“A próxima década será a mais perigosa, imprevisível e crucial desde o final da Segunda Guerra Mundial.” As palavras são do Presidente russo, num discurso no think tank Valdai sobre o futuro do mundo pós-hegemónico, esta quinta-feira. Tal como o próprio nome do evento sugeria, Vladimir Putin debruçou-se sobre o futuro das relações internacionais que, no seu entender, passa pelo fim do “mundo unipolar” controlado pelo Ocidente — e que vigora desde o colapso da União Soviética. A intervenção de Putin tinha sido pré-anunciada como um momento para ser “estudado, lido e relido” por um dos seus elementos mais próximos no Kremlin. E o que saiu de Sochi foi uma sucessão de avisos ao mundo ocidental.
Numa intervenção com cerca de 40 minutos, Vladimir Putin revelou as prioridades da política externa do Kremlin. Muito mais do que a simples conquista ou o controlo da Ucrânia (que poucas vezes foi mencionada no discurso, mesmo quando as referências rondavam a ideia de uma visão do mundo procurar impor as condições de existência a outra visão), o Presidente da Rússia demonstrou que o objetivo é a construção de um novo sistema de relações internacionais, em que todos podem “escolher o seu caminho livremente”. Para isso, é necessário destruir o antigo sistema que o chefe de Estado russo considera ser controlado por um Ocidente “cosmopolita, agressivo e neocolonialista” e que está “em profunda crise ideológica”.
Ora, o Presidente russo dá sinais de querer desempenhar o papel de protagonista nesta cruzada contra um mundo unipolar. “Está a ser desenhada uma nova ordem mundial em frente aos nossos olhos”, avisou Vladimir Putin, sentenciando que esse “mundo unipolar está a chegar ao fim”. “Estamos a assistir a algo revolucionário. O Ocidente é incapaz de governar a Humanidade e está a tentar desesperadamente fazer isso”, atirou.
Piscando o olho aos países africanos, asiáticos e latino-americanos — que designou como a “espinha dorsal das civilizações” —, Vladimir Putin deixou vários avisos ao Ocidente no seu discurso. Um momento que ganhou uma dimensão maior depois de o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, ter anunciado o encerramento da conferência como algo que teria de ser “analisado no futuro”.
A missão hegemónica do Ocidente na mira de Putin
Durante o discurso, Vladimir Putin não parou de atacar os países ocidentais e a ordem mundial que, diz, tem vindo a ser criada desde o final da Guerra Fria. Aliás, o Presidente russo expôs o que acredita ser uma contradição: “O Ocidente é um complexo conglomerado em que não há unidade”, disse, numa mensagem dirigida da mesma forma aos Estados Unidos, ao Canadá e à Europa Ocidental.
O Presidente russo afirmou que o Ocidente está a “dar uma série de passos” para a escalada de vários conflitos. “Não há nada de novo”, lamentou, elencando depois que os países ocidentais estão a “incitar à guerra na Ucrânia e em Taiwan”. “Estão a desestabilizar o mundo, o mercado energético e o alimentar”, acusou, exemplificando com a série de explosões no gasoduto Nord Stream 2 — culpando o Ocidente pelo sucedido mas sem apontar dados concretos para essa suspeita (pelo contrário, a tese global para explicar a sabotagem daquela infraestrutura aponta para implicações russas).
Reprovando o que diz ser um “jogo perigoso, sangrento e sujo“, Vladimir Putin denunciou que os países ocidentais têm tentado “negar a soberania de países e povo, a sua identidade e singularidade e não têm em consideração os interesses de outros Estados”. “A simplificação e a remoção de todas as diferenças tornaram-se quase a essência do Ocidente moderno.”
Há também um “aspeto económico” neste jogo do Ocidente, ilustra o chefe de Estado da Rússia. “Ao impor os seus valores e estereótipos de consumo, os nossos oponentes estão a tentar expandir os mercados para os seus produtos”, clarificou Vladimir Putin, algo que a seu ver é “primitivo”. Os países ocidentais, contudo, insistem na tese de que os seus valores “têm de ser aceites incondicionalmente por todos os restantes membros da comunidade internacional”.
“Foi no monopólio financeiro e tecnológico, no desligar de toda e qualquer diferença, que se construiu também o modelo ocidental de globalização, neocolonial na sua essência”, explicou Vladimir Putin. “A tarefa é clara: fortalecer o domínio incondicional do Ocidente na economia e na política mundiais e, para isso, colocar à sua disposição todos os recursos naturais e financeiros, humanos e económicos de todo o planeta, fazendo-o ao abrigo da chamada nova interdependência global.”
Na ótica do líder russo, os países do Ocidente adotam uma postura “de superioridade” e “abertamente racista”. Este comportamento intensificou-se “após ter surgido o chamado mundo unipolar”, reforçou Vladimir Putin, descrevendo que “a confiança na própria infalibilidade [do Ocidente] é um estado muito perigoso”, uma vez que se passa a tomar uma atitude de destruir todos “aqueles de quem não se gosta ou que se opõem”. Neste tema, o chefe de Estado evocou a cultura de cancelamento ocidental, que caracterizou como um sentimento que “critica tudo o que é vivo e criativo” e “impede o crescimento do pensamento livre”.
Numa crítica ao valores do Ocidente, o Presidente da Rússia denunciou o que aponta como sendo “noções bizarras”, tais como “dezenas de géneros, paradas e casamentos gays”. No entanto, se as elites ocidentais “pensam que podem injetar essas ideias às suas populações, deixem-nas fazer”. “Mas o que eles certamente não têm o direito de fazer é exigir que os outros sigam a mesma direção”, disse Vladimir Putin, garantindo que a “Rússia nunca vai tolerar que o Ocidente lhe diga o que fazer”.
“O diktat autoritário” do Ocidente
Todos os países que não seguem o modo de vida imposto pelo Ocidente sofrem as consequências desse “diktat“, assinalou Vladimir Putin, que expôs o que diz ser “a substituição de conceitos e significados”. “Os ideólogos e políticos ocidentais têm dito e repetido ao mundo inteiro que não há alternativa à democracia. Mas o que eles estão a referir é o modelo ocidental da democracia dita liberal”, justifica o Presidente da Rússia, notando depois que “todas as outras formas de democracia são desprezadas” — e quem não segue as regras é tratado com “desdém e arrogância”.
Lembrando a altura em que vários Estados europeus ainda tinham colónias sob seu controlo, Vladimir Putin sinalizou que o Ocidente “trata todas as pessoas como sendo de segunda categoria”, à exceção deles — “que são excecionais”. “E assim continua até hoje”, censurou, sublinhando que, agora, a maioria da comunidade internacional “exige um processo democrático nas questões internacionais” e que “não aceita nenhuma forma de ditame autoritário pela parte de alguns países”.
No entanto, o Ocidente continua a exercer uma postura que alega ser “civilizada”, mas, se algum país desrespeita aqueles “ditames”, acaba por ser rotulado como estando a subverter “a ordem liberal baseada em regras”. Em resposta, os países ocidentais “lançam guerras económicas, comerciais, sanções, boicotes, apoiam revoluções e conduzem todos os tipos de golpes”.
A ordem mundial atual patrocinada “por Washington multiplica o caso” e “torna-se cada vez mais intolerante até mesmo com os próprios países ocidentais, com as suas tentativas de mostrar qualquer independência”, reforçou o chefe de Estado russo. Ao mesmo tempo, este “desejo arrogante de liderança mundial e da preservação da liderança por ditames transforma-se numa diminuição da autoridade dos líderes ocidentais” e num “aumento da desconfiança”.
É por isso que, de acordo com Vladimir Putin, existem dificuldades para a Rússia negociar com o Ocidente. “Hoje dizem uma coisa, amanhã dizem outra. Um dia assinam documento, no outro rasgam-no, fazem o que querem.”
A proposta do mundo multipolar de Vladimir Putin
Depois do diagnóstico, Putin avançou com o seu modelo alternativo de contraponto à “nova ordem mundial” que o mundo ocidental estará a tentar impor ao resto da Humanidade. Para substituir este mundo controlado pelo Ocidente, o Presidente da Rússia sugere uma visão multipolar das relações internacionais, uma posição que Moscovo já tem em prática. “Durante séculos, desenvolvemos uma cultura única de interação entre todas as religiões do mundo”, disse Vladimir Putin, exaltando o que diz ser “respeito” entre todos que ocorre em várias regiões da Rússia.
“Estou convencido de que a verdadeira democracia num mundo multipolar pressupõe a possibilidade de qualquer nação, de qualquer sociedade, de qualquer civilização escolher o seu próprio caminho”, explicou o Presidente russo, que salientou que, se os “Estados Unidos e os países da União Europeia têm esse direito”, então “os Estados islâmicos, as monarquias do Golfo Pérsico e os Estados de outros continentes certamente também têm esse direito” — incluindo a Rússia.
Segundo a proposta de Vladimir Putin, o desenvolvimento deve ter como base o “diálogo entre civilizações, baseado em valores espirituais e morais”, algo que é “uma ameaça direta ao monopólio político, económico e ideológico do Ocidente”. “O respeito pelas peculiaridades dos povos e civilizações é do interesse de todos”, vincou.
Defendendo que a Rússia “não está a desafiar as elites do Ocidente”, Vladimir Putin enfatizou que está “simplesmente a defender o seu direito a existir” não só o próprio país que lidera, como também todas as nações. Assim sendo, o objetivo de Moscovo não passa por “substituir o mundo unipolar” por “um bipolar ou tripolar”, já que isso levaria “inevitavelmente a um novo impasse”.
Neste novo mundo, a economia e o comércio mundial “devem tornar-se mais justos e abertos”, sendo mesmo “inevitável a formação de novas instituições financeiras internacionais”. No discurso, Vladimir Putin propôs mesmo que a Organização das Nações Unidas, incluindo o Conselho de Segurança, fosse reformulada, de maneira a “refletir a diversidade das regiões do mundo”.
Vladimir Putin resumiu que, nesta ordem global, todos “se devem ouvir”, devem ser “levados em conta todos os pontos de vistas, povos, sociedades, culturas, os sistemas de visões do mundo, ideias e crenças religiosas”. Isto sem nunca “impor uma única verdade a ninguém”, entendendo-se, simultaneamente, “a responsabilidade que todos têm pelo destino dos povos e do planeta”, de maneira a “formar uma sinfonia que junte a civilização humana”.
Putin pede “negociações” ou antevê mesmo “destruição”
A construção de uma nova ordem mundial será um “processo doloroso”, apesar de “natural e inevitável”. Atualmente, o status quo “está repleto de conflitos globais”, o que é, na opinião de Vladimir Putin, “uma ameaça para a Humanidade, incluindo para o próprio Ocidente”. “Resolver construtivamente essa contradição — essa é a principal tarefa histórica de hoje”, priorizou.
Evidenciando que a Rússia já tentou “construir um sistema de segurança coletiva” no passado — o que foi rejeitado pelo Ocidente —, Vladimir Putin apontou “dois caminhos” para o futuro da Humanidade. “Ou se acumulam os problemas que podem levar à destruição de todos, ou juntos podemos encontrar soluções, ainda que imperfeitas, mas funcionais, que sejam capazes de tornar o mundo mais estável e seguro.”
O Presidente da Rússia acredita “no poder de bom senso”, estando, por conseguinte, “convencido de que mais cedo ou mais tarde tanto os novos centros da ordem mundial multipolar, como o Ocidente” terão de negociar, de modo a terminar com uma “crise que adquiriu um carácter global”. Resta é saber se isso acontecerá nesta década “perigosa, imprevisível e crucial”.