João Gonzalez e Bruno Caetano, o realizador e o produtor de “Ice Merchants” – primeiro filme português da história a ser nomeado a um Óscar — guardam 2023 em boa memória. Começaram o ano com a notícia da nomeação e em junho foram convidados, em conjunto com Mónica Santos e João Vicente, para integrarem a Academia de Artes Cinematográficas, juntando-se a um pequeno lote de portugueses em que se incluem nomes como Patrícia Vasconcelos, Abi Feijó ou Regina Pessoa.

Com as nomeações deste ano prestes a serem divulgadas (o anúncio acontece esta terça-feira, 23 de janeiro), a dupla ajuda a desvendar um pouco do funcionamento da máquina de Hollywood.

Um membro da Academia “tem acesso a eventos privados, sessões de networking, exibições especiais de filmes um pouco por todo o mundo e, claro, pode votar para os Óscares — são as principais regalias que temos”, resume João Gonzalez.

Da qualificação à nomeação: nem todos os filmes chegam aos olhos de quem vota

A nomeação de um filme é um processo longo que começa muito antes do momento do anúncio: primeiro, é preciso conseguir uma qualificação. Ou seja, nem todas as obras são consideradas pelos membros votantes da Academia, muitas ficam pelo caminho. Para lá chegar, existem dois caminhos principais e aqui o poderio financeiro também entra nas contas.

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A via mais tradicional está ligada aos ciclos de cinema que decorrem ao longo do ano, um pouco por todo o mundo. Consideram-se qualificados os filmes que ganharem um prémio num grande festival internacional. Ice Merchants, por exemplo, foi galardoado em 9 das maiores competições cinematográficas do mundo, entre eles o prémio Annie – o máximo para uma curta-metragem na história dos Óscares.

O outro caminho beneficia acima de tudo as grandes produções. Um filme fica também qualificado se estiver em exibição durante o período de uma semana numa sala em Los Angeles. Para isso, basta aos grandes estúdios alugarem estes espaços para obterem o comprovativo de que precisam. Para João Gonzalez, esta opção tem uma consequência: “acabam por se qualificar filmes que, normalmente, não são os mais fortes”.

Ainda assim, só o dinheiro não chega para inscrever o nome de uma obra na grande noite dos Óscares. “Chegar à long list é uma coisa, o mais difícil é passar à fase seguinte”, avisa Bruno Caetano.

A seleção dos nomeados – um processo de muitas horas, com a ajuda de uma plataforma “premium”

Concluído o processo de qualificação, é altura de nova pré-seleção, mas desta vez apenas em 10 das 24 categorias (Documentário, Curta-metragem de Documentário, Filme Internacional, Maquilhagem e Penteado, Banda-Sonora, Canção Original, Curta-metragem de Animação, Curta-metragem de Imagem Real, Som e Efeitos Visuais). Os filmes que avançam para as short lists variam entre os 10 e os 15. Nas restantes categorias, não são feitas listas curtas e os membros da Academia têm de escolher diretamente entre todos os filmes qualificados. Este ano, Portugal volta a ter um candidato nesta fase de pré-seleção: Um Caroço de Abacate, de Ary Zara, está entre os 15 possíveis nomeados ao Óscar de Melhor Curta-Metragem de Imagem Real.

Curta portuguesa “Um Caroço de Abacate” de Ary Zara é candidata às nomeações para os Óscares

É nesta altura que os membros da Academia têm mais trabalho. “Foram muitas semanas a ver muitos filmes”, diz Bruno Caetano. De um lote de cerca de 90 qualificados para a categoria de Curta-Metragem de Animação, viu talvez uns 60. Na categoria de Animação, entre 37 possíveis, assistiu a 25. Muitas das opções, confessa, não mereceram atenção total:

Em certos casos, parei a visualização passado 5 ou 6 minutos porque percebi que não tinham nem qualidade técnica nem narrativa para merecer o meu voto”.

A organização dos Óscares é complexa e nem todos os elementos votam nas mesmas secções. Assim, cada categoria é composta por membros especialistas nessa área em concreto. João Gonzalez e Bruno Caetano destacaram-se no mundo da Animação, por isso, é nessa área que têm poder de voto.

Mas como são feitas as visualizações e como têm os membros votantes acesso a todos os filmes disponíveis? Longe vão os tempos em que eram enviadas cassetes VHS — e mais tarde DVDs — para os elementos da Academia. A resposta, afinal, é mais simples do que parece. Existe uma plataforma de streaming privada (ou “premium”, como lhe prefere chamar João Gonzalez) destinada apenas a quem vota para os Óscares. Para fazer essa seleção, é preciso cumprir um único requisito: ver 50% dos filmes. Se este parâmetro não for cumprido, os membros não são considerados aptos para a votação.

Na plataforma, estão disponíveis obras que ainda não chegaram a qualquer sala no mundo ou que acabaram de sair dos festivais em que estiveram a rodar. Para quem vota, como Bruno Caetano, esta é também uma ferramenta útil para “descobrir novas formas de fazer cinema, de sítios diferentes do globo”, apenas acessíveis desta maneira. “Conhecer novos autores, de lugares como a China ou a América do Sul, e poder fazê-lo no conforto da minha sala, tem sido um prazer incrível”.

Só depois de percorrido um caminho de vários meses se chega finalmente aos 5 nomeados para cada categoria (10, no caso do maior galardão – Melhor Filme). Os votos são enviados através de um outro site privado da Academia, onde é tratada a maior parte das questões burocráticas da organização.

Não é fácil votar. Os 3, 4 primeiros são mais simples de escolher, há sempre obras que se destacam, mas depois ficamos na dúvida — será que gostei mais deste? Que filmes estou a deixar de fora?”, desabafa Bruno Caetano. “É um processo que exige uma longa conversa interior”, continua.

Depois de serem conhecidos os nomeados, no dia 23 de janeiro (terça-feira), será altura de cumprir uma última responsabilidade: escolher os vencedores. Tal como na política ou em muitos outros setores da sociedade, também na Academia o voto é secreto. “As regras proíbem qualquer conversa sobre o assunto”, revela João Gonzalez. A lei não impede, no entanto, trocas de impressões entre os vários membros. Bruno e João são amigos de longa data e trabalham juntos na COLA Animation, produtora em que ambos colaboram. “Falámos várias vezes para perceber o que tínhamos de fazer a seguir”, assume Bruno Caetano, que admite ainda ter de tirar dúvidas com outros colegas: “Eu e a Mónica [Santos, também realizadora] tivemos de fazer vários telefonemas, às vezes só para perceber como funcionava a plataforma de streaming”.

COLA Animation: a cooperativa de produção portuguesa de “Ice Merchants” que ambiciona vencer o Óscar e que não conhece fronteiras

Ser membro da Academia: uma tarefa para a vida num espaço cada vez mais diversificado

A 96.ª edição dos Óscares, que acontece a 10 de março, será a segunda em que Bruno Caetano e João Gonzalez irão marcar presença, mas a primeira em que participam como jurados – tarefa que, sublinham, não termina por aqui. “Está a ser uma experiência muito agradável. Só deixo de fazer parte da Academia se quiser sair ou, Deus queira que não, se fizer alguma coisa que me faça perder o lugar”, adianta Caetano.

João Gonzalez – que trabalha neste momento num novo projeto, ainda em pré-produção — assume que a falta de tempo não o permitiu ser o “membro mais ativo”, mas que não existe qualquer tipo de penalização para “faltas de presença”. “O meu envolvimento vai depender da carga de trabalho em cada ano”, prevê.

O realizador deixa ainda uma nota de apreço à organização de que agora faz parte: “Nota-se um esforço para diversificar ao máximo as pessoas que fazem parte da Academia. Diria que uma das razões para termos sido convidados foi a falta de portugueses na lista, acho que tiveram isso em conta”. A ideia é partilhada pelo parceiro de produção em Ice Merchants, que indica ainda que essa mudança tem também consequências nos filmes que acabam por ser selecionados. “Começamos a ter uma representação internacional muito superior, não só norte-americana, que pode fazer com que filmes com um pendor mais autoral também tenham o seu lugar”, conta.