796kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

GettyImages-1169824873
i

No novo livro, o escritor norte-americano leva os leitores de novo a Los Angeles nos anos 80

AFP via Getty Images

No novo livro, o escritor norte-americano leva os leitores de novo a Los Angeles nos anos 80

AFP via Getty Images

Bret Easton Ellis: "Quando envelhecemos deixamos a pose. Sinto-me mais vulnerável agora do que aos 29 anos"

"Estilhaços", olhar nostálgico sobre a Los Angeles dos 80s, regado a excessos e privilégio, dissolve os limites realidade-ficção. O autor americano olha para trás pela primeira vez. Entrevistámo-lo.

Bret Easton Ellis está de volta. O autor de Psicopata Americano regressa à escrita de romances passados 13 anos da publicação de Quartos Imperiais. O novo livro tem gente rica, sexo e cocaína, música e cinema, roupa de marca e carros de luxo, festas em mansões e assassinos em série, mas também uma inesperada vulnerabilidade no protagonista — que é Bret, o próprio. “Sinto-me muito mais vulnerável agora do que aos 29 anos”, admite Ellis ao Observador. “Quando era mais novo sentia que tinha de fazer pose, havia uma necessidade de ser cool.

Em Estilhaços, que agora chega às livrarias portuguesas editado pela ASA, o provocador autor norte-americano mergulha na nostalgia de um tempo perdido: anos violentos, frívolos, regados a excessos, retratados em páginas em que os factos e a ficção se misturam. É um coming of age com laivos de thriller que remonta a 1981, num privilegiado liceu em Los Angeles onde Bret, com 17 anos, vive o fim da escola lidando com questões como a descoberta da sexualidade, o consumo de drogas, as dinâmicas particulares das relações de amizade (e amor), tudo sob a fúria de um assassino em série.

A ruminar a ideia há décadas, as primeiras páginas do romance escreveram-se nos primeiros dias da pandemia, mas acabariam por chegar antes enquanto podcast e só depois como manuscrito. Dir-se-á que é o livro para o qual toda a obra de Ellis remete, ou que Estilhaços é uma tentativa de juntar os vários “eus” que compõem Bret Easton Ellis.

Em entrevista, numa curta passagem por Lisboa (onde esteve numa conversa na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento), o autor fala sobre a nostalgia por uma juventude idealizada, o apelo pelo horror, o próximo livro e a cultura do cancelamento, que, acredita, “está a acabar”. Porquê? “As pessoas perceberam que estamos todos na lista.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há um diálogo em Estilhaços (p.176) em que o protagonista tem de explicar o livro Menos Que Zero (1985): “Eu não sabia exatamente como lhe descrever Menos Que Zero, e não queria: era sobre mim mas não havia história, havia cenas mas não tinha propriamente uma narrativa, apenas uma determinada qualidade, um torpor, uma deriva, que eu estava a tentar aperfeiçoar. Como poderia explicar esta sensação amorfa a alguém?” É o que o escritor sente quando tem de explicar um livro?
Não, não é. Neste caso, o jovem Bret está a ter dificuldade em articular o que é realmente este livro que está a escrever, mas penso que quando o tiver terminado poderá provavelmente dar uma resposta melhor. Naquele momento e naquela cena não sabia como descrever a um adulto este sentimento que nunca vi refletido num livro. Foi esse o princípio orientador para escrever Menos Que Zero. Queria escrever isso e traduzi-lo numa narrativa. Qual era essa narrativa? Qual era a história? Não havia realmente uma história. Era um sentimento. Era uma vibe. Como é que poderia explicar isto a alguém?

Passaram 13 anos desde que publicou o último romance e assume que Estilhaços tem um certo tom de “finalmente”. Quando é que percebeu que era o momento de o escrever?
Quando é que eu queria escrevê-lo? Isso nunca acontece. O livro quer ser escrito e o livro toma a decisão por mim. Não houve um dia em que acordei e disse: “Vou escrever Menos Que Zero. Foram anos a sentir e a tomar notas e a escrever no meu diário e a ler Joan Didion e Ernest Hemingway e a pensar na história. Queria escrever sobre a cultura juvenil. Queria escrever sobre parte da minha vida. Por qualquer razão, aos 56 ou 57 anos, comecei a falar com as personagens. Comecei a falar com as personagens com quem andei na escola — na minha cabeça, claro, não vejo nenhuma destas pessoas há 40 anos, mas estou a ter conversas com elas. Estou a pensar quando tinha 17 anos. Estou a pensar em Buckley, a minha escola preparatória. Estou a pensar no que fiz nesse ano. Estou a pensar na Debbie Schaefer. Estou a falar com o Matt Kellner e o Ryan Vaughn e com estas outras personagens e há uma pressão a crescer em mim.

GettyImages-1181684707

Bret Easton Ellis escreveu sete romances, uma coletânea de contos e um livro de não-ficção

Getty Images for RFF

Mencionou a nostalgia como um sentimento, mas gostava de lhe perguntar enquanto atributo: é uma pessoa nostálgica?
Não sou uma pessoa nostálgica, mas sou nostálgico em relação a este ano em particular e a este momento da minha vida. Todas as outras vezes que estava a tentar escrever Estilhaços escrevi duas páginas e sabia que não funcionava, não me sentia nostálgico nessa altura. Como é que podia sentir nostalgia em 1982? Estávamos em 1982. Agora estava a sentir-me nostálgico em relação a esta época então desabafei. Tirei-o do meu sistema. É isso que um livro faz. A pressão que estava a sentir, a pressão destas pessoas e o facto de querer explicar-me a elas e dizer-lhes o quanto as amava e quais eram realmente os meus sentimentos. Essa foi também uma emoção dominante. Não se trata de um intelecto. Não era uma ideia intelectual. Era um sentimento que tinha de explorar.

É visceral, catártico?
Absolutamente.

Neste livro faz uma incursão assumida na autoficção. A pergunta óbvia é: o que é facto e o que é ficção e porquê misturar os dois. Mas como é que, enquanto escritor, se doseia cada um?
Simplesmente acontece. Não estou a pensar na autoficção. Quero divertir-me. Muita coisa não é autobiográfica. Mas não me interessa o que é ou não. Não é algo que eu esteja a intelectualizar demais. Não estou a pensar nisso. É apenas um sentimento. Queria escrever sobre o regresso a casa, sobre uma coisa que me aconteceu no Beverly Hills Hotel com um produtor mais velho. Queria escrever sobre todas estas coisas que me aconteceram quando estava no último ano do liceu. O Robert Mallory não é real. Uma série de coisas não são reais, mas são metáforas sobre os perigos da escrita, os perigos de ser um romancista, os perigos de ser alguém que é criativo, como podemos tropeçar nisso e começar a ver e ouvir coisas que não existem, que é realmente o que é suposto fazer como escritor: inventar coisas. Mas era o que eu estava a fazer os 17 anos. Era um ator. Era um mentiroso. Fingia ser o namorado de uma rapariga. Estava a ter sexo secreto com um atleta que acabou por nunca mais me falar porque contei a alguém. Era um coscuvilheiro. Um mentiroso. Não tinha controlado o meu superpoder. Não tinha controlado o meu superpoder e estava fora de controlo. Foi um ano muito dramático para mim. Queria escrever sobre isso em vez de escrever sobre as festas. Mas a decadência do Menos Que Zero era algo que era mais fácil de alcançar para mim do que Estilhaços. Nenhum dos meus livros é necessariamente feito de coisas intelectuais, em que eu pense coisas desse género. Por exemplo: qual é a diferença entre o real e o não real? Porque é que isso é importante? Estou apenas a escrever o livro que estou a sentir.

48 Horas com José Rodrigues dos Santos, máquina de fazer livros: “Posso não ser profeta, mas o grande público é que interessa”

A autoficção pode ser controversa na medida em que deixa os leitores a questionar a autenticidade da narrativa, mas o que acaba de me dizer faz-me concluir que não escreve exatamente a pensar no leitor.
Escrevo para mim. Só para mim. Nunca escrevi para um leitor na minha vida. Nunca escrevi um livro para um leitor. Nunca escrevi um livro para um editor, um agente, um editor, um leitor, ninguém. Escrevo-o porque tenho de escrever o livro. Sinto-me no livro. E depois, se uma editora quiser publicá-lo e pagar-me algum dinheiro, força. Até mostrei isto ao meu agente. Fiz isto como um podcast. As pessoas pensaram que era um livro de memórias, uma história real. E conseguimos muito mais subscritores. As pessoas estavam mesmo a gostar. E quando as pessoas se aperceberam de que não sabiam se isto era real ou não, já estavam apanhadas. Tivemos um ano fantástico. Mas fi-lo para mim próprio. Sempre escrevi tudo para mim. Por isso, o leitor não tem nada a ver com isso. O crítico não tem nada a ver com isso.

Não está a ler as críticas do Goodreads [site de críticas de livros], portanto. 
A primeira vez que ouvi falar no Goodreads foi com este livro. Não sabia o que era. Nunca ouvi falar nele até alguém me dizer para ver as críticas ao Estilhaços. Fui lá ver: uma estrela, cinco estrelas, uma estrela, cinco estrelas. Nem sabia o que era DNF.

Não acabei [em inglês, “did not finish”].
É. Não sabia. Agora sei o que é. E sei que sou normalmente um escritor de uma ou cinco estrelas.

É polarizante.
Polarizante, sim.

"Estilhaços", de Bret Easton Ellis; tradução de Elsa T. S. Vieira; edição da ASA

No começo do livro menciona como a sua persona literária de “príncipe das trevas”, está a “desaparecer” (p. 15) e ao longo do romance é visível como o Bret, personagem, mudou ou está a mudar. O Bret, autor, mudou também?
Completamente. Passei por tantas fases na minha vida desde o Menos Que Zero. Nunca escreveria esse livro hoje. Ou As Regras da Atração, o livro que escrevi quando estava na faculdade. Ou o Psicopata Americano, nunca escreveria esse livro agora, mas foi um livro importante para mim, enquanto jovem a tentar tornar-me um homem em Nova Iorque. Ou o Glamorama, passei oito anos a escrever esse romance. Adorei-o, mas nunca passaria oito anos num romance agora. É escandaloso. Mas estava a divertir-me tanto que não conseguia parar de o escrever. Os meus livros mudaram comigo. E o Estilhaços, não havia maneira de ter escrito este livro há 10 ou 20 anos. É o livro de um homem velho, de certa forma. Ele está a olhar para o seu passado. Essa é a chave do livro. Mudei completamente, passando por estas metamorfoses de sentimentos e de maturidade ou imaturidade. Mudei mesmo.

Em todos os romances prévios, os narradores tinham uma idade aproximada da sua quando os escreveu.
É verdade. Todos eles.

Mesmo o último livro que escreveu, Branco, era sobre temas contemporâneos. Esta parece ser a primeira vez em que olha objetivamente para o passado em vez de escrever sobre o presente.
Sem dúvida. Mas estava a senti-lo no presente. Estava a olhar para estes acontecimentos com 57 anos. Este livro não foi escrito por um jovem de 17 anos. Foi escrito a partir de uma pessoa de 57 anos.

O que muda quando se deixa de escrever sobre o impacto do momento, e antes com a distância da experiência? Isso reflete-se no estilo da escrita, por exemplo?
Totalmente. Nunca tinha escrito um livro como este. Nunca tinha escrito este tipo de história de coming of age, sobre a diferença, a demarcação entre a adolescência e a idade adulta, a inocência e a corrupção. Uma história que é contada num estilo quase do século XIX, como Dickens ou como Tolstói. Flaubert, Balzac. Esta visão panorâmica de uma recriação histórica de Los Angeles nessa altura, com muitas divagações sobre música, cinema, restaurantes. Todas estas coisas que eu queria fazer imitavam mais o romance do século XIX do que o romance do século XX. Penso que em Lunar Park utilizei uma autoficção semelhante, se quisermos chamar-lhe assim, mas era muito mais satírico. Isto foi muito mais sério e sincero. Algumas pessoas, alguns críticos que gostavam do outro Bret não gostaram desta nova sinceridade. Viram [este livro] como uma espécie de análise de um trauma que me aconteceu. E todo aquele ano foi um trauma. Escrevê-lo foi o exorcismo, finalmente, de deitar tudo cá para fora e falar sobre isso. Também o estilo de escrita mudou completamente. Esta era uma história emocional, grande e extensa, com muitos cenários, muitas cenas grandes que precisavam de ser coreografadas de uma certa maneira e exigiam um certo tipo de linguagem. E esta é uma linguagem que eu nunca tinha usado antes.

"Algumas pessoas, alguns críticos que gostavam do outro Bret não gostaram desta nova sinceridade. Viram [este livro] como uma espécie de análise de um trauma que me acontece"

É curioso dizer que estava com mais emoção. Se há uma série de ingredientes reconhecíveis dos seus livros, como um assassino, o abuso de substâncias, as referências a marcas de moda, também se nota que há uma vulnerabilidade na personagem principal que nunca se encontrou nos protagonistas que tende a escrever.
Absolutamente. Estou mais vulnerável. Quando envelhecemos somos mais vulneráveis e estamos mais disponíveis a ser honestos. Não nos importamos muito. A minha mãe, aos 80 anos, não tem filtro. E eu gosto disso. Quando era jovem sentia uma necessidade de posar, uma necessidade de ser cool. Também estava a criticar isso em Psicopata Americano. Sentia que havia algo na forma de me apresentar que era tão importante como a apresentação, que havia algo na apresentação que era muito importante e que era uma espécie de pose. Isso não quer dizer que não fosse autêntico. Era autêntico, mas também era uma pose. É o que os jovens fazem. Para atrair sexo ou para parecerem fixes e ganharem dinheiro ou o que quer que seja. Mas a pose começa a deixar-nos à medida que envelhecemos. A vida acaba com ela. E, na meia-idade, quando nos apercebemos que envelhecemos e que estamos fora da fase biológica da atividade sexual, reprocessamos realmente o que significa ser humano e o que significa ser homem. E tornamo-nos muito mais vulneráveis. Não queremos ser. É uma transição difícil de fazer, mas acaba por acontecer. Sinto-me muito mais vulnerável agora do que aos 29 anos.

Numa entrevista à BBC sobre este livro diz que nele “não há intenção satírica. E sem sátira, não há julgamento”. Considera-se menos julgador, hoje?
Completamente. Sinto-me menos julgador hoje. [Pausa] Não, sinto menos necessidade de anunciar que estou a julgar. Guardo-o para mim. É essa a diferença. Sou crítico. Todos nós somos. Tenho um podcast, por isso falo sobre filmes. Entrevisto pessoas. Sou um crítico.

“Embora estivéssemos conscientes do alegado racismo do clube, não associávamos a isso um significado real ou profundo, porque 1981 não nos pedia que o fizéssemos”, escreve. “Dizer que algum de nós tinha consciência política era esticar essa noção para território de contos de fadas: éramos adolescentes distraídos pelo sexo e por música pop, por filmes e e celebridades, pela luxúria e pelo efémero e pela nossa própria inocência neutra” (p.379)
Tudo isto é verdade.

2023 pede mais aos jovens do que 1981? Ser jovem naquele tempo era menos exigente do que é hoje?
100%. E mais divertido. E menos pessoas morriam. E ninguém estava a tomar medicamentos. E não havia nenhum tiroteio em escolas. E a taxa de suicídio não tinha disparado. Bem, 50.000 por cento de 1981 a 2021. Sim, era uma altura melhor.

Há mais pressão sobre os jovens em relação a determinados temas ou é uma inevitabilidade face ao estado do mundo?
Não sei, porque toda a gente é diferente. Tornei-me amigo de muitos zillennials que rejeitam completamente os valores dos millennials e gozam com o parque, com os tiros e coisas do género. Para eles, a ideia de trigger warnings e espaços seguros é completamente anátema para a realidade e uma espécie de utopia assustada que os millennials criaram, esta ansiedade excessiva. Por isso, não sei. Quer dizer, acho que muda de geração para geração. Ou pelo menos aquilo a que precisamos de reagir. E acredito que a pressão e a forma como as pessoas reagem ao que se está a passar no mundo neste momento é uma coisa individual. Podemos reagir em excesso, reagir ou não reagir de todo. Depende realmente de cada um. Não estou a ver o mundo a ter esse poder sobre o indivíduo. Penso que o indivíduo deve ter o poder de não deixar que o mundo o domine. Nem todos podemos ser Buda. Nem todos podemos ser completamente neutros. Mas penso que a reação exagerada tem sido um grande problema em muitas áreas nos últimos, sei lá, oito, dez, doze, catorze anos. Cancelar pessoas por causa de piadas é muito estúpido. Arruinar carreiras por causa disso é simplesmente estúpido. Acho que a cultura do cancelamento está a acabar. Acho que as pessoas percebem que estamos todos na lista. Estamos todos na lista. Por isso, temos de parar com isto.

Teria escrito esta passagem se tivesse feito o livro antes? Isto é, estava consciente nessa altura do que estava a acontecer no clube, por exemplo?
O que estava a acontecer lá não significava nada para nós. Não lhe atribuo qualquer significado, exceto que era 1981 e eram pessoas ricas que o controlavam e não queriam mulheres, judeus ou negros no clube. Agora, deste ponto de vista, a partir de agora, posso dizer: sim, isto é terrível. E devíamos ter-nos debruçado sobre o assunto em duas páginas. Mas era assim que nos sentíamos, de facto. Não era de todo um ambiente politizado. Havia miúdos na minha sala de aula que votaram no [Ronald] Reagan e ninguém se importava. Não havia discussões nem pessoas a gritar que não se devia votar nesta pessoa ou noutra. É uma altura muito mais calma.

"Falar sobre qualquer coisa neste momento: as eleições, Trump, Israel, não vai acontecer comigo. Envelheci. Estou demasiado velho para lutar"

É só a questão do tempo ou o facto de também pertencer a um mundo privilegiado?
O mundo privilegiado tem muito a ver com isso, é verdade. O mundo privilegiado coloca-nos numa sala separada que é ligeiramente mais protegida. Isso é verdade. E isso forma as nossas atitudes em relação ao mundo e a forma como vemos a injustiça.

Era disso que tratava o Branco, que ia ser chamado de “homem branco privilegiado”. Eu ia ser muito direto e dizer que esta era a minha opinião sobre o que se estava a passar. Teria sido muito diferente se tivesse sido escrito por uma adolescente lésbica negra. Ia ser um cenário muito diferente, um ângulo, um olhar muito diferente. E partiu desse facto, de onde eu estava. Isso não o torna menos válido. Não faz com que a voz de ninguém seja menos ou mais válida por vir dessa secção. Essa é a coisa terrível sobre a interseccionalidade, que é a maior mentira e a pior coisa que existe. Isso não significa que a voz de alguém não seja menos importante do que a de outra pessoa por causa de uma deficiência ou marginalização ou algo do género. Isso é uma fantasia completa, uma utopia, uma mentira progressista. Não é real. Há pessoas, obviamente, que são muito mais inteligentes e articuladas do que outras pessoas e não tem nada a ver com o seu género, a sua identidade, a sua deficiência, a sua marginalização. Não tem nada a ver com isso. Essa é uma bela mentira utópica que está a ser dada às pessoas e que as pessoas estão a acreditar nela. Mas, na realidade, é que não funciona. Não faz mexer a agulha.

Porém, nunca se aproximou de um registo em que poderia ser acusado de apropriação cultural, por exemplo. Falou sempre de uma perspetiva que é a sua.
Falo também a partir de uma posição de crítica, de crítica do privilégio. É disso que trata Psicopata Americano. É disso que trata Menos Que Zero. Talvez tenha sido isso que me deu um livre-trânsito, porque eu estava a criticar o privilégio. Esse foi um aspeto dos livros que os tornou, acho eu, para algumas pessoas, mais interessantes do que se estivessem apenas a chafurdar no seu privilégio e não houvesse aquela tensão sobre os perigos do privilégio, a cegueira a que o privilégio pode levar uma sociedade inteira em Psicopata Americano. Gosto muito da Geração X. É a minha geração preferida, mas tínhamos problemas. Tivemos mesmo. Tornámo-nos materialistas. Éramos ligeiramente superficiais. Acreditámos na crueza dos anos 80 do Reagan.

Talvez devêssemos ter sido um pouco mais desconfiados do que isso. Talvez estejamos a divertir-nos demasiado. Talvez tenhamos tido demasiada liberdade. Nunca deixei de ser crítico de alguma coisa. Nunca fui capaz, é preciso ver os dois lados de tudo para nos movermos pelo mundo sem ficarmos confusos. É preciso ver o que Fitzgerald disse ser o horror e a beleza de uma rosa. Temos de ser capazes de olhar para uma rosa e ver a sua beleza e também o seu horror. De onde é que isto veio da natureza? Há pétalas vermelhas, este caule verde, os espinhos a sair dele. Ou podíamos olhar apenas para o belo botão da rosa e encontrar beleza nele. Toda essa noção é algo que ficou comigo quando o li pela primeira vez. Quando eu era adolescente.

Porque é que o livro não se chamou então “homem branco privilegiado”?
Porque o meu editor achou que era demasiado jocoso. E que era um livro mais sério do que isso. Disse-me: “Estás a vender-te por pouco”. E que tal chamar-lhe Branco? E era isso que queríamos. E sabíamos que isso ia chatear alguns. Que iria provocar alguns problemas. E foi o que aconteceu. As pessoas ficaram zangadas. As pessoas ficaram zangadas.

É conhecido pelo seu comentário social e cultural.
Menos do que antes. Afastei-me um pouco.

Porquê?
Interesso-me mais pelas pessoas. Estou a fazer muito menos coisas políticas do que fazia em 16, 17, 18, 19. Já não me interessa. Acho que é muito difícil viver num país onde se sente que se está a viver num mundo falso, onde se sente que o governo e os meios de comunicação social estão unidos à grande indústria farmacêutica. É um lugar difícil de viver, na América, onde 90% das pessoas não confiam nos seus meios de comunicação. Agora, o que é que se faz com isso? Faço podcasts sobre isto? Às vezes falo nisso, mas agora estou mais interessado nos indivíduos e estou mais interessado em fazer investigação, investigação sobre eles e em ter conversas com eles e falar com eles, em vez de me armar em arrogante, falar de merdas e queixar-me de merdas que sei que metade do meu público vai odiar. A outra metade vai adorar. Já não é a minha onda. Foi a minha cena durante algum tempo, mas já não o faço. Continuo a gostar de fazer críticas e gostava de estar a fazer mais críticas de filmes e de televisão. O meu podcast preferido deste ano foi um de duas horas e meia, três horas e duas partes sobre todos os meus filmes preferidos, antigos e novos que vi este ano.

Foi muito divertido escrever, mas fazer coisas culturais, falar sobre a vacina e falar sobre qualquer coisa neste momento, as eleições, Trump, Israel, não vai acontecer comigo. Envelheci. Estou demasiado velho para lutar.

"Gosto muito da Geração X. É a minha geração preferida, mas tínhamos problemas. Tornámo-nos materialistas. Éramos ligeiramente superficiais. Acreditámos na crueza dos anos 80 do Reagan. Talvez devêssemos ter sido um pouco mais desconfiados do que isso"

Escolheu como epígrafe do livro uma passagem de 1984, de George Orwell: “…a querer guardar um segredo, se via obrigado a escondê-lo até de si próprio”. Porquê?
Encontrei-o num livro de citações ao acaso. E apercebi-me que é mais ou menos isto que se passa neste livro. Como é guardar um segredo? Pensei que era de tal forma assombroso… Não é? Uma auto-ilusão, de certa forma. Ter de ser tão delirante ao ponto de guardar o segredo de si próprio. Foi só isso, pareceu-me uma boa forma de abrir o livro.

De certa forma, guardou esta história em segredo durante muito tempo.
Suponho que sim. E depois finalmente, consegui ser completamente aberto, emocional e honesto e dizer tudo o que queria sobre este evento, este ano. E, como algumas pessoas disseram, podia ter sido muito mais curto.

É essa a principal crítica que está a receber?
Sim. Podia ter sido muito mais curto [imita uma voz aguda]. Não, não podia. Isto foi editado com muito cuidado muitas e muitas vezes.

Na passagem por Lisboa, o autor participou num encontro com leitores na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD)

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O livro vai ser adaptado a uma série da HBO, com realização do Luca Guadagnino [Call Me By Your Name, Ossos e Tudo].
Não. Jantei com ele em Milão na semana passada e ele ainda não está ligado ao filme. Foi um site de notícias falsas que saiu de Espanha, mas ninguém anunciou tal coisa. O Luca tem sido a primeira escolha desde sempre. Cinco meses antes do lançamento do livro, ele leu-o e disse: “Quero realizar isto. Quero fazê-lo como uma minissérie para a HBO”. A HBO disse: “Queremos comprar o livro. Queremos fazer isto como uma minissérie”. Na verdade, eles querem fazer uma série de três temporadas, 30 episódios. Eles querem fazer 30 episódios, três temporadas e que o Luca realize a primeira temporada. O Luca disse: “Ótimo, vamos fazer o acordo”. Fizemos o acordo. E depois o Luca pediu demasiado dinheiro. E por isso nunca assinou um contrato. Ele leu o episódio piloto, o primeiro guião está pronto e está muito interessado. Disse-me que talvez faça dois episódios porque quer mesmo fazer isto, mas ainda não assinou. Não sei qual vai ser o acordo com o Luca. Não sei se ele vai sequer fazer isto, mas há outros realizadores em que a HBO está interessada. E, portanto, pode ser que seja um deles.

O nome de Jacob Elordi [ator conhecido pelo papel em Euphoria] também foi associado ao projeto.
Isso foi uma coisa viral totalmente inventada que andou por aí. Mas não. O Jacob Elordi é demasiado velho para o papel, provavelmente. Ainda que seja muito bonito.

Em breve vai realizar pela primeira vez um filme, Relapse.
Em teoria sim, mas não sei. Dizem agora que é em janeiro, depois da greve. Os estúdios estão a dizer: “Vão-se lixar”. Aconteceu na semana passada. Foi um choque. Dizem que provavelmente não vão começar a negociar antes do Natal, o que significa que isso atrasa ainda mais este filme. Era suposto ser filmado antes da Covid. Tínhamos o financiamento e depois a Covid-19 chegou e não pudemos filmar. E depois vieram as greves. Então, adoraria que isso acontecesse, mas diz-me o meu instinto que pode não acontecer.

Vários dos seus livros foram adaptados ao cinema. O que acha que torna o seu estilo de escrita apelativo para ser traduzido para o grande ecrã?
Não sei, porque escrevo livros para serem livros. Não escrevo livros para serem filmes. Nenhum dos meus livros é um filme.

Porque é que acha que é tão facilmente adaptável?
Não sei. Escrevo guiões. Já escrevi toneladas de guiões. Esses são filmes. Os meus livros não são filmes. Psicopata Americano, aquilo não é um filme, mas as pessoas quiseram transformá-lo num filme. Menos Que Zero nem sequer tem um enredo. Nem sequer tem personagens que tenham nomes. No As Regras da Atração todos os narradores são pouco fiáveis. Como é que se vai fazer um filme com isso? Os meus livros são romances ou experiências literárias. São sobre estilo. Têm a ver com consciência. Não têm a ver com ação, drama, enredo, personagens. Escrevi muitos guiões e, para mim, é tudo uma questão de história e de construção, de estabelecer as coisas e de resolver a história. É isso que se faz em 120 páginas. O que se faz num livro é completamente diferente. É tudo uma questão de consciência. É por isso que O Grande Gatsby nunca foi transformado num bom filme, porque se lê o livro e é fantástico, porque tem tudo a ver com estilo e tem a ver com a consciência do autor, os seus anseios e os seus sentimentos. As pessoas pensam que é possível transformá-lo num filme porque há muito sexo e muitos corpos, muitas festas e muita gente rica, mas nunca resulta porque não tem o estilo e a consciência do romance.

Tal como em Psicopata Americano, também em Estilhaços uma das personagens principais é um assassino em série. O filme que vai realizar também é de terror.
É um filme de terror, mas também um filme de monstros sobrenaturais. Sem assassino em série.

O que é que no terror ou na violência, a uma escala mais ampla, o atrai?
Escrevi-o no primeiro capítulo de Branco, em que falo da razão pela qual me sentia atraído por filmes de terror quando era miúdo e adolescente, de como me ajudavam a relacionar-me com os problemas da vida quotidiana. Via-os como reflexos das coisas por que estava a passar e ajudavam-me a entrar na idade adulta. Para mim, foi uma forma de resolver os meus próprios medos e processar os meus problemas. Perceber que no ecrã estavam a acontecer estas coisas horríveis, quer fosse O Exorcista ou a Carrie, e ver que eram um reflexo metafórico dos medos e das coisas por que eu estava a passar. Não me senti tão só. Com pais alcoólicos, pais divorciados, aperceber-me da minha homossexualidade… Foi do género: “Oh, uau, isto é outra coisa que me aconteceu. Como é que vamos lidar com isto?” E, por alguma razão, para mim, os filmes de terror eram como um remédio, um consolo, do tipo: isto é uma confirmação de que o mundo é uma loucura e está tudo fora de controlo. E que não estou sozinho.

“Com pais alcoólicos, pais divorciados, aperceber-me da minha homossexualidade… Os filmes de terror eram como um remédio, um consolo, do tipo: isto é uma confirmação de que o mundo é uma loucura e está tudo fora de controlo. E que não estou sozinho”

A violência está muito presente nos romances. Com Psicopata Americano foi acusado de misoginia pela forma como retratava a violência em relação às mulheres. Já em Estilhaços, a violência surge muito mais controlada, particularmente em relação ao género feminino.
É verdade. É uma história, uma atmosfera e um ângulo completamente diferente. Estávamos na cabeça do Patrick Bateman. Na mente dele, na voz dele. E estamos a ver tudo o que ele nos descreve. Estamos a ler tudo o que ele nos está a descrever. Cada peça de roupa, cada pormenor da mutilação, está tudo lá. Toda a sua coleção de discos, etc. Esse era o plano do livro. Essa era a máquina do livro. Esse era o significado do livro. Como é que se põe o horror na página? Bem, não se descreve uma casa assombrada. Quero dizer, não era horror. Era loucura. Psicose na página. Foram cenas demasiado detalhadas? Foram quatro páginas dele a explicar a sua rotina matinal na casa de banho? Está bem. Para mim, isto era uma espécie de psicose e era um reflexo do ponto em que estava. Havia explosões de violência que eu não sabia se eram reais ou não. Nalguns dias pensava: “Ele é um assassino em série”. E noutros dias pensava: “Isto não é real. Isto é uma fantasia dele. Isto está na mente dele. Esta é a única maneira de ele sentir alguma coisa para chegar a estes níveis extremos de horror transgressivo na sua cabeça. Não é possível que ele esteja a fazer isto a alguém”. E depois, há dias em que me apercebo que talvez se trate de uma sociedade que se está nas tintas. Estava sempre a mudar, esta ideia. Mas tem razão. Foi escrito por um miúdo transgressor, punk, com 23, 24, 25 anos, que queria explorar estes estados transgressivos extremos de contrafação da mente. Este é um tipo mais velho a olhar para uma história de uma forma quase antiquada. Portanto, sim, a violência perpetrada contra as mulheres é descrita através do que é referido nos jornais ou num estilo muito diferente de Psicopata Americano. Sou um escritor diferente agora. E também é uma história diferente. Depende do que a história exige.

Já disse que se sente atraído pela violência.
Sim. Como o Quentin Tarantino ou o Jean-Luc Godard. Gostamos de violência. Vemos a violência como uma coisa emocional, como algo que é uma espécie de libertação. Quentin Tarantino disse: “Vejo as minhas sequências de violência como números musicais”. É assim que as vejo. Aliás, não as vejo como violência, como disse Godard. “Não há violência nos meus filmes. Havia vermelho, havia tinta. Usamos sangue, usamos sangue falso, mas não é violência.” São representações de violência, mas não é violência. Portanto, uma representação de violência não é violência. E é por isso que é tão difícil para mim preocupar-me com o facto de as pessoas verem violência no meu livro. Há uma violência no meu livro. É real. Aconteceu. Agora, nada disso aconteceu realmente. É apenas uma história que está a ser contada.

Em Estilhaços diz que a Joan Didion é a sua escritora preferida. O que está a ler agora?
Estou a ler Edith Wharton, The Custom of the Country, é um ótimo romance. Não é tão bom como The House of Mirth ou The Age of Innocence, mas está lá em cima. Li, não sei, umas cem páginas dele esta manhã. Acabei de o ler. Li uma nova biografia de Francis Ford Coppola. E estou a ler… Bem, sabe o que estou a ler? Um amigo deu-me o novo livro da Madonna, de Mary Gabriel [cujo título é: Madonna: A Rebel Life]. Ray of Light (álbum de 1998) foi a última vez que me interessei pela Madonna. Há 25 anos que não penso na Madonna. Ray of Light é ótimo e Substitute for Love fantástico, mas, depois disso, tudo deixou de ser interessante para mim. Peguei neste livro [estica-se do sofá e retira o livro da mochila] e pensei que seria a coisa perfeita para ler numa digressão. Tenho uma viagem de avião de 12 horas na quarta-feira. Pensei: “Não vou conseguir entrar neste livro. Não há hipótese. Não quero saber da Madonna”. Mas ela é a artista feminina que mais vendeu de todos os tempos, significou algo na cultura. Talvez nunca tenha estado totalmente apaixonado por ela e nunca tenha sido um grande fã, mas é realmente interessante. A sua infância, a sua adolescência, a forma como esta mulher surgiu em 1985 ou 1986. Estou muito interessado nele, está muito bem escrito e acho que o vou acabar. É isso que estou a ler agora.

Escreveria uma biografia?
[Pausa] Não. Não.

Hesitou.
Bem, porque ia dizer que só a minha.

Reformulo: escreveria uma autobiografia?
Já o fiz. Nove livros. Eles são a minha biografia. Falam sobre onde estava e o que pensava. Cheguei um pouco perto disso em Branco e há mais informação factual na abertura de Lunar Park [2005]. Essas primeiras 40 páginas falam da minha vida e do meu crescimento enquanto criança e tudo. Este livro que quero fazer a seguir… O livro Cinema Speculation [2022], que Quentin Tarantino escreveu, falei com ele sobre isto antes. Ia escrever cerca de 10 capítulos sobre os filmes que mais significado tiveram para mim na adolescência e contar uma história sobre o meu crescimento através desses 10 ou 11 filmes. Ele fez isso e conseguiu publicá-lo no ano passado e foi ótimo. Quero fazer isso. É provavelmente o próximo livro.

Assine o Observador a partir de 0,18€/ dia

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Vivemos tempos interessantes e importantes

Se 1% dos nossos leitores assinasse o Observador, conseguiríamos aumentar ainda mais o nosso investimento no escrutínio dos poderes públicos e na capacidade de explicarmos todas as crises – as nacionais e as internacionais. Hoje como nunca é essencial apoiar o jornalismo independente para estar bem informado. Torne-se assinante a partir de 0,18€/ dia.

Ver planos