A sala de conferências de imprensa da Berlinale, no hotel Hyatt, estava à pinha. Jornalistas amontavam-se e mostravam um certo nervosismo — mesmo os mais experientes. Para as 16h45 estava marcada uma conversa que não duraria mais de quarenta minutos com um senhor que defende, com unhas e dentes, que a lasanha de sua mãe, apesar de existirem muitos lugares do mundo, “é mesmo a melhor”. Vive para o cinema, acredita que a sétima arte está longe de morrer e tem poucas dúvidas de que os melhores trinta segundos viveu-os quando gravou um anúncio para a Armani.

Trejeitos italianos à moda de Nova Iorque, as longas sobrancelhas e fato azul sem gravata. Mal entrou na sala, tornou-se no centro de todas as atenções, mesmo que a altura não tenha permitido aos jornalistas mais afastados de recolher vídeos e fotografias. Vai receber o Urso Honorário em Berlim, encontrou-se com o Papa Francisco e concorre aos Óscares pela sua vigésima sétima longa-metragem, Assassinos da Lua das Flores. Martin Scorsese, de 81 anos, o realizador mais nomeado de sempre, que ultrapassou outro colosso de Hollywood, Steven Spielberg, e que veio até Berlim fazer uma pequena palestra, que pode ser entendida como um ato de resistência generoso, ou um statetment político bem humorado, de alguém com muita vontade de não parar.

[veja aqui o vídeo completo da conferência de imprensa de Martin Scorsese na Berlinale:]

A agenda de Scorsese por estes dias tem estado bem preenchida. Com várias ações de promoção pelo mundo com o seu western épico, sobre o massacre da comunidade indígena Osage, protagonizado por Lily Gladstone, Robert de Niro e Leonardo Dicaprio, o realizador que se tem dedicado à corrupção dos homens (The Departed, Gangues de Nova Iorque, Taxi Driver, Casino, Tudo Bons Rapazes, O Irlandês), ainda teve tempo de ir ao encontro do Papa Francisco no Vaticano, para trocarem alguns dedos de conversa sobre a “essência do cristianismo”. Ou será a procura por uma bênção para o regresso à figura de Jesus (A Última Tentação de Cristo, de 1988, parece não o ter satisfeito), através da adaptação do livro A Life of Jesus, escrito por  Shūsaku Endō, lançado em 1973? Mas, sendo uma conferência de imprensa, sobre próximos projetos, Scorsese quis logo fechar o jogo. Não havia aqui notícia, para desilusão dos jornalistas. “Não sei que filme terei, quero algo provocador, mas que também possa entreter”.

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Entretenimento não faltou neste fim de tarde em Berlim. Até em excesso, mesmo que um bem humorado Scorsese estivesse pronto para qualquer tipo de pergunta. O tempo era curto e a oportunidade de questionar o realizador era diminuta. É certo que esta quarta-feira, Scorsese estará noutro evento aberto ao público, através da compra de bilhete, e receberá o galardão berlinense, mas para o hotel Hyatt estavam reservadas outras surpresas. Tanto do realizador de Touro Enraivecido (1980), como de quem estava na plateia. Um  jovem búlgaro, que tem sido presença assídua nestas conversas, vinha com o momento bem preparado. Chateado com o seu “país corrupto” que o tem impedido, com apenas 21 anos, de ter acesso a muito cinema, resolveu fazer uma imitação de uma cena de Jack Nicholson em The Departed, quando Frank Costello diz à sua grupeta de mauzões: “Não te rias, isto não é um reality show“. A pergunta ficou no vazio, o tempo era cada vez mais curto, mas Scorsese lá se riu, mostrou-se cheio de vitalidade e disponível.

Ainda assim, o momento trágico-cómico serviu para se sentir a influência de alguém que tem retratado o lado mais enraivecido, podre e maldoso dos Estados Unidos da América. Bem puxaram por ele, mas Scorsese não se conseguiu definir numa palavra — ficou-se pelo “mistério” — nem se deixou levar pelo seu próprio ego, quando outra jornalista o desafiou a falar sobre o impacto que tem tido no universo cinematográfico. “Quando era novo tinha mais ego. Agora, e acho mesmo que é algo que não se perde, prefiro falar em ambição.” Nega, por isso, todo esse peso, garantindo que está sempre a ser desafiado, nem que seja por ele próprio, em cada projeto. “Senti-me muito mais livre quando fiz o Rei da Comédia (1982). Tinha dado tudo com o Touro Enraivecido (1980) e com o Taxi Driver (1976). Mais livre para me questionar, para saber o que fazer com cada frame, com cada personagem. É bom libertarmo-nos, é quando aprendemos a lidar connosco.”

Já não restam grandes dúvidas de que Scorsese tem sabido lidar consigo próprio. Desde que começou a fazer os primeiros filmes estudantis, ditando a história que o primeiro mais a sério foi o Who’s That Knocking At My Door. Mais tarde, integrou um grupo nos anos 70 de verdadeiros cinéfilos fora-da-lei, com Brian de Palma, Jay Cox, Steven Spielberg ou Francis Ford Coppola, gente em busca da “mística” dos filmes. Foi assim inscrevendo rapidamente o nome na história do cinema a partir de um grupo influente e, depois, em nome próprio. E não é por, hoje em dia, com 81 anos, saber que tem cada vez menos tempo, que se deixa de preocupar com “o estado a que a sétima arte chegou”.

O que diz tem sempre impacto nos média. Ainda que, fora de Berlim, e noutras alturas, tenha criticado fortemente a indústria de Hollywood, especialmente quando a conversa pende para a hegemonia dos filmes de super-heróis de grandes orçamentos, Scorsese mostrou-se, esta terça-feira, um verdadeiro crente nas várias formas e nos vários olhares que existem dentro do pequeno e do grande ecrã. “Não, o cinema não está morto. A grande tarefa implica encontrar “a voz individual”, onde quer que ela esteja, sem “medos da tecnologia” e a segurança de que não nos podemos tornar seus escravos. Quer seja no Tik-Tok (onde Scorsese ganhou um novo selo de estrela de internet juntamente com a sua filha Francesca Scorsese), seja nas séries, no cinema ou no resto da internet.

[trailer do mais recente filme de Scorsese, “Assassinos da Lua das Flores”, nomeado aos Óscares:]

É que noutros tempos, num bairro matreiro e desafiante de Nova Iorque, um jovem Scorsese só tinha o pequeno televisor para se deixar levar pelo cinema. Agora existe um infinito cardápio por descobrir. Quer seja moderno ou clássico. Aliás, além do cineasta planetário que tivemos diante de nós nesta terça-feira, tivemos também um homem que se tem preocupado muito em restaurar o cinema do passado. Em 1990, Scorsese co-fundou a The Film Foundation, responsável pelo restauro de mais de 75o filmes. Esse trabalho ainda não acabou. “Hoje em dia, só conseguimos ter 10% de todo o cinema mudo, o resto desapareceu, foi destruído. Mas é possível ver muito bons restauros, até melhores do que as cópias originais”, contou. Prova disso é a mostra, na secção Panorama, do filme Feito na Inglaterra: os filmes de Powell e Pressburger, já adquirido pela plataforma de distribuição Mubi, que mostra a importância de um certo cinema britânico na carreira do nova-iorquino.

Quer seja europeu, asiático, russo, brasileiro ou português, todos esses géneros que Scorsese devorou estão à mercê e prontos para ser descobertos. E podem ainda contar com a ajuda dos críticos, de quem o realizador norte-americano mostrou ser acérrimo defensor, apesar de se dizer que, por aplicações como a Letterbox, essa profissão está a deixar de ser relevante nos moldes tradicionais, como os que brotaram da escola do Cahiers do Cinèma. Portanto, mesmo com os enormes desafios que a indústria enfrenta, não é para se atirar a toalha ao chão. “Conheci o neorealismo italiano, filmes asiáticos, cinema francês como o The River, de Jean Renoir, porque os meus pais não eram muito letrados, através da televisão, com direito a anúncios pelo meio e tudo. Afetou-me muito. E se me afetou a mim, também pode afetar tantos outros miúdos espalhados pelo mundo. Eu sei que a vida é curta, mas não tem de ser tão curta assim. Se estamos aqui, vamos comunicar. Agora, sei que tenho menos tempo e isso é um problema, portanto, tenho de escolher bem o que fazer”, disse, dando dois exemplos de filmes a que devemos estar atentos — e foram várias as referências cinematográficas que Scorsese deixou na Berlinale: Vidas Passadas, que concorre, este ano, consigo, para o Óscar de Melhor Filme, e Dias Perfeitos, do alemão Wim Wenders.

Só que é preciso não esquecer que quando Martin Scorsese é o tema de conversa, não interessa só falar sobre corrupção, filmes ou longevidade. Pode-se só trocar impressões sobre culinária. Durante a conferência de imprensa, perguntaram-lhe qual o seu prato favorito, quando a conversa se tornou mais pessoal ao relembrar a sua mãe, estrela inicial na sua carreira e que chegou a entrar em Goodfellas. “Há muito boas lasanhas no mundo, mas a dela era a melhor.” Se o jornalista búlgaro não tivesse gasto os cartuchos com aquela fraca imitação, podia ter pedido a receita. Ou aprofundar a pequena história sobre os “melhores 30 segundos” da carreira do realizador, que nos levou até a um anúncio da Armani, com apenas dois atores num quarto, que deixaram uma marca em Scorsese. Fica para um próximo festival.