Dizer que um determinado escritor é “romancista, ensaísta e poeta” parece implicar uma separação estanque entre as três qualidades. Perante um novo livro desse escritor multifacetado, e aceitando como boa a rigidez da separação, é normal que o leitor queira desde logo perceber se no texto é o romancista, o ensaísta ou o poeta quem escreve, atenuando assim uma angústia que costuma estar associada a questões práticas de organização de estantes ou a questões teóricas de categorização literária.

Talvez os escritores multifacetados de maior interesse sejam aqueles que desafiam a ordem das prateleiras e a inflexibilidade das categorias, juntando, num mesmo livro, conjuntos de características normalmente associados de forma separada ao romance, ao ensaio e à poesia. O engenho dessa junção faz com que o livro obtenha características de vários géneros, ao ponto de se tornar possível (ou mesmo inevitável) dizer que é simultaneamente o romancista, o ensaísta e o poeta quem o escreve.

Um desses escritores é Frederico Pedreira, e o seu mais recente livro pode servir para provar este ponto.

Sonata para Surdos tem as características principais de um romance e será sempre essa a categoria que lhe assenta de forma mais evidente: é um livro escrito em prosa que conta uma história ficcional. O protagonista chama-se Francisco, e a acção decorre entre a cidade de Veneza e a muito próxima ilha de Lido, onde o português decide viver temporariamente para se dedicar à escrita subsidiada de uma tese académica.

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O primeiro dos dez capítulos é bastante para conhecermos os principais traços do herói. Francisco é um modelo extremo do tipo de pessoas habitualmente designadas como contemplativas: passeia sozinho, entretém-se com a digressão obsessiva dos seus pensamentos, e é frequentemente encontrado por funcionários da biblioteca da Università Ca’ Foscari com o “dedo colado ao queixo junto às prateleiras dos livros”. A tendência para colocar o pensamento no lugar da acção, mais do que um detalhe de personalidade, funciona em Francisco como uma espécie de crença: ele jamais se indigna “com a sua própria inércia, com a escusa em ser útil”.

Esta crença está relacionada com o interesse do protagonista pela ideia de estranheza do quotidiano, que é aliás uma das expressões usadas no título da tese que está a escrever (A Impossibilidade do Discurso e a Estranheza do Quotidiano). Durante a leitura deste romance, somos levados à compreensão, entre o mais pela quantidade de vezes que surgem escritas na mesma frase, de que a palavra estranheza tem, para Francisco, um significado muito próximo ao da palavra espanto. O que o português emigrado em Itália pretende investigar enquanto académico passa por compreender as causas e as consequências dos fenómenos do espanto e da estranheza na prática de actividades triviais. É isso que podemos intuir a partir de excertos como este:

os últimos livros que requisitara, um dos quais sobre o espanto e a estranheza associados a fenómenos aparentemente corriqueiros como a formação de um arco-íris, o exercício matemático de duplicar a área do quadrado ou o simples acto de nos determos diante de um quadro específico numa galeria de arte, toda uma conversa infinita sobre a natureza reveladora do dia-a-dia” (p. 63).

Um dos movimentos narrativos mais interessantes deste romance consiste no gradual cepticismo de Francisco acerca da utilidade da sua investigação académica, que fez com passasse a sentir “todo o mofo da biblioteca concentrado sob a língua e colado ao céu da boca” como uma “hóstia venenosa”. Assim, para alimentar a sua crença e atingir os almejados estados de espanto e estranheza, Francisco vai consciente ou inconscientemente deslocando o objecto das suas observações, passando a procurar no quotidiano aquilo que havia procurado na biblioteca: a “natureza reveladora do dia-a-dia” e, através dela, a natureza de si mesmo.


Título: “Sonata para Surdos”
Autor: Frederico Pedreira
Editor: Relógio D’Água
Páginas: 216

A aproximação que faz ao mundo, deambulando por Lido e por Veneza, é sempre uma aproximação distanciada, com um “olhar alheado, embora um tanto interessado”. Um olhar a que podemos dar o nome de literário, que vê “o mundo feito de folhas arrancadas a um romance”, e que constitui o terreno fértil onde o escritor Frederico Pedreira pôde plantar o que de melhor costuma oferecer a sua prosa.

Uma dessas ofertas prende-se com o virtuosismo da técnica narrativa já muito característica de Pedreira, e que normalmente se designa por proustiana, uma das palavras mais usadas para descrever o seu romance A Lição do Sonâmbulo (Companhia das Ilhas, 2020). Essa técnica consiste muito basicamente num exercício de rememoração associativa, um jogo de memória cujas regras obrigam a ligar um objecto ou facto presente com um objecto ou facto passado: aromas, madalenas ou desníveis do pavimento provocados por pedras soltas têm o efeito de avivar uma recordação e estabelecer dessa forma um modo espiritual de reconhecimento do mundo através da comparação permanente entre o que é e o que foi (ou o que se pensava ter sido).

É através desse jogo que Francisco vai tentando descobrir-se. Isso manifesta-se, por exemplo, na sua obsessão pela reconstituição do ano de 1990, ano em que o seu pai tinha a idade que ele tem agora. Numa das passagens mais tocantes do livro, Francisco emociona-se ao escutar inadvertidamente a canção One More Night, de Phil Collins, que o transporta à infância:

“Francisco reconheceu […] a mesma canção que se lembrava de ter ouvido naquele ano distante, já no automóvel, a caminho de casa com o pai, depois do dia passado no hospital, a que se seguira a longa caminhada nocturna pelas Avenidas Novas, e ocorreu-lhe como essa canção tornara aquela Lisboa ainda mais pesada e lamentável aos seus olhos de criança, despojada de qualquer sinal de vida que pudesse fazê-la despertar na manhã seguinte” (p. 82).

Ver assim o mundo, como algo “feito de folhas arrancadas a um romance», importa também consequências nas relações sociais de Francisco. Quanto a esse aspecto, o olhar literário do protagonista tem o efeito de o colocar constantemente a associar pessoas que existem com pessoas que não existem. Silvio, o velho porteiro “quase demente” de sua casa, é muitas vezes confundido com Septimus (uma personagem de Mrs. Dalloway, romance de Virginia Woolf); Carlo, um livreiro veneziano com quem estabelece uma relação de amizade e que sofre de “anedonia musical”, é muitas vezes comparado com Zazetsky, “o soviético com a sua grande cabeça afásica, um imbecil que tentava pôr as palavras em ordem” (estudado pelo autor A. R. Luria no livro The Man with a Shatered World); e não são raras as vezes que Francisco tenta compreender a sua mulher Emília através da comparação entre esta e personagens de romances.

Os exemplos de intersecção entre as pessoas com quem Francisco se cruza e as pessoas de livros lidos por Francisco são inúmeros, e vão desde Thomas Mann a Eça de Queirós: “toda a gente nesta ilha lembra alguém: […] doppelgängers por todo o lado”.

É assim, através das contemplações digressivas do inventado Francisco, que Frederico Pedreira romancista vai concedendo espaço ao Frederico Pedreira ensaísta.

Aquela equiparação entre pessoas que existem e pessoas que não existem, por exemplo, não pode deixar de ser sentida como uma mensagem que o autor parece querer sussurrar-nos ao ouvido acerca da relação mais teórica entre a vida e a arte: a incessante associação entre os duplos (“doppelgängers”) é no fundo um argumento de que é simultaneamente a arte a imitar a vida e a vida a imitar a arte, numa espécie de jogo mimético mútuo e bilateral, ao ponto de se dissiparem as fronteiras que costumamos imaginar traçadas entre as duas realidades.

Não deixam por isso de ser curiosas as evidentes coincidências biográficas entre o personagem Francisco e o seu escritor Frederico Pedreira: entre outras coisas, o ano de nascimento, a infância passada em Lisboa, a fase adulta passada numa “planície do Alentejo” (todos factos públicos), e, muito especialmente, o título e objecto da tese académica: Frederico Pedreira escreveu Uma Aproximação à Estranheza (Imprensa Nacional, 2017), a sua tese de doutoramento em Teoria da Literatura, distinguida em 2016 com o Prémio de Ensaio INCM/Vasco Graça Moura.

A relação da tese de Frederico Pedreira com a tese e com a vida do personagem Francisco são tão evidentes, que dela podemos retirar uma passagem capaz de sintetizar grande parte do romance Sonata para Surdos:

De certa maneira, estranhar algo significa interferir na realidade, ter um movimento autoral sobre a mesma, que provém necessariamente da autoridade que uma pessoa pode reclamar sobre a sua, tornando-a real para si mesma” (Uma Aproximação à Estranheza, p. 152).

É isso mesmo que Francisco pretende fazer: tornar a vida real para si mesmo, fazendo-o através da estranheza (e do espanto). É isso mesmo que Francisco é: um duplo de Frederico Pedreira. É isso mesmo que Frederico Pedreira prova ser: um romancista e um ensaísta.

Às evidentes características de ensaio presentes neste romance, que invadem até (por vezes exageradamente) as descrições de sentimentos ou gestos triviais, juntam-se também as características de poesia. Sendo certo que não há no livro qualquer vestígio formal de algo semelhante a versos, há nele muitas coisas que nos versos costumamos encontrar: silêncios operativos, elipses, musicalidade e linguagem simbólica.

É precisamente a metáfora que ocupa o papel mais central na escrita de Frederico Pedreira, como se o arco metafórico fosse a única forma à mão do autor para conseguir simultaneamente cobrir e explicar o mundo. O seu engenho está em fazer com esse seu traço se demonstre as mais das vezes justificado e operativo, como quando as personagens falam, ao final da tarde, sobre a inevitabilidade da morte: aí, o pôr do sol não é só um pôr do sol, mas algo que pousa “na linha do horizonte como se fosse um velho trôpego com receio de adormecer pela última vez”.

Patologias como a afasia e a surdez afectam algumas das personagens (ou, mais rigorosamente: das pessoas) deste livro, e assumem nele uma importante carga simbólica. Por um lado, são vistas como veículos dos tão pretendidos espanto e estranheza; por outro lado, são também obstáculos de comunicação.

Frederico Pedreira não corresponde, certamente, à categoria que costuma invadir algumas conversas de café e a que normalmente se dá o nome de escritor fácil: a história é contada através da citação de autores, de paráfrases nem sempre explicitadas, de analogias, propostas de teses, e metaforizações de silêncios. Quando a personagem Emília tenta compreender o seu marido Francisco, sente-se como se estivesse a ler “um empoeirado romance”. Também nós, leitores, podemos por vezes ter essa sensação ao ler este livro, ao tentar ouvir esta Sonata. Os surdos, a quem ela se dirige, são aqueles dispostos a deixar-se levar por este pianista “romancista, ensaísta e poeta” que, tocando com seis mãos, insiste em seduzir ao mesmo tempo que vira as costas.

O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico