Há gestos que valem mais do que qualquer imagem ou mil palavras. Até podem não vir de forma direta dos próprios mas têm um peso igual ou maior do que se viessem. Foi isso que aconteceu na antecâmara do início dos quadros principais de Roland Garros, o segundo Grand Slam da temporada. Quis o destino que Rafael Nadal, o ídolo espanhol que fez da terra batida francesa o seu território sagrado até sucumbir a um corpo tão forte que se tornou frágil com o passar dos anos às mazelas que o atormentaram desde sempre, cruzasse na ronda inicial com Alexander Zverev, provavelmente o jogador em melhor momento de forma depois das vitórias nos Masters de Madrid e Roma – de tal forma que, em entrevista ao Observador, o antigo campeão Mats Wilander colocava o alemão como o favorito surpresa ao triunfo em Paris. Seria isso um adeus?

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“Como podem imaginar, tínhamos algo preparado para o Rafa [Nadal]. No entanto, ele quer deixar a porta aberta, pelo que não vamos pressionar com nada. É uma decisão sua se quer ter uma cerimónia adequada ou um adeus e uma despedida adequadas. Não faremos isso este ano”, comentou Amélie Mauresmo, que é a atual diretora do torneio depois de ter sido número 1 mundial e vencedora de dois Grand Slams, num dos encontros informais que foi mantendo com os jornalistas nos últimos dias antes do arranque do torneio.

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Era fácil perceber aquilo que nem o espanhol percebe. Por um lado, Rafa Nadal sabia que não partia como favorito contra Zverev, que é inevitável ter uma grande homenagem por toda a história que foi escrevendo em Roland Garros (que dificilmente será repetida nas próximas longas décadas) e que este poderia ser mesmo o último encontro no court de ténis onde foi mais feliz. Por outro, o “animal competitivo” nunca verga e parece continuar a não aceitar a inevitabilidade de que o fim está mesmo próximo. Por isso, seria mais um encontro da primeira ronda de Roland Garros. Um encontro que era tudo menos apenas um encontro e que trazia também à memória aquela meia-final de 2022, quando Zverev estava a ter uma das melhores exibições da carreira em terra batida contra o espanhol mas saiu lesionado com gravidade no tie break do segundo set.

Do pé esquerdo de Nadal ao pé direito de Zverev: alemão desiste de um jogo fabuloso e espanhol está na final de Roland Garros

Era neste contexto que chegava o regresso de Rafa Nadal ao Philippe Chatrier após 722 dias de ausência, no dia em que garantiu o 14.º título em 18 participações frente ao norueguês Casper Ruud. Mais: em 115 jogos realizados desde 2005, quando apareceu naquele estilo de jovem rebelde com camisola manga cava e calções coloridos, ganhara 112 contra 74 adversários diferentes de gerações distintas com quem se ia cruzando. Se o corpo deixasse, diziam, poderia chegar ao triunfo 113. E havia até confiança pelos sinais que retirou de todos os treinos feitos com jogadores de nível como Wawrinka, Medvedev, Korda ou Rune. Mas… era Zverev. E, com Djokovic, Alcaraz, Swiatek e muitas mais estrelas nas bancadas, foi de chorar por mais. De chorar por mais pela qualidade do jogo, de chorar por mais porque pode ter sido a última vez de Rafa Nadal.

A entrada no encontro disputado em court fechado devido à chuva que foi condicionando o calendário desta segunda-feira mostrou isso mesmo, com o germânico a fazer um break em branco logo no início do primeiro set. Era quase como se Nadal tivesse de entrar a perder sem começar a jogar, sendo que a seguir teve uma oportunidade de ouro para deixar tudo na mesma com dois pontos de break desperdiçados no quarto jogo. Era impossível adivinhar que seria um momento decisivo no primeiro parcial mas foi mesmo, com Zverev a manter o nível altíssimo que trouxe de Madrid e Roma, a transformar qualquer bola mais curta do espanhol em ponto para si e a beneficiar de um serviço letal para ganhar por 6-3 com um novo break lamentado e muito nas bancadas que só tinham olhos para aquele mito que ali brilhou durante duas décadas.

Apesar desse desaire, Nadal não perdeu o “fogo” que tinha naquela raqueta. As esquerdas paralelas não iam entrando, as respostas ao serviço de Zverev eram escassas mas havia um coração enorme a bater de alguém que, ao sentir-se em condições fisicamente, mostrava tanta ou mais vontade de jogar do que quando tinha 18 ou 19 anos acabados de fazer e ganhou pela primeira vez em Paris. Foi assim que, perante dois pontos de break no seu serviço, deu a volta e fez o 2-2. Foi assim que, perante um aumento de erros não forçados do germânico e um nível de jogo em crescendo, fez mesmo o break a Zverev para o 3-2. Era assim que, em condições normais, podia fechar o segundo set em 6-4 no seu serviço. Aí, apareceu o número quatro do mundo. E apareceu a fazer o break em branco para o 5-5, antes de fechar o tie break com 7-5.

[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]

Se é verdade que uma das imagens mais marcantes deste arranque de Roland Garros foi aquela que tinha o pai de Rafa Nadal a tirar uma fotografia à estátua que o filho tem no complexo parisiense, aquilo que via no court principal de Roland Garros, até a perder, era digno de uma estátua. Outra estátua. E o espanhol voltou a mostrar isso mesmo no terceiro set, que começou com dois pontos de break salvos para o 1-0, o primeiro break do parcial para o 2-0 e a resposta pronta do alemão com o break para o 2-1 antes de segurar o seu serviço. Estava tudo em aberto, com o quinto jogo a voltar a colocar o antigo número 1 mundial à prova para salvar quatro breaks até fazer o 3-2. Não foi aí, foi pouco depois: com uma resposta de esquerda do outro mundo, Zverev fez outro break para o 4-3 e evitou de seguida o contra break em dois pontos para fechar o 5-3 que estendeu de vez a passadeira ao triunfo após mais de três horas de jogo. E sendo certo que Nadal fez um encontro monstruoso, o alemão não ficou em nada atrás e esteve mesmo ao mais alto nível.