Esta sexta-feira, um motim na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, no estado da Roraima, no Brasil, provocou a morte de, pelo menos, 33 pessoas. Este é o segundo massacre registado numa prisão brasileira esta semana.

Na segunda-feira, 60 pessoas morreram no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no estado do Amazonas. O motivo parece ter sido o mesmo: as duas principais fações criminosas brasileiras, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), estão em guerra. Uma situação que só vem complicar ainda mais a crise que já assola as prisões brasileiras.

O CV, o mais antigo dos dois grupos, foi criado em 1969 na prisão Cândido Mendes, na Ilha Grande, no estado do Rio de Janeiro, a partir da antiga Falange Vermelha. Ligado ao crime organizado e ao tráfico de droga, o CV sempre procurou reforçar a autoridade dentro das prisões no Rio de Janeiro. Hoje em dia, os seus membros estão espalhados um pouco por todo o Brasil.

O PCC foi criado mais tarde, nos anos 90, por membros do CV. Segundo a Folha de São Paulo, a fação criminosa foi formada depois de alguns dos membros do CV se terem mudado para São Paulo. Entre eles estavam os irmãos Sérgio e Júlio Achê e Célio “o Lobisomen” Tavares, um dos fundadores do Comando Vermelho, que passaram a agir em São Paulo com o conhecimento dos líderes da organização criminosa. Apesar de terem sido criados dentro das prisões brasileiras, os dois grupos sempre mantiveram alguma influência fora dos estabelecimentos prisionais.

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Com estrutura e modo de operação semelhante, as duas organizações sempre mantiveram uma relação pacífica. O estatuto do PCC salienta, inclusivamente, a existência de um objetivo comum. “Em coligação com o Comando Vermelho, iremos revolucionar o país de dentro das prisões e o nosso braço armado será o terror dos poderosos opressores e tiranos que usam o anexo de Taubaté e o Bangu 1 no Rio de Janeiro [onde ficam duas prisões de segurança máxima] como instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros”, refere, citado pela Folha de São Paulo.

Esta aliança foi quebrada em setembro passado, quando os líderes do Primeiro Comando da Capital detidos na Penitenciária de Presidente Venceslau, em São Paulo, enviaram uma carta, escrita à mão, a todas as prisões por eles dominadas em que anunciavam uma guerra aberta contra o Comando Vermelho. De acordo com o Estadão, o documento, que tem circulado via WhatsApp, refere que a “fação FDN será dizimada da face da terra”. A Família do Norte (FDN), um braço do CV, domina a maioria das prisões do estado do Amazonas.

Em entrevista à revista do jornal Globo, Época, o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado do município de Presidente Prudente, no interior de São Paulo, explicou que os problemas entre os dois grupos começaram quando o PV se começou a associar a fações inimigas do PCC. “São fações pequenas — a Família do Norte, no Amazonas; o Primeiro Grupo Catarinense, em Santa Catarina; o Sindicato do Crime, no Rio Grande do Norte; o Bonde dos 40, no Maranhão. Como essas fações não têm uma abrangência nacional, acabaram aliando-se ao Comando Vermelho e atacando integrantes do PCC”, esclareceu.

Segundo Lincoln Gakiya, estas fações mais pequenas associaram-se ao CV porque temem que o PCC, que tem vindo a ganhar terreno face a outros grupos, se apodere do tráfico de droga. “É uma disputa de mercado”, afirmou o promotor, acrescentando que a guerra entre as duas associações poderá mesmo estender-se para fora das prisões.

Uma disputa de mercado

Nos últimos anos, o PCC tem vindo a ganhar terreno face a outras organizações, estendendo o seu círculo de influência para fora do estado de São Paulo, onde nasceu. Dentro e fora das prisões. De acordo com Camila Nunes Dias, professora universitária e autora do livro PCC: Hegemonia nas Prisões e Monopólio da Violência (2013), o grupo criminoso já chegou aos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, onde controla o tráfico de drogas no Paraguai e na Bolívia, que abastece o sudoeste do Brasil.

Já o grupo regional Família do Norte, que muitos acreditam ser responsável pelo massacre desta sexta-feira, “é muito importante na economia ilícita da droga, porque tem o controlo estratégico das fronteiras entre a Colômbia e o Peru”, colocando-o nessas zonas em pé de igualdade com grupos como o PCC e o CV, explicou a investigadora à Folha de São Paulo, salientando que a rutura entre as duas fações levou a uma “reconfiguração do xadrez prisional do Brasil”.

Os confrontos dentro das prisões brasileiras não são de agora, mas o conflito entre o PCC e o CV tem vindo a piorar uma situação que, por si só, já é complicada. A maioria das prisões brasileiras encontram-se sobrelotadas (a Folha de São Paulo fala em mais de 600 mil presos, para uma lotação inferior a 400 mil), uma realidade que o número cada vez maior de presos provisórios (os que estão a aguardar julgamento) só tem vindo a piorar.

Arthur Trindade, ex-secretário da Segurança do Distrito Federal, explicou à Folha de São Paulo que o fluxo de presos provisórios coloca réus primários e criminosos não violentos em ambientes controlados por fações criminosas. Uma vez confrontados com a realidade violenta da prisão, muitos dos detidos escolhem associar-se a uma organização para sobreviveram. “Essas organizações vendem proteção, portanto quem ingressa no presídio precisa se solidarizar com alguma fação para sobreviver”, afirmou.

Isto faz com que o número de membros de grupos como o PCC e o CV não pare de crescer e seja muito difícil de controlar. Uma vez fora da prisão, muitos destes indivíduos acabam por manter uma ligação à fação criminosa, alimentando uma rede fora dos estabelecimentos criminais.

Em resposta à crise nas prisões, o Governo federal brasileiro decidiu antecipar o lançamento do Plano Nacional de Segurança Pública, que estava a ser elaborado pelo Ministério da Justiça. De acordo com Alexandre de Moraes, este irá ter como objetivos principais combater a violência doméstica, o crime organizado e modernizar o sistema penitenciário. Apesar disso, não há sinal de que esta iniciativa contenha a curto prazo a guerra entre membros do PCC e o CV.