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"Auto-Retrato num Grupo" de José de Almada Negreiros (1883-1970), óleo sobre tela, 130 x 197 cm. Colecção Jorge Brito 1971-83, Colecção Fundação Calouste Gulbenkian desde então
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"Auto-Retrato num Grupo" de José de Almada Negreiros (1883-1970), óleo sobre tela, 130 x 197 cm. Colecção Jorge Brito 1971-83, Colecção Fundação Calouste Gulbenkian desde então

Carlos Azevedo

"Auto-Retrato num Grupo" de José de Almada Negreiros (1883-1970), óleo sobre tela, 130 x 197 cm. Colecção Jorge Brito 1971-83, Colecção Fundação Calouste Gulbenkian desde então

Carlos Azevedo

A Brasileira: um café-museu a dois tempos

Mais do que uma revisitação comemorativa, uma nova exposição no Museu do Chiado permite avaliar a uma nova luz a representação artística naquele clássico espaço lisboeta, tanto em 1921 como em 1971.

Depois de nos meses de eclipse pandémico — numa iniciativa sem precedentes ou equiparáveis — ter mostrado nas suas redes sociais a pequena história de galerias de arte, lojas de modernidade, estúdios fotográficos, ateliers de artistas e instituições afins do bairro onde se insere, o Museu Nacional de Arte Contemporânea vem agora colocar a cereja em cima desse bolo com a exposição “A Brasileira do Chiado, café-museu 1925-71”, a pretexto do cinquentenário da instalação dos 11 quadros que ainda hoje ornamentam a conhecida loja histórica na baixa de Lisboa. A abertura pública da exposição (que pode ser visitada até 26 de Setembro) coincide rigorosamente com os 50 anos da chegada dos quadros, a 26 de Junho de 1971, vindos de loja próxima onde haviam sido exibidos durante duas semanas. Pequeno livro alusivo, com texto do incontornável José-Augusto França datado de Junho de 1971, demoraria ainda algum tempo a sair: o colófon indica “Fevereiro de 1973”.

A ideia desta exposição partiu de Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte, professora e e ela própria uma antiga directora do MNAC (1993-97), e o seu alcance vai muito além da simples revisitação comemorativa, pois permite avaliar a uma nova luz — no catálogo prestes a imprimir, a que tivemos acesso — tanto o protagonismo dos artistas que ali se representaram em 1921, como o domínio de José-Augusto França nas escolhas de 1971, mas também a intervenção decisiva do decorador, antiquário e afinal subtilíssimo intermediário de arte Joachim Mitnitzky (ele próprio um homem do Chiado, residente na Rua da Horta Seca e lojista da Rua Vítor Cordon) na substituição dos velhos quadros por novos, e a venda dos melhores daqueles, os dois de José de Almada Negreiros e os dois de Eduardo Viana, ao coleccionador Jorge de Brito (1927-2006), em grande evidência naqueles anos, e que em 1983 os doaria à Fundação Calouste Gulbenkian.

Nikias Skapinakis, “Os Críticos”, 1971 (A Brasileira)

Acessoriamente, também ficamos a saber dos malefícios que meio século de tabagismo intenso pôde fazer às primeiras pinturas expostas, deixando algumas delas num “estado próximo da ruína” (Silvestre, p. 16), enquanto a segunda série foi objecto de prudente limpeza e restauro em 1993, aproveitando a remodelação do estabelecimento a coberto da capital europeia da cultura Lisboa’94.

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Apesar da fama alcançada por tão extensa exposição pública no epicentro da vida lisboeta, muito raramente — para não dizer que quase nunca — quadros da segunda leva saíram da Brasileira para integrarem retrospectivas dos seus pintores. É disso máximo exemplo o quadro de Nikias Shapinakis Retrato dos Críticos, historicamente o mais relevante de todo o conjunto e de resto motivo escolhido para a capa do citado livro de França Os Quadros de “A Brasileira” (Artis, 1973) e apesar de tudo isso ausente da antológica de Nikias no Centro Cultural de Belém – Museu Joe Berardo, em 2012 (e do respectivo catálogo monográfico).

Inversamente, é assaz curioso notar que o quadro Marbella não é sequer mencionado no exaustivo ensaio académico de Pedro Lapa Joaquim Rodrigo, a contínua reinvenção da pintura (Documenta, 2016, 453 pp.), e que o tão icónico Alegoria à “Brasileira” não consta da publicação que a Fundação Cupertino de Miranda dedicou em 2017 à obra completa de Carlos Calvet, 1928-2014 (onde, todavia, aparece o quadro feito no ano seguinte a convite da Galeria Diário de Notícias, ali defronte, para uma exposição colectiva de homenagem a Camões).

O processo decorativo da Brasileira estava em marcha desde meados de 1924, sendo justo perguntar — com Raquel Henriques da Silva (p. 47) — por que razões artistas presentes no Salão de Outono, como Sarah Affonso, Francis Smith, Dordio Gomes, Mário Eloy, ou outros ainda, como o talentoso José Tagarro, ou o belga residente Albert Jourdain, não foram chamados a participar.

Esta “micro-história social e artística que atravessa o século XX”, como bem escreve Inês Silvestre, contém portanto várias perplexidades, algumas delas descortinadas e postas a nu por esta promissora investigadora que examinou o espólio do pintor António Soares e se lamenta de não ter podido encontrar qualquer rasto do arquivo documental de Mitnitzky (que se mudou para o Brasil no pós-1974 e lá terá chegado ao fim dos seus dias), e que certamente elucidaria bastante o processo de compra, restauro e venda dos quadros removidos em Dezembro de 1970. Cartas dos pintores entre si ou com a gerência do estabelecimento vêm contrariar a narrativa longamente estabelecida segundo a qual José Pacheko teria sido o mentor e gestor do projecto expositivo. O intrépido Eduardo Viana e António Soares foram os principais protagonistas, incluindo atribuindo aos seus próprios quadros valores maiores — 60 contra 40 contos — do que aos dos demais, incluindo o complexo e extenso díptico da parede do fundo, com relógio ao centro, a cargo de Bernardo Marques.

A documentação felizmente conservada também permite concluir que o militar e pintor João Menezes Ferreira (1889-1936) — o talentoso “Capitão das Artes” a que o Museu Bordallo Pinheiro dedicou exposição em 2014-15 que o fez ressurgir —, foi convidado de início, mas afastou-se por motivos ainda desconhecidos. Sobretudo torna possível fixar “na semana de 7 a 13 de Março de 1926” (Silvestre, p. 13) a colocação das pinturas no café, algo que a imprensa da época não registara devidamente. As réplicas das “telas tolas” (sic) pelo lápis jocoso de Francisco Valença nas páginas da revista Sempre Fixe datam de Junho e Julho seguintes, fazendo crer ter sido posterior. Os primeiros a comentar a decoração modernista da Brasileira do Chiado foram os republicanos anónimos de A Choldra, dito “semanário de combate e de crítica à vida nacional”, cuja severíssima, quase raivosa reacção imediata merece ser lida e relida como prova inapagável do seu mais absoluto desalinhamento com a vanguarda artística.

"Café" de João Vieira (1934-2009), plexiglas e madeira, 128 x 180 cm. Colecção Brasileira do Chiado

TPhotos2018

Alguns dos quadros desta primeira série haviam sido vistos com muito agrado no I Salão de Outono, organizado por Eduardo Viana na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Janeiro de 1925, onde tinham sido expressamente anunciados como tal: Auto-Retrato num Grupo de Almada, o primeiro na parede esquerda; Lavadeiras de Jorge Barradas, o seu correspondente frontal (logo no ano seguinte substituído pelo pintor por Cena de Lisboa), e Cena de Café de António Soares. De facto, como atesta documentação inédita lida por Inês Silvestre, o processo decorativo da Brasileira estava em marcha desde meados de 1924, sendo justo perguntar — com Raquel Henriques da Silva (p. 47) — por que razões artistas presentes no Salão de Outono, como Sarah Affonso, Francis Smith, Dordio Gomes, Mário Eloy, ou outros ainda, como o talentoso José Tagarro, ou o belga residente Albert Jourdain, não foram chamados a participar. Terá sido para que fosse dado lugar a pintores representados em dobro e a outros que pintores não eram de facto, como José Pacheko e Stuart Carvalhais?

A resposta — ou parte dela — parece estar na vontade de “conquistar o poder museólogo” (Henriques da Silva, p. 50) por parte de Novos que muito pouco tinham sido chamados a integrar a colecção do museu nacional criado em 1911, e logo de seguida — alguns deles, como também o escultor Canto da Maya — vão encontrar no Bristol Club, à Rua das Portas de Santo Antão, um segundo local de grande e permanente visibilidade que os favorecesse. Contudo, o soberbo Natacha de Soares, o nu resplandescente de Almada e os dois de Viana aí ficariam expostos por bem pouco tempo, pois o clube nocturno fechou portas em 1928. A “cervejaria-museu” Leão d’Ouro, ali perto, que em 1905 acolhera obras de pintores naturalistas seus clientes e o grande retrato colectivo por Columbano Bordallo Pinheiro, inspirara afinal idêntica representação artística geracional em espaços de sociabilidade urbana que se destacariam nas décadas seguintes.

No seu Lisboa Livro de Bordo, José Cardoso Pires refere-se a um dos quadros de Almada, na Brasileira do Chiado: "Durante muito tempo habituei-me a vê-lo numa parede em auto-retrato dos anos 20, na companhia de duas senhoras sofisticadas que pareciam estar à espera de qualquer coisa que haveria de vir."

Três quadros merecem atenção específica, Auto-Retrato num grupo de Almada, Cena de Café de António Soares e Pintura Decorativa de Bernardo Marques.

No seu Lisboa Livro de Bordo, José Cardoso Pires refere-se a um dos quadros de Almada, na Brasileira do Chiado: “Durante muito tempo habituei-me a vê-lo numa parede em auto-retrato dos anos 20, na companhia de duas senhoras sofisticadas que pareciam estar à espera de qualquer coisa que haveria de vir.” Acabado de pintar nas primeiras semanas de 1925, antes da exposição na SNBA, representa a aventurosa bailarina espanhola de cabaré Julia de Aguillar (1899-1979), a actriz teatral Aurora Gil e uma quarta figura, que França no seu livro de 1971-73 nomeou como o “poeta e professor [Pedro] Dória Nazareth”, poeta obscuro, sem livros impressos, que as enciclopédias sequer identificam.

O pintor contempla um esquisso seu que segura com a mão esquerda sobre a mesa, uma figura masculina de chapéu negro ligeiramente de perfil. Sem duvidar que a atribuição de França possa ter sido por ele confirmada directamente com o pintor, faço notar que os dois quadros de Almada pintados por encomenda para a Brasileira — como, de resto, toda esta campanha artística — têm origem numa ideia de Norberto de Araújo. Este jornalista escrevera muito elogiosamente uma página do Diário de Lisboa de 25 de Fevereiro de 1922 (p. 3) sobre um desenho de Almada em que uma mulher se veste de homem. Atendendo ao facto de Almada ter tido nessas encomendas os seus primeiros desafios na técnica de pintar a óleo, será atrevido questionar se a figura à direita do quadro será afinal a mulher vestida de homem da página de Araújo, que no quadro fosse levada a contemplar o seu retrato completo na folha de papel que segura com mão convenientemente enluvada? Coloco sem pretensão essa hipótese.

José de Almada Negreiros, "As banhistas", 1925 (Fundação Calouste Gulbenkian)

Inês Silvestre encontrou no espólio familiar de António Soares uma fotografia que “terá inspirado a pintura Cena de Café”, onde o próprio pintor está sentado a uma mesa ao lado de Jorge Barradas, e a reprodução fotográfica dum esquisso muito avançado para o mesmo quadro, em que algumas figuras, como a do escritor Augusto Ferreira Gomes, são acrescentadas. Uma dessas figuras é do poeta seria Fernando Pessoa, “que a pedido do próprio terá sido excluído” (p. 15). É uma descoberta importante, dando razão a todos aqueles que prezam a boa conservação de arquivos pessoais.

O duplo painel de Bernardo Marques (1924-26, c. 128 x 180 cm; v. pp. 26-27), com motivos etnográficos, restaurado em 1971 “eventualmente por António Fonseca e Manuel Reys-Santos”, não foi localizado durante o processo de preparação desta exposição, embora constitua sem qualquer dúvida uma das melhores obras da primeira campanha artística de decoração da Brasileira do Chiado. Também Cena de Aldeia de Jorge Barradas, que Mitninsky venderia na sua loja carioca ao português Miguel Ferreira de Almeida, tem ainda morada desconhecida. Em contrapartida, logrou-se identificar Interior de António Soares (1925, 194 x 129 cm), na posse afinal dum descendente de Adriano Telles, proprietário-fundador do café, um advogado e coleccionador que o adquiriu num leilão.

Convidada, Paula Rego — que em finais de 1965, pela mão de Alberto de Lacerda, expusera em Lisboa os seus primeiros trabalhos na Slade School of Fine Arts — recusaria. Vieira da Silva e Menez também. Uma suposta "heterodoxia oficinal" banira Lurdes Castro e Helena Almeida. Eduardo Batarda sequer seria considerado. Nem mesmo Fernando Lemos.

Se a “operação Modernização” de 1925 contemplou — e quis legitimar — obras menores, a “encenação de peças soltas” (sic) de 1971 também não se livra de flagrantes ausências e inviesados critérios de selecção. Pintores residentes no estrangeiro (mas não todos), ou considerados emigrados por serem, afinal, bolseiros temporários da Fundação Calouste Gulbenkian, foram postos de lado.

Vivendo em Paris, Jorge Martins, autor dum encantador Le désir et la contemplation (1971, 97 x 130 cm), “nunca foi considerado”, supostamente por ter sido refractário à guerra colonial. Excluídos também foram António Costa Pinheiro e António Dias Charrua, este “por sorteio” (p. 48). Convidada, Paula Rego — que em finais de 1965, pela mão de Alberto de Lacerda, expusera em Lisboa os seus primeiros trabalhos na Slade School of Fine Arts — recusaria. Vieira da Silva e Menez também. Uma suposta “heterodoxia oficinal” banira Lurdes Castro e Helena Almeida. Eduardo Batarda sequer seria considerado. Nem mesmo Fernando Lemos. Apesar de um dos jurados, Fernando Pernes, estar ligado ao Porto (onde passaria a viver dois anos depois), artistas daquela cidade não foram desafiados a colaborar, fazendo desse “museu de arte contemporânea” alternativo ao nacional, seu vizinho, uma espécie de repartição regionalista ou lisboeta da arte do seu tempo… dirigido, para todos os efeitos, a “uma certa cidade de Lisboa”, acautelando-se José-Augusto França de que “um ou outro frequentador da casa, como em 1925 acontecera, não aprove agora a mudança”… No “folhetim artístico” de 3 de Junho de 1971, no Diário de Lisboa, dedicado a Retrato dos Críticos de Nikias, sempre ao seu estilo peculiar, França escreveu, e logo de início: “Um quadro há, entre os destinados à Brasileira […] que não deixará de desencadear reacções de indignação, ira, raiva, curiosidade, gozo e troça — inveja até, quem sabe! | E outras, mais e melhores — que abençoados sejam… | Tão poucos os motivos de regozijo na murcha capital, que um quadro pode trazer consigo o escândalo. Aliás, o papel da arte na sociedade moderna é sempre necessariamente escandaloso ou escandalizador”. (Esta soberba nunca o abandonou.)

Mudança documentada por célebre reportagem fotográfica de José Luís Madeira, com a presença de alguns dos artistas e do sócio de Joachim Mitnitzky Manuel Souza Menezes, vendo-se os onze quadros transportados num velha carrinha de mudanças, todos sem a mínima protecção, e manipulados sem luvas até à fixação final — algo que hoje, cinquenta anos volvidos, arrepiaria até aos ossos qualquer director de museu, público ou privado, oficial ou informal…

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