, outra arte popular de excelência, que desde finais do século XIX tem máxima expressão nas festividades populares de Campo Maior, em que uma centena de ruas são ornamentadas de flores e frutos de papel. Em Abrantes, onde seiras com fibra de esparto eram usadas em prensas dos lagazes de azeite, realiza-se um Festival do Crisântemo a 9 de setembro de cada ano, mas no Ribatejo é sem dúvida o Grande Cortejo dos Tabuleiros em Tomar que “ganha a palma”. Mendonça de Carvalho também chama a atenção para os bordados vegetalistas no traje dos cavaleiros tauromáquicos ou no ponto-cruz de sacos de pão e babeiros típicos de Glória de Ribatejo (Salvaterra de Magos) — e ainda estamos longe de Castelo Branco!!

“Em Idanha-a-Nova, durante a Semana Santa, o alecrim cobre o chão de diversas igrejas, incluindo o altar-mor e as capas laterais; em algumas freguesias, é queimado no adro da igreja para purificar o local e afastar os espíritos malignos que possam assombrar a povoação” (p. 84). Em Barroca do Zêzere (Fundão), no Domingo de Ramos decorre a Procissão das Pinhas, um desfile cantado e rezado, com ramos de pinheiro acesos como archotes, que entra na aldeia e finalmente os deposita numa enorme fogueira no adro da igreja (foto, p. 91). Em Monsanto, um grande pote de flores, levado à cabeça por uma mulher até à muralha do castelo, é por ela lançado borda fora — em memória da resistência dos locais que, há séculos, fizeram o mesmo a “um vitelo gordo, a última provisão alimentar que tinham, para tentar enganar as tropas que [os] cercavam”, o que conseguiram (p. 86).

Na Serra de Montemuro, produzia-se cestaria de breza, com palha de centeio e “casca” das amoras-silvestres, como o belo cesto para sal da p. 92, ou aquele outro da p. 101 (a que hoje é dada uma função estritamente decorativa), os agricultores dispunham de resistentes chapéus de aba larga, em palha de centeio, bons para o sol do verão e a chuva do inverno, enquanto lavradores e pastores usavam tamancos com sola de amieiro, madeira resistente, fácil de esculpir e comum na região. São também de amieiro as máscaras do “carnaval” de Lazarim (Lamego), mas o paulito das danças de Miranda do Douro são de freixo (o jogo do pau, de Fafe, recorre a varas de lódão, mais resistente), as castanholas são de madeira de torga (urze-vermelha), usada na gaita-de-foles. Em Rio de Onor (Bragança), a vida comunitária era registada numa vara de choupo-negro com um metro de comprido, a Vara da Justiça, “símbolo de autoridade e de união”.

Capotes para pastores e agricultores da Terra Fria eram feitos com caules de junco entrançados e enfeixados, sobrepostos com corda, e o burel de lã (hoje, em franca recuperação económica e recriação artística) servia para capas resistentes às baixas temperaturas. “Camisas” de milho preencheram milhares de colchões. Bugalhos de carvalho — ingrediente da tinta de escrever até ao final do século XIX — serviram “até há pouco” (p. 111) para criar pequenos brinquedos, colares em trajes tradicionais ou pregar partidas carnavalescas a vizinhos. Em Forjães (Esposende), fazem-se as bem conhecidas alfocas e cestas de junco-marítimo, com teares próprios. Em São Mamede do Coronado (Trofa), santeiros usam madeira de cedro-do-brasil e buxo. Beiriz (Póvoa do Varzim) é muito conhecida pelos seus tapetes de lã, urdidos há mais de um século com juta com nós próprios e desenhos vegetalistas.

Para a construção dos velhos barcos rabelos do rio Douro, em estaleiros nas praias fluviais a montante do Porto, era utilizada madeira local, de pinheiro-bravo, castanheiro ou carvalho, com cordame em sisal ou cânhamo e velame em linho (p. 132). Carqueja vinha em barcaças para depois ser dramaticamente carregada por mulheres até aos fornos de padarias e lareiras da cidade do Porto. Palitos de Lorvão, de início feitos com loureiro, passaram a ser de salgueiro e de choupo, “árvores muito comuns nas margens dos cursos de água que percorrem a região” (p. 139). Nas aldeias de Góis, fazem-se máscaras de cortiça extraída de sobreiros das redondezas ou reaproveitada de velhos cortiços.

E, como sabemos, esta permanente adequação aos materiais de proximidade e a sua lição — tão presentes, de resto, na própria arquitectura dita vernacular — foram já quase inteiramente implodidas pela vida moderna e pela produção industrial centralizada, derrubando vivas singularidades regionais que enriquecem e distinguem qualquer país pequeno.

Das muitas festividades populares com desfiles relacionados com as Festas do  Espírito Santo, uma dos mais inesperadas será o Ramo de Pinhões, em Soure, que adorna o andor com 300 mil pinhões unidos por fio de linha, e enrolados numa estrutura de metal encimada pela Pomba branca (foto p. 142), para uma procissão que demora meses a preparar. O Baile da Pinha, ou Pinhata, realiza-se na Quaresma em alguns pontos da Estremadura. Em junho, além dos Santos Populares, temos a Queima da Alcachofra, “um ritual divinatório relacionado com o casamento, que se pratica por volta da meia-noite, quando as fogueiras se começam a apagar” (p. 152). E no Porto, pelo São João, o alho-porro e os ramos de erva-cidreira serviram para um bom divertimento catártico e erótico, “expressão contemporânea de antigos rituais de fertilidade e culto ao Sol” (p. 152). Valha-nos isso!