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AFP/Getty Images

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"Bolsonaro é mais perigoso do que Trump"

Em entrevista ao Observador, Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Harvard, diz que Bolsonaro é "autoritário e vai tentar erodir a democracia" e avisa que vai haver "ataques" às instituições.

Quando Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Ciência Política na Universidade de Harvard, nos EUA, falou ao Observador, na manhã desta segunda-feira, já os resultados das eleições brasileiras estavam escritos na pedra: 46% para Jair Bolsonaro e 28,3% para o seu adversário na segunda volta, Fernando Haddad, do PT. A partir dos arredores de Boston, o investigador está habituado a olhar para o Brasil a partir da perspetiva dos EUA. Encontra várias semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas identifica uma grande diferença: por não contar instituições tão fortes como as dos EUA, Jair Bolsonaro pode “erodir a democracia”.

O que se passou ontem foi mérito de Bolsonaro ou fracasso do PT?
Foi as duas coisas. O que aconteceu ontem foi uma rejeição da classe política brasileira muito maior do que qualquer pessoa antecipava. Vários cardeais daquilo que chamávamos de Nova República foram enxotados do poder. Houve vários senadores, governadores e deputados que estão lá há 20, 30 anos, desde a época da Constituinte, que simplesmente agora ficaram em quinto ou sexto numa disputa que elegia dois senadores. Houve gente que era vista como favorita e acabou em quinto ou sexto. Parece que foi de facto uma rejeição da política tradicional num nível muito maior do que as pessoas imaginavam. Então teve essa rejeição da classe política tradicional, que inclui o PT, e que em parte é causada pelas ações do PT e dos outros partidos com quem ele esteva no poder. Mas é também um sucesso do Bolsonaro, que conseguiu perceber isso mais cedo do que todo o mundo. Fez investimentos muito claros no sentido de se apresentar como outsider há muito tempo.

Mas além de vencer a primeira volta com destaque, Bolsonaro criou um efeito noutros políticos, por vezes até de outros partidos. Bastou a alguns candidatos associarem-se a ele para vencerem eleições para governador, senador e deputado. Falou-se muito do fenómeno Bolsonaro na perspetiva presidencial, mas o que vemos agora é que este fenómeno se alastrou ao legislativo. O sistema político está agora feito à medida de Bolsonaro. Concorda com isto?
Eu concordo. O que aconteceu foi que os eleitores decidiram no final em quem iam votar. E na medida em que eles dedicaram todo esse tempo a tentar achar a informação para eleger o Presidente, na hora em que foram votar para governador e senador, eles tomaram um atalho informacional. O cara já tinha gastado tempo e já tinha pensado em quem queria votar para Presidente. Aí, quando chegou para votar para governador, ele pensou: “Ora bem: tem aqui um candidato que está aliado ao cara que eu já escolhi e um que não está”. Ele tomou um atalho e foi para o lado do Bolsonaro. Com isso, fez com que houvesse essa onda. O Bolsonaro levou gente com ele a todos os lugares. Levou deputados, senadores, governadores… Ele ganhou um monte de gente que se associou com ele. Mesmo gente que já eram políticos dos partidos tradicionais e não eram tão novos quanto isso. Mas estiveram nessa mesma sacada de se aliar com ele e de se aproveitar dessa onda da anti-política, que chegou com mais força do que todo o mundo imaginava.

Mas que Brasil sai daqui, se a política passar a ser feita pela anti-política? Que efeitos imediatos é que isto traz?
Os principais efeitos deste tipo de eleição, como vimos em casos na Venezuela, na Itália e no Peru do início dos anos 90, em que um outsider foi eleito para o principal cargo executivo, são de enfraquecimento imediato das normas democráticas pelas quais os políticos tradicionais se guiam. E isto leva a uma erosão da democracia. Isso aconteceu nos casos que tiveram esta situação, às vezes com a quebra total da democracia, como no Peru e na Venezuela. Noutros, levou a uma erosão, porque os novos políticos não se guiam pelas mesmas normas e estratégias. Passam a reconfigurar a política a seu favor e, com isso, passam a fazer as eleições menos justas, menos limpas, tendem a atacar as outras instituições como o judiciário e o legislativo. Quando um chefe do executivo é outsider, os controles nele impostos pelas instituições são vistos como negativos, porque ele e o seu eleitorado entendem que ele tem um mandato para mudar tudo. Só que mudar tudo numa democracia constitucional não é algo que dependa apenas do chefe do executivo. Então, à medida que esses chefes do executivo eleitos por fora do sistema assumem o poder, eles são constrangidos pelas instituições e acabam atacando-as para terem mais espaço para fazerem as mudanças que eles querem fazer.

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"As instituições brasileiras são relativamente robustas. O país enfrentou nos últimos três anos uma tempestade perfeita. É uma crise política e económica sem precedentes. (...) Está claro que houve uma limpeza do sistema, mas não houve um completo colapso."
Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Ciência Política na Universidade de Harvard, nos EUA

E as instituições brasileiras saberão fazer frente aos dois candidatos que seguiram para a segunda volta? Por um lado, Bolsonaro quer aumentar o número de juízes do Tribunal Supremo e indicar ele próprio os magistrados que vão ocupar as novas vagas e também quer ter pelo menos cinco militares como ministros. Por outro, Haddad tem no seu programa uma alteração da Constituição, o que pode ser uma quebra com o pacto constitucional de 1988. Acha que as instituições brasileiras têm força suficiente para evitar estes cenários?
Em geral, as instituições brasileiras são relativamente robustas. O país enfrentou nos últimos três anos uma tempestade perfeita. É uma crise política e económica sem precedentes. Noutros lugares, como o Peru e a Venezuela, quando aconteceu uma crise parecida houve um colapso completo do sistema político. Os principais partidos desapareceram. Na Venezuela, quando essas duas crises se combinaram nos anos 90, os principais partidos passaram de 99% numa eleição para 1% na seguinte. Houve um colapso completo das instituições, dos partidos e de tudo o que organizava o sistema político. No caso brasileiro isso não aconteceu. Está claro que houve uma limpeza do sistema, mas não houve um completo colapso. As instituições são um pouco mais robustas, então. Mas também são menos robustas do que aqui nos EUA, por exemplo, em que o governo de Trump teve de suar sangue para passar o candidato ao Supremo Tribunal que eles nomearam. Mesmo tendo a maioria no Congresso, foi muito difícil para passar. Dito isso, tem razão ao dizer que as duas candidaturas prometem promover mudanças no equilíbrio das instituições em comparação com aquilo que a gente definiu em 1988. Agora, eu não acho que as promessas que o Fernando Haddad faça estão no mesmo nível que as promessas que o Jair Bolsonaro faz.

Não acredita em equivalências entre os dois, então.
Não, de maneira nenhuma. Primeiro, porque as propostas do Bolsonaro são ataques ao equilíbrio dos poderes. Ao aumentar o número de juízes no Supremo, você está reconfigurando os equilíbrios dos poderes numa maneira muito mais ambiciosa do que o PT jamais fez. Esse parece ser o fator fundamental. Algumas propostas do PT que são apontadas como radicais estão no programa do partido há 10, 20, 30 anos. Isso são coisas que vêm desde os anos 80. O PT, por exemplo, não votou na Constituição de 1988. Rejeitaram-na. Mas isso não fez com que, quando governaram, atacassem as instituições. Esta semana eu estava pensando na equivalência entre os dois candidatos e então fiz uma análise com base em 111 indicadores da democracia, que foram elencados por um projeto na Suécia. Durante os governos do PT, desses 111, 100 indicadores não mudaram. Ou seja, comparando o último dia do Governo do Fernando Henrique Cardoso com o último dia do Governo do PT, a democracia no Brasil ficou igual.

Quais foram os 11 que mudaram?
Melhoraram quatro, onde se incluiu a independência do judiciário, que é uma coisa que todo o mundo sabe que mudou…

… mudou, sim, e para prejuízo do PT.
Exatamente. Foi para prejuízo do PT, mas foi um projeto do país. Houve também o aumento da capacidade de o país para organizar eleições, porque começou a haver mais recursos públicos para a campanha. Estas duas coisas melhoraram. E, no que piorou, foram aquelas de que falámos antes: as normas da democracia. Houve um aumento dos ataques do governo ao judiciário, houve um aumento da quantidade e intensidade de movimentos anti-sistema democrático e houve uma diminuição da legitimidade que os opositores veem no governo. Um exemplo disso foi o Aécio Neves dizer, em 2014, que não ia aceitar o resultado da eleição e que tinha de haver uma recontagem dos votos porque podia haver fraude. Mas isso foram as mudanças que ocorreram nesse contexto de aumento de polarização. Fora esse contexto, em todo aquele período, não houve mudanças significativas na democracia. Ela mantém-se estável entre o começo do governo de Lula e o fim do governo de Dilma. Então, por causa dessa experiência, eu tendo a imaginar que quando o PT chega no poder, o partido governa de uma maneira diferente daquela que sugere no seu programa. O PT é mais moderado quando está no governo. E numa situação em que o Fernando Haddad seja eleito, essas propostas que podem ser vistas como tentativas de transformar as instituições não vão fazê-lo tanto quanto as propostas de Bolsonaro. Porque se a experiência nos ensina de algo, é que nos lugares em que candidatos como o Bolsonaro ganharam, eles transformaram deliberadamente o equilíbrio das instituições.

A verdade é que qualquer um dos dois terá de governar com o apoio do Congresso e, do que vimos ontem, o Congresso está altamente fragmentado. Agora, são 30 partidos na Câmara dos Deputados, em vez dos 25 da atual sessão legislativa. O PT continua a ser o maior grupo parlamentar, mas apenas com 56 em 513. E o Partido Social Liberal, de Bolsonaro, está em segundo, com 52. Será o próximo Brasil ingovernável para qualquer um destes candidatos? Ou também aqui Bolsonaro parte com vantagem, já que conta com o apoio de tantos partidos?
É possível. O que importa no caso brasileiro não é só o tamanho do partido do Presidente. A dinâmica brasileira faz com que o partido do Presidente tenha uma pequena representação. O que conta mais é a capacidade do Presidente em construir uma coligação em torno das suas políticas. Com o resultado da eleição de ontem, além de se ter tornado mais fragmentado, o Congresso brasileiro ficou também mais conservador. E isso faz com que a distância entre o Bolsonaro e o legislador mediano seja relativamente menor do que a distância entre o Haddad e o legislador mediano. É mais fácil para o Bolsonaro fazer uma coligação porque as propostas dele vão ser menos problemáticas para esse legislador. Eles têm muitos pontos em comum. E aí eles podem trocar coisas. Por exemplo, há um aumento de uma bancada conservadora de um ponto de vista moral.

A bancada evangélica.
Isso. E o Bolsonaro, muito mais do que o Haddad, estaria totalmente feliz em trocar um reconhecimento de algumas legislações que lidam com costumes — como algumas políticas para homossexuais ou de saúde para as mulheres — por um acordo nas mudanças institucionais que ele quer fazer. Ele dá para essa bancada essas mudanças na legislação de costumes e recebe em troca o apoio para as mudanças que ele quer fazer nas instituições e na economia. É muito mais difícil para o Haddad fazer isso. Essa troca é muito mais complicada para ele, porque o legislador mediano está agora muito mais próximo do Bolsonaro. Bolsonaro deve ser capaz de construir uma coligação que o sustente, que lhe permita fazer algumas das mudanças que ele está sugerindo.

Existe um debate em torno daquilo que Bolsonaro é. Há quem lhe chame fascista, de extrema-direita, populista, conservador e ele próprio ontem disse que o caminho do Brasil deve ser o centro-direita, portanto é aí que ele próprio se coloca. Que definição lhe daria?
Para mim ele é um populista de direita. Ele não é de centro-direita, é de direita. E é um populista no sentido em que se apresenta como anti-establishment e que oferece propostas mais radicais do que aquelas que o eleitor mediano abraça. O eleitor mediano brasileiro não quer o regresso da ditadura e o Bolsonaro vai lá e diz que a ditadura militar foi boa. O eleitor mediano brasileiro não acha isso, só que na situação atual também vê pouca diferença entre os dois regimes. Ele é um populista de direita — o que, no caso brasileiro, é diferente do populista de direita da Europa. Porque ele se posiciona para lá do eleitor mediano não só na dimensão dos direitos e na dimensão do Estado social. No cabo brasileiro, o eixo em que os populistas se posicionam põe em causa a própria democracia. Os populistas na Europa, por mais direitos que tenham atacado, eles nunca vão acabar com a democracia.

"O que teria sido da candidatura do PT se ninguém tivesse falado que o Lula ia ser candidato e se o Fernando Haddad fosse candidato desde o princípio? Se tivessem adotado essa estratégia alternativa, o Fernando Haddad estaria na segunda volta ou não? Eu acho que não."
Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Ciência Política na Universidade de Harvard, nos EUA

Bolsonaro já falou nesse sentido, numa conhecida entrevista em 1999, onde disse que “através do voto você não vai mudar nada nesse país” e que a solução era matar “uns 30 mil”. Foi neste homem que os brasileiros votaram. Mas também foram os brasileiros que disseram na ante-véspera da eleição que preferem a democracia mais do que nunca — 69%, o maior número desde que a Datafolha começou a fazer esta pergunta, em 1988. Então, teve de haver democratas a votar em Bolsonaro. Mas e o próprio Bolsonaro? Acha que ele é um democrata?
Ele não é um democrata, ele é autoritário. Se deixarem, ele vai fazer as eleições menos livres e justas, vai limitar os controles do legislativo e do judiciário sobre o executivo e vai diminuir direitos individuais. Ou seja, vai diminuir os três pilares da democracia. Se o deixarem, Bolsonaro vai prejudicar a democracia nessas três dimensões. Não acho que ele seja um democrata. Agora, se pegar nas coisas que ele dizia no começo dos anos 90, o que aconteceu foi que ele percebeu que talvez ele fosse radical demais naquele contexto. Não sei se é uma mudança no coração dele, em que ele percebeu que estava errado, ou se é uma mudança estratégica. Porque é difícil ganhar para Presidente e dizer ao mesmo tempo que o voto não adianta nada. Não pode dizer que o voto não funciona e depois pedir “votem em mim”. Ele teve que se moderar em algumas dimensões para se poder tornar num candidato palatável na eleição nacional. Se isso é uma mudança estratégica ou se ele de facto acredita que tem que haver eleições, aí a gente já não sabe porque teríamos de entrar na cabeça dele para saber. Mas eu não acho que ele seja um democrata. Eu acho que ele é autoritário e vai tentar erodir a democracia.

É impossível falar da subida de Bolsonaro sem falar dos últimos anos de crise no PT e da Lava Jato. Nesta campanha, e até antes dela, quais considera os maiores erros do PT? Foi apostar em Lula quase até ao fim ou, desse por onde desse, já era impossível ter uma boa votação depois de tudo o que se passou a partir de 2014?
A resposta é a segunda opção. Me parece que o PT fez o que tinha que fazer para sobreviver depois do que aconteceu em 2014. O seu melhor candidato do ponto de vista eleitoral, não do ponto de vista normativo, era o Presidente Lula. Era ele que tinha mais chances de ganhar a eleição. Dito isso, o Presidente Lula não podia concorrer. Então o PT manteve o capital político do Lula até ao final e depois transferiu-o rapidamente para uma outra pessoa.

Mas isso não funcionou.
Funcionou até uma certa medida, porque o Fernando Haddad está na segunda volta. Como não funcionou?

É um facto que Haddad está na segunda volta, mas para todos os efeitos perdeu a sua área de expansão. Que o PT continua a ser forte no Nordeste é indiscutível. Mas o Sul e o Sudeste, para onde o PT se expandiu nos seus melhores anos, já não conta com o PT.
Temos de olhar para o contrafactual aqui. Neste caso, é: o que teria sido da candidatura do PT se ninguém tivesse falado que o Lula ia ser candidato e se o Fernando Haddad fosse candidato desde o princípio? Se tivessem adotado essa estratégia alternativa, o Fernando Haddad estaria na segunda volta ou não? Eu acho que não. E a razão é que, se Haddad se tivesse apresentado como alguém mais moderado, ele teria dois problemas. O primeiro era transferir o capital político do Presidente Lula para ele, que foi importante para chegar à segunda volta. O segundo problema era que este era um mercado que estava lotado de opções moderadas. Tinha Alckmin, Ciro e Marina. Se o Fernando Haddad se aproxima dessas pessoas, uma parte dos eleitores poderiam muito bem dizer: por que razão vou votar de novo no PT, com um candidato tão parecido com o Ciro, quando posso votar no Ciro?

Mas não acha que o PT parte para estas eleições como um partido falido? Afinal de contas, durante meses anunciou como seu número 1 um homem que toda a gente sabia que não podia ser candidato.
Mas a comparação é a de perceber qual seria o resultado da alternativa. E a alternativa teria sido assumir que o Lula não podia ser candidato, deixar ele preso em Curitiba e fazer do Fernando Haddad um candidato normal. Apresentar ele não como herdeiro do Lula, mas apenas como candidato do PT, para o mal e para o bem. Se tivessem feito isso, eu acho que ele hoje teria tantos votos como o Alckmin. Teria 5% dos votos.

"A tropa de choque da Dilma não passou. Lindbergh não passou, a Vanessa Grazziotin não passou, o Fernando Pimentel não passou, a Dilma não passou... A única pessoa da tropa de choque da Dilma no contexto do impeachment que passou foi a Gleisi Hoffmann."
Fernando Bizzarro, investigador brasileiro em Ciência Política na Universidade de Harvard, nos EUA

Sim, era isso que lhe apontavam as sondagens. Mas não deixa de ser sintomático do estado do PT e da esquerda brasileira ter de se socorrer de estratégias irrealistas e meramente retóricas em vez de entrar no jogo da política propriamente dita. O jogo da política foi esvaziado. O PT tem um programa, mas desistiu de fazer uma eleição programática. E nessa desistência, Bolsonaro cresceu.
Você tem toda a razão aí. Essa foi uma campanha que o PT jogou para não perder. O PT não jogou para ganhar a eleição. Ele jogou para forçar um segundo turno, foi isso que eles fizeram até agora. A estratégia foi impedir que a História recente do partido e a experiência que os brasileiros tiveram com o PT no governo, principalmente no Governo Dilma, não causasse o desaparecimento completo do PT. Que era o que parecia que ia acontecer. No contexto do impeachment, o número de pessoas que se identificavam com o PT, que sempre foi o maior no Brasil, desabou para 10-12%. Antes, chegou a haver 30%. Então, o partido tentou construir uma memória para as pessoas que não fosse a memória do Governo Dilma. E valorizar o Presidente Lula foi a estratégia adotada, que me parece que era de facto a estratégia mais viável. O PT jogou nos últimos três anos para se reconstruir como a principal força da esquerda brasileira. Uma esquerda que estava, no final do Governo Dilma, muito enfraquecida pela experiência no poder. Aí, você tem razão. A campanha que fez é sintomática da fragilidade do que o PT teve nos últimos quatro anos.

E o PT, mesmo passando para a segunda volta, passa fragilizado. E não é só no que diz respeito a Haddad. Dilma Rousseff não foi eleita senadora, Lindbergh Farias também não o conseguiu, Fernando Pimentel também ficou pelo caminho…
… a tropa de choque da Dilma não passou. Lindbergh não passou, a Vanessa Grazziotin não passou, o Fernando Pimentel não passou, a Dilma não passou… A única pessoa da tropa de choque da Dilma no contexto do impeachment que passou foi a Gleisi Hoffmann [presidente do PT, eleita deputada no Paraná] e foi porque foi eleita deputada. Se fosse para senadora, também não tinha passado.

Posto isto, é possível o PT fazer uma reviravolta?
É muito difícil. O Fernando Haddad vai ter de imediatamente ir buscar os votos que ele não tem. Tem de ir à sua direita. Tem de ir buscar os votos das pessoas que votaram no Ciro, na Marina e no Alckmin, e vai ter de fazer isso rápido. E para fazer isso vai ter de se apresentar como alguém mais moderado nessas dimensões da democracia — por isso, ninguém desse centro vai comprar essa ideia da Constituinte exclusiva. Querem uma frente pela democracia para impedir a eleição do Bolsonaro.

E essa trajetória de moderação terá de passar por um afastamento de Lula? Ou o PT não consegue sair debaixo da sombra do ex-Presidente?
As duas coisas são verdadeiras. A trajetória de moderação depende de um afastamento do Lula, porque uma parte desse eleitor não quer ver o Lula nem pintado de ouro. Mas é difícil se afastar do Lula porque, na medida em que ele deixa de ser Presidente e os anos foram passando, ele se tornou a grande liderança do PT. O nível de controle que ele exerceu sobre o partido depois do seu governo é muito maior do que tinha sido antes. Agora, o PT tem de se afastar do Lula, isso é verdade, mas isso é difícil dado o nível de predominância que ele tem sobre o partido. É ele quem controla, é ele que dá as cartas. E se querem ganhar as eleições vão ter de arrumar um jeito para se afastar disso.

Nestas eleições, também é evidente o colapso do centro, mais visível com o resultado de 5% de Geraldo Alckmin e do PSDB. Faz lembrar o que se passou nos EUA entre Jeb Bush e Donald Trump, dentro do Partido Republicano. Tal como Jeb Bush, Alckmin é um homem com experiência de governo, com máquina partidária à sua volta, tendencialmente moderado. Mas depois foi derrotado por um outsider. No caso dos EUA, o outsider é Donald TrumpNo Brasil, é Jair Bolsonaro. O que se passou com o PSDB para chegar a este ponto?
Historicamente, o PSDB foi central para a democracia brasileira sem ter convertido os eleitores que votavam no PSDB em tucanos [nome dado aos militantes daquele partido]. Houve eleição atrás de eleição de gente que votava no PSDB para todos os cargos, mas que nunca se identificaram como PSDB. O partido nunca fez o tipo de investimento que o PT fez para transformar o eleitor fiel em partidário. Eu me lembro de uma vez em que eu fui a um evento do PSDB em que o Fernando Henrique Cardoso estava falando. E ele dizia sempre à militância: “Vocês têm que convencer as pessoas a se identificarem como tucanos”. Porque as pessoas veem ser tucano como um estado de espírito. Elas acordam no dia da eleição como tucano, votam no PSDB de cabo a rabo, mas no dia seguinte perguntam-lhe se têm partido e eles dizem: “Não! Eu sou independente”. E foi isso que aconteceu. O PSDB nunca fez investimento na marca do partido, nas ideias e em fidelizar o eleitor que votava no PSDB como um partidário do PSDB. O eixo de organização da política brasileira é o petismo e o anti-petismo e o PSDB era um receptáculo do anti-petismo. E até agora nunca tinha havido um competidor à direita que fosse digno de nota, nunca houve um receptáculo melhor para o anti-petismo. Mas agora houve. E então todo o mundo abandonou o PSDB. Sobrou ali 4 ou 5%, que é o que o partido tem de identificação. O que também falhou no PSDB foi terem achado que ia ser possível ganhar com dinheiro, tempo de televisão, paciência e um candidato que fala manso. Um candidato que, tal como Jeb Bush, tinha sido um bom governador. Mas concorreu na hora errada. Igual a Jeb Bush, Alckmin podia ser um bom candidato. Só que o tempo não era para ele e acabou sendo dizimado.

E assim se chegou a Donald Trump nos EUA e assim se está a chegar a Jair Bolsonaro no Brasil. Que semelhanças e diferenças é que identifica entre estes dois homens?
As semelhanças são que os dois são anti-sistema, são populistas e são ameaças à democracia nos seus países. Mas acho que há uma diferença de intensidade. Me parece que o Bolsonaro é uma ameaça maior do que é o Trump, em parte porque as instituições nos EUA são mais robustas. Trump tem mais controlo sobre ele. Trump, ao fim e ao cabo, é o candidato de um dos dois grandes partidos dos EUA, enquanto o Bolsonaro simplesmente é dono do partido dele. E, por último, o Bolsonaro parece ser ainda mais radical porque parte da sua retórica envolve a deslegitimização e a transformação da democracia, que é uma coisa que não está tão presente no discurso do Trump. O Trump, até agora, nunca pareceu dizer nada que atentasse contra o sistema. Não diz: “Bom, a partir de agora há pessoas que não têm direito a votar e vou fechar o Congresso”. Ele nunca disse isso. E Bolsonaro já disse. Ele é mais perigoso do que o Trump.

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