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Carla Madeira: “Tudo é Rio” e os 14 anos de bloqueio que guardaram a obra da escritora mais lida do Brasil

Trocou a Matemática pela Publicidade, antes de se descobrir na ficção. Pagou os primeiros livros, agora já vendeu mais de 400 mil. Entrevistámos Carla Madeira antes da visita da escritora a Portugal.

Entre as malas por fazer para a viagem a Portugal, assuntos para tratar na sua agência publicitária, recados para deixar aos filhos e mil outras coisas por resolver, há um momento em que não consegue mais: tem de largar tudo como está, a meio. Senta-se a olhar para o computador e deixa-se levar para o universo que neste momento a consome, o quarto livro.

É assim que encontramos Carla Madeira, ainda com as pontas dos dedos a ferver e a cabeça entre as ideias que têm urgência de saltar para a página, quando fazemos a chamada via Zoom, entre Lisboa e Belo Horizonte, Brasil. É, há dois anos consecutivos, a escritora mais lida do Brasil e agora também um fenómeno em Portugal. Tudo é Rio foi editado em março deste ano pela Particular e vai já na quarta edição. Seguiram-se, em agosto, A Natureza da Mordida e Véspera. E depois deste terceiro livro, a autora tinha uma certeza: “Não quero voltar a escrever tão cedo”. E “tão cedo” equivalia a uns largos anos. Porém, uma sucessão de perdas de pessoas muito próximas fê-la perceber que era ali, no meio das palavras, que se sentia segura.

Aos 59 anos, continua sem estar convencida de que domina a arte da escrita — os mais de 400 mil exemplares vendidos no Brasil dizem o oposto —, mas é um exercício que faz, em primeiro lugar, porque lhe dá muito prazer. A quinta de seis irmãos, estudou Matemática, como todos lá em casa, e foi feliz. Até não ser. Rapidamente trocou o curso por Comunicação. Criou uma agência publicitária, a Lápis Raro, e foi feliz. Até não ser. Começou então a observar, a ouvir e a escrever, inventou três Marias que a transportaram para um texto pequeno, que foi ficando grande, que foi ganhando ligação com outras personagens. Sem ser propositado, começava assim a nascer Tudo é Rio, o livro mais conhecido da Carla Madeira. No entanto, quando escreveu uma cena violenta e traumática, inexperiente na escrita e na vida, bloqueou. Foram precisos 14 anos até que voltasse a pegar na história, que só viria a ser publicada em 2014 com uns tímidos 700 exemplares. “Era uma experiência”, explica ao Observador.

Os três livros publicados até agora são histórias familiares marcadas por acontecimentos trágicos. Tudo é Rio tem um triângulo amoroso com abusos, violência doméstica, vingança, ódio e perdão. A Natureza da Mordida tem duas narradoras que aparentemente nada têm em comum mas cujas experiências de abandono e de silêncio criam uma ligação inabalável. “Véspera”, a obra mais recente, começa com uma mulher a abandonar o filho e transforma-se numa saga ainda mais complexa e devastadora, contada em duas épocas.

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É sobre todos eles que Carla Madeira vai falar em Portugal, nos próximos dias. A 8 de outubro estará na Indie, Not a Bookshop, em Cascais; no dia seguinte na Fnac Colombo; e a 10 de outubro, na Livraria da Travessa, em Lisboa (as informações completas estão no Instagram da editora. A autora estará também no FOLIO, Festival Literário Internacional de Óbidos, a 13 e a 18 de outubro. No primeiro dia fará parte de uma conversa sobre amor e, no segundo, o tema será “O risco da unilateralidade de género masculino na literatura”.

Antes de a deixarmos terminar as malas para a viagem a Portugal — ou de escrever mais um pouco —, falámos com Carla Madeira sobre o choque que a fez afastar-se da literatura durante mais de uma década, a inibição de mostrar os seus textos ao pai, os 40 quadros que pintou enquanto escrevia A Natureza da Mordida e os planos para as adaptações cinematográficas das obras.

A capa de "Tudo é Rio", o livro que fez de Carla Madeira uma estrela literária no Brasil, publicado em Portugal pela Infinito Particular

É a primeira vez que vem a Portugal enquanto escritora?
Enquanto escritora, sim, mas já fiz uma longa viagem por Portugal… pelo Alentejo, Lisboa, Serra da Estrela.

Tudo é Rio foi lançado aqui em março, A Natureza da Mordida e Véspera saíram em agosto. Os leitores portugueses leram tudo sofregamente. Qual é a sua expectativa sobre este encontro?
Tenho tido contacto com os leitores portugueses muito ao de leve ainda. O João [Gonçalves, da editora Infinito Particular] tem-me falado da recetividade e do envolvimento das pessoas, alguns amigos vão a Portugal e fotografam as livrarias, mostram-me que os livros estão super bem colocados, bem expostos, e nas redes sociais alguns leitores têm-se manifestando. Tudo é Rio tem essa corrente, pega no leitor e leva-o, o que é um pouco parecido com a forma como ele foi feito. Eu escrevi a cena do Venâncio com o filho [e não vamos fazer spoilers] e fiquei paralisada durante 14 anos mas, quando voltei ao livro, escrevi tudo em oito meses. Foi, de facto, um jorro. Escrevi exatamente como o leitor lê, naquela ordem, não foi uma arquitetura posterior. Os leitores dizem que são apanhados por essa enxurrada e são levados pela correnteza do livro, não conseguem parar. Tenho sentido que isso também está a acontecer com os leitores portugueses, são apanhados por uma história e têm o próprio corpo afetado por essa violência.

Antes de falarmos dessa pausa de 14 anos para terminar o livro, qual foi a primeira semente para a história do Tudo é Rio?
Para contextualizar, preciso de contar um pouquinho sobre mim. Muito nova ainda, recebi uma guitarra. Eu cantava, tocava, compunha. A minha primeira relação com a palavra veio através da música, muito mais do que da literatura. Até aos meus vinte e poucos anos, era uma típica guitarrista, dessas que viajava com a guitarra. Tive sempre muita relação com as linguagens artísticas. Pintava, gostava de teatro. Mas, quando escolhi a minha profissão, fui estudar Matemática. Tenho vários irmãos que estudaram Engenharia, Informática, etc. A Matemática era uma coisa de família, muito presente em minha casa. Por isso, eu achava que todas aquelas linguagens artísticas eram hobbies, eram coisas que eu amava, mas coisas de amadora.

Que nunca podiam servir para pagar as contas?
Exatamente. Portanto, como era um assunto sério, escolhi Matemática. Passava o dia na universidade, naquele universo paralelo que a matemática consegue produzir, mas fui ficando muito triste. Estive no curso dois anos e pouco e, um dia, cheguei a casa e, mesmo sendo Balança — um signo que está sempre a ver os dois lados, a considerar todas as possibilidades antes de decidir —, fui radical e disse ao meu pai que não voltava à escola. Ele ainda argumentou para eu congelar a matrícula, caso mudasse de ideias, mas eu sabia que não ia mudar. Fui para Comunicação que, especialmente na área da publicidade, tem um interface muito grande com as linguagens artísticas. O publicitário conta histórias, trabalha com música, com fotografia. Há publicitários que são verdadeiros artistas, mas sem a subjetividade do artista.

"Comecei a história de Lucy, aquela a quem no livro chamo “puta” [e que é uma prostituta], e interessei-me por ela. Que mulher era aquela? Porque era assim? Que poder era aquele? Que homem era aquele [Venâncio] que chegou ali ao bordel e não se permitia estar com aquela mulher que carregava toda uma promessa de um grande prazer?"

Sentia-se realizada nessa nova área?
Criei uma agência [a Lápis Raro, que ainda hoje lidera] e fui diretora criativa durante anos. Mas fui ficando novamente triste, a sentir falta das linguagens artísticas nesse lugar da subjetividade. Comecei então a fazer um exercício de linguagem, de escuta, de liberdade, escrever alguma coisa, estar diante do papel em branco sem ter um briefing ou um cliente por trás. E tudo começou aí. Dei esta volta toda para chegar à resposta: comecei a escrever a história das Marias, que ocupa só um bocadinho no livro, são as meninas que a Francisca cria em Tudo é Rio. Estava ali a contar aquela história meia mágica sobre meninas que perdem a mãe na hora do parto e sobre essa mulher simples que é Francisca. Comecei a cuidar dessas meninas e a ir até aquele ponto, a gostar de estar ali. De vez em quando precisava de me afastar um pouco, porque se não ia acabar e ficava apenas com um conto.

Percebeu logo que queria que fosse um livro?
Não, nunca tive essa pretensão. Não sabia exatamente o que seria, se um livro, se um conto, mas talvez o livro fosse a última coisa que eu imaginava. Não me achava escritora, não tinha essa ideia, nem essa ambição. Então, para me afastar um pouco da história, para aquilo render mais porque estava bom, comecei a contar a história de Lucy. Já tinha algumas ideias de como cruzaria a história de Lucy com a história das Marias. Comecei a história de Lucy, aquela a quem no livro chamo “puta” [e que é uma prostituta], e interessei-me por ela. Que mulher era aquela? Porque era assim? Que poder era aquele? Que homem era aquele [Venâncio] que chegou ali ao bordel e não se permitia estar com aquela mulher que carregava toda uma promessa de um grande prazer? Que dor era aquela que aquele homem sentia e que não lhe permitia ter gozo nenhum? Fui olhando para essa história e cheguei à cena.

Está a falar da cena que a fez deixar o livro em pausa durante 14 anos. Imagino que já tinha uma ideia da cena na cabeça mas ao passar para o papel bloqueou. Porquê?
Foi muito para mim. Eu hoje sei, de tanto pensar sobre isso e de olhar para trás, que não tinha recursos para continuar aquela história. Eu precisava de viver, especialmente a experiência da maternidade, que atravessa o livro. Não só esse livro, como todos os outros.

O que é que a fez voltar à história 14 anos depois?
Penso muito sobre isso, o que me paralisou não podia ser ignorado. Fiquei 14 anos sem escrever formalmente, mas aquilo estava a ser escrito. Aquela história vinha, o meu corpo estava a lidar com a força daquela situação a que me propus. Hoje penso muito no que me estava a acontecer no momento em que voltei a escrever e entretanto lembrei-me que fui ao Festival de Publicidade de Cannes. Naquela altura [2014] a tecnologia estava a explodir e fui ver uma palestra de uma poetisa chamada Sarah Kay, só que era só ela no palco, sem nenhum aparato tecnológico. Ela, o microfone e uma luz. Começou a recitar um texto extremamente poético, que nos paralisou a todos, não se ouvia ninguém a respirar sequer. Contou uma história sobre uma mãe e foi talvez a coisa mais forte que eu vi ali no festival. Naquele dia vi a força de uma história bem contada, a força do poético e a força de uma mulher. Acho que isso me deu vontade de voltar à minha história.

Aí já tinha percebido porque não tinha conseguido continuar a história em 2000 mas, em 2014, quando finalmente publicou Tudo é Rio também o fez um pouco a medo. A primeira edição teve 700 exemplares. Porquê?
Foi uma experiência, uma produção meio independente. Embora tivesse uma editora a [a Quixote, em Belo Horizonte], que assumiu a distribuição, que também tinha uma livraria e que fez um trabalho lindo, era uma coisa local. Desde o primeiro momento ali, Tudo é Rio foi crescendo, muito de boca em boca. Cada pessoa que lia, voltava à livraria para agradecer e queria logo comprar outro para dar para alguém, porque queria conversar sobre o livro. Essa mobilização do leitor foi fazendo o livro acontecer. Depois houve uma jornalista muito importante [Martha Medeiros], que também é escritora e uma mulher incrível, que escreveu uma coluna inteira na revista “Ela”, que tem visibilidade nacional. Foi muito generosa, dizia que era um “acontecimento” e uma “obra prima”. Foi aí que os leitores do Brasil inteiro começaram a querer ler. Aquela editora pequena de Belo Horizonte não tinha condições de fazer uma distribuição e uma impressão tão volumosa.

"Pretendia realmente ficar uns bons anos a ler e a escrever. E, de repente, perco o meu psicanalista, perco a minha mãe, e no meio do ano passado, depois dessas duas perdas, voltando de uma viagem a Portugal, a minha sócia tem um diagnóstico de cancro de pâncreas. Então, três meses depois, no auge desses lutos todos, eu não conseguia não escrever."

Foi nessa altura, em 2020, que se mudou para uma editora maior?
Fui convidada para ir para a Record e aí o livro teve projeção nacional [relançado em fevereiro de 2021]. Nesse momento estava a escrever Véspera e já tinha escrito A Natureza da Mordida — que criou um grande desejo nos leitores mas estava esgotado. Esse livro tem uma coisa muito especial. Começa-se e não se sabe exatamente o que é aquilo. O leitor experimenta uma certa estranheza, talvez para alguns haja dificuldade. “Para onde é que este livro me está a levar? O que é isto?”

Sentiu o mesmo quando estava a escrever?
Senti um desejo muito profundo de entrar naquelas mulheres. Ao contrário de Tudo é Rio, A Natureza da Mordida é narrada por Biá, através de suas anotações, e por Olívia, duas mulheres marcadas por acontecimentos dolorosos. Mas Biá é uma psicanalista e a uma senhora de idade que está a ficar demente. Senti tanta necessidade de me colocar no corpo dela, no que ela estava a sentir, em como é perder partes da história, que achei que precisava de fazer também o leitor experimentar essas pequenas descontinuidades e essas pequenas interrupções. Não saber tudo logo, não ter a história toda e as circunstâncias, mas ter a dor. No início, vamos andando no desconhecido, até que Olívia conta a história. E o leitor costuma dizer-me que é capturado nesse momento. Um leitor disse-me uma vez que é um livro para ler uma vez e meia porque, depois de se conhecer a história, quando se volta àqueles encontros iniciais, vive-se uma experiência diferente. Foi um livro muito especial de fazer porque também foi muito exigente comigo. Tive momentos em que dizia “vou desistir”. Não sabia como aquilo se organizaria, para onde ia levar-me. A Biá tinha uma necessidade de anotar, anotar, anotar coisas que eu não sabia para onde se encaminhavam, mas ela tinha necessidade. É como se o olhar dela, de quem perdeu tantas coisas, a levasse a anotar sem fim. Eu fui indo, voltando, indo, voltando e fazendo uma arquitetura completamente diferente do Tudo é Rio, porque eu tinha que puxar um pouco a história e voltar.

Pintou 40 quadros enquanto estava a escrever o livro. A pintura fazia-a respirar um pouco?
Os quadros eram um lugar para onde ir quando me esgotava. E era uma maneira de ficar em silêncio e de ter outra investigação, que é um pouco a de Luciana [mãe de Rita no livro]: as flores, os vasos, as cores, o belo, assim dava-se o encontro com uma beleza silenciosa que vinha de uma harmonia. O silêncio de Biá, o silêncio de Rita, o silêncio do pai de Teresa e de Teresa, o silêncio entre Biá e Teresa — tudo isso ajudou-me depois a encontrar as palavras.

Quando publicou Tudo é Rio chegou a ponderar não escrever mais livros, mas depois foi sugada de volta pela escrita.
Exato, e estou a viver isso de novo. Terminei Véspera, um livro que escrevi metade durante a pandemia, que me desorganizou muito. Antes eu tinha um ritual: ia trabalhar na minha agência, voltava para casa, tomava banho, ficava com os meus filhos e ia para outro computador, com outra roupa e outra energia, estava noutro lugar e escrevia. Na pandemia tudo isso ficou misturado. Era a mesma máquina, o mesmo lugar, a mesma casa ou a mesma roupa. Não tinha o ritual de atravessar a cidade, de mudar de ambiente. Saí dessa experiência exausta. Sem esquecer também que a minha agência tinha nessa altura 85 pessoas e numa semana tivemos de colocar toda a gente em casa. Não sabíamos trabalhar à distância, foi uma fase de aprendizagem. Havia muita luta e muito sentimento de falta de saída. “Onde está o mundo que conhecíamos?” Escrever tem um pouco dessa falta de saída também. Quando acabei “Véspera”, disse: “Tenho de ficar uns bons anos sem escrever, porque preciso de ler, reabastecer, encontrar outras histórias. Não quero voltar a escrever tão cedo.” Pretendia realmente ficar uns bons anos a ler e a escrever. E, de repente, perco o meu psicanalista, perco a minha mãe, e no meio do ano passado, depois dessas duas perdas, voltando de uma viagem a Portugal, a minha sócia tem um diagnóstico de cancro de pâncreas. Então, três meses depois, no auge desses lutos todos, eu não conseguia não escrever. Talvez tenha tido uma visão profunda de que escrever passou a ser uma maneira essencial para conseguir lidar com o real.

"O meu pai chamava-se Ulisses e a minha mãe Irlanda. Eu tenho brincado que quase me chamei Joyce [o escritor irlandês James Joyce é o autor do livro Ulisses] e há uma coisa bonita que me tem feito muito sentido ultimamente: tenho pensado muito neles, sabe?"

O que está a escrever neste momento vai buscar os temas do luto, para conseguir lidar com ele, ou é um escape e fá-la mergulhar num universo completamente diferente?
Interessante… eu tenho alguns contos e eles têm muito humor. Comecei um livro desejando que ele tivesse humor. Porém, eu sou… não sei se a palavra é trágica, mas as minhas histórias são atravessadas por acontecimentos muito existenciais e impactantes. E, mesmo sendo humor, esse acontecimento estará lá e será doloroso. Não sei ainda no que vai dar, estou na fase de experimentar. É que humor por vezes também é a maneira que torna possível lidar com a dor.

Tem esse mecanismo de defesa?
Sim, mas estou a fazer experiências. Assim como acho que Tudo é Rio é poético, tem uma camada que ajuda a lidar com aquela dor ali, nos meus outros livros já acho que há um pouco de contenção. O Véspera tem, de certa forma, uma linguagem que acomoda uma realidade que é muito dura. Acho que eu não sei escapar disso, não sei por quê.

Está de novo a conseguir ter rotina para escrever? Continua muito presente na agência ou já se desligou?
Ainda está bastante caótico, vou dar um exemplo: estou aqui a fazer a mala, no meio de mil coisas para tratar porque vou deixar os meus filhos, estar fora um mês, vou deixar a agência também onde sou ainda muito presente. Estou no meio de tudo mas, uma hora antes de falarmos, larguei tudo e vim escrever, porque está muito bom. Se me perguntar porque é que escrevo, o principal motivo é por ter um gozo imenso a escrever. Então, estava aqui a protelar mais um pouco, mais um pouco, “ai, tenho de fazer a mala mas eu quero é escrever, isto está a ficar tão bom, não posso parar”.

Há pouco falamos da sua família, todos matemáticos, foi por isso que foi para essa área, mas também havia um ambiente muito artístico em casa. Perdeu o seu pai em 2010, que já não acompanhou a Carla Madeira escritora, mas a sua mãe viu tudo de perto. Ela era uma das suas primeiras leitoras?
Quando terminei Tudo é Rio, ela foi a primeira pessoa que eu trouxe para minha casa num fim de semana. Dei-lhe o livro e pedi que lesse. Para mim tinha um significado muito importante porque o livro toca em questões que eu sei que são questões nossas, da minha família, da minha mãe, do meu pai. O meu pai foi religioso e eu talvez tivesse alguma timidez de lançar o livro quando ele era vivo. Talvez não fosse capaz pela carga erótica e pela força dos questionamentos ligados a uma visão dogmática da religião. Quis então que a minha mãe lesse e foi muito comovente. Ela ficou muito emocionada com o livro, disse-me: “No começo fiquei um pouco assustada com as questões eróticas, mas é tão humano. Minha filha, é tão humano o que você fez”. Depois de ouvir isso, foi como se eu tivesse tido uma certa bênção para seguir em frente.

Os seus livros têm sempre histórias familiares e a história de amor dos seus pais também é peculiar [o pai pertenceu à ordem religiosa dos Maristas, estudou na Sorbonne, era poliglota; a mãe, 22 anos mais nova, mal tinha o ensino obrigatório]. Já pensou incluí-la num livro?
Quando escrevemos é sempre uma colagem, a matéria prima vem de coisas que nos afetaram, mesmo que não seja uma memória factual. Podemos não estar a escrever sobre aquela pessoa, não é ninguém exatamente, mas tem traços ou tem coisas pequenas. Então, de certa forma, eles já estão nos meus livros. O meu pai chamava-se Ulisses e a minha mãe Irlanda. Eu tenho brincado que quase me chamei Joyce [o escritor irlandês James Joyce é o autor do livro Ulisses] e há uma coisa bonita que me tem feito muito sentido ultimamente: tenho pensado muito neles, sabe? Acho que a presença deles é muito forte e a minha mãe é um pouco a matriz de todas as mulheres que eu crio. Seja por proximidade, seja por antagonismo.

As capas de "A Natureza da Mordida" e "Véspera"

Quando é que as histórias dessas mulheres passam para o cinema e para a televisão?
Tudo é rio, a ideia é que seja filme. Já está com os direitos vendidos, tal como o Véspera, para uma produtora chamada Boutique [Filmes]. Véspera será uma série.

Quer estar envolvida nessas adaptações?
Como consultora só. Tenho plena consciência de que é outra obra de arte, a história será contada com um olhar diferente do meu, de outro artista, de outro mundo. Tenho-me colocado à disposição como consultora porque há muitas coisas que eu sei e que não estão escritas ali, acho que posso contribuir dessa forma, mas também organizando-me emocionalmente para aceitar que já não é meu.

É difícil libertar-se disso?
É bem difícil.

Quando, em 2014, colocou 700 exemplares no mercado, que foi a própria Carla que financiou, qual era o sonho mais louco que tinha para Tudo é Rio, o mais inatingível quase?
No início eu desejava que as pessoas lessem. E o desejo mais louco era que algumas pessoas que sempre foram inspiradoras na minha vida o lessem — nomes como Caetano Veloso ou Chico Buarque. Era um desejo que tinha, de lhes fazer chegar um exemplar às mãos. E ao mesmo tempo era um medo.

Concretizou-se?
Fiz chegar às mãos do Caetano e do Chico, mas não sei se leram. Uma vez encontrei o Chico Buarque e dei-lhe Véspera, ele disse que leria e foi muito carinhoso.

Não sei se Chico Buarque e Caetano Veloso fazem parte dos números, mas o certo é que a Carla Madeira é, há dois anos consecutivos [2021 e 2022], a escritora mais lida do Brasil. Ouvir essa frase, “a escritora mais lida do Brasil”, o que é que desperta em si?
Vejo-me um pouco misturada diante dessa frase. Feliz mas também espantada porque, quando penso em mim como publicitária, tenho a certeza que sei fazer aquilo a sério. Se me der uma campanha ou um problema de mercado, eu sei resolver, sei fazer. Mas, quando estou a escrever um livro, estou diante da pergunta “será que vou saber fazer isto?”. É outro caminho, cada um é diferente.

Não é uma ciência exata, como a Matemática.
Nada matemática, não. Diante desse processo, o de escrever, eu sei que gosto, mas não domino. É isso que sinto.

 
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