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Carlos Paião. A história de um extraterrestre na música portuguesa, 30 anos depois da sua morte

Morreu há 30 anos, em Rio Maior, a caminho de um concerto. Herman José, António Sala, David Ferreira e Alexandra recordam as histórias que partilharam com o compositor e cantor que nunca nos deixou.

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Muito disfarçadamente, põe o microfone à frente. Sempre a rimar, aos pulos, a pequena figura segue a melodia marchante, sorriso malandro, como quem está em casa a jogar charadas, de barba rala, a enfeitiçar as televisões portuguesas de 1981, pouco preparadas para este bruxedo de cor e trocadilhos. “E assim mesmo sem cantar vais encantar”, remata Carlos Paião na desarmante “Playback”, vitoriosa no Festival da Canção da RTP, acompanhado por um coro robótico de fato-macaco: Ana Bola, Cristina Águas, o dinamarquês Peter Petersen e o bigode viril de Pedro Calvinho.

“Foi uma surpresa fantástica”, conta David Ferreira da Valentim de Carvalho, editora que ainda tentava entender como arrancar uma carreira para este estudante de medicina, rapaz acanhado com centenas de canções na algibeira. “Há fotografias dessa noite, todos da editora em volta do Carlos, completamente estupefactos”.

A sátira sobre cantores de playback arrecadou 203 pontos, a destronar o papa canções José Cid e a piroseira “Morrer de amor por ti”, e ainda mais surpreendente, o favorito das arábias, “Ali Bábá” das Doce. O descaramento de Paião está nesta cantiga popularucha, de refinada metalinguagem e construção silábica, um paradoxo que entra no consciente da população portuguesa aos saltinhos.

[“Playback”, no festival de 1981:]

“Muitas destas cantigas são tratados de matemática, palavras diferentes que encaixam umas nas outras, que fabricam músicas populares muito complexas”, reflete o amigo e principal intérprete de Paião, Herman José. “O segredo é a facilidade ao nível da palavra”, sugere outro amigo ilustre, António Sala. “Ele escrevia coisas muito profundas, só que tinha uma capacidade de facilitar essa composição”. “Playback” seria o nosso primeiro encontro com o senhor extraterrestre da pop portuguesa, o cantor ligeirinho que apaixona o país até ao seu último fôlego, quando nos deixou abruptamente, há 30 anos reféns deste talento nato, desde 26 de agosto de 1988.

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Blazer branco, olhos arregalados (e penúltimo lugar na Eurovisão de 1981)

“Carlos is 23, an undergraduate of the medical School of Lisbon, and he is not gonna give up the day job, obviously”.

Gracejo do apresentador antes da sofrida participação portuguesa em Dublin, penúltimo lugar na Eurovisão de 81, sem desmotivar a imperturbável boa disposição do cantor, que aproveita a viagem para improvisar uma lua de mel com Zaida Cardoso, colega de medicina. “Eles tinham acabado de casar, mas naquele tempo não era nada agradável ir numa delegação da RTP”, recorda hoje David Ferreira, na Irlanda como responsável pela promoção da Valentim de Carvalho, garantindo ainda que “a última coisa de que a RTP gostaria era ganhar o festival, para não organizar no ano seguinte”.

As indescritíveis cabeleiras dos ingleses Bucks Fizz e o truque barato de revelar a meio que as cantoras afinal vestiam mini-saias foram suficientes para arrebatar o júri. “A coreografia do ‘Playback’ funcionava bem, mas a letra em português deixou de ser evidente na Irlanda. Os ensaios correram muito mal, tínhamos muitos problemas. No fim a coisa não resultou”.

Uma vontade incontrolável de prender a atenção do país com canções, dos amigos com piadas, e ao mesmo tempo, uma timidez que carrega desde criança, contradições que o “Playback” trouxe para o quotidiano de Paião, e o acompanham ao longo da fulminante carreira. “Ele era um pragmático, nunca se deixou iludir pela fama”, acrescenta Herman, que acredita veemente na busca musical do amigo, longe de ambições de fama e dinheiro. “Ele fugia de tudo o que era normal, sempre correndo riscos. Conseguiu meter a palavra gorgulho numa música romântica”.

“O ‘Pó De Arroz’ ia ser o lado B do ‘Playback’, ainda durante o festival, só que o Francisco Vasconcelos, na altura supervisor, disse que lançar aquilo assim era um crime, que era uma obra prima”, releva David Ferreira. “É um caso raro em que tivemos de adiar o lançamento de uma música porque era boa de mais”.

“Se estávamos a entrar num café barulhento e de repente tudo se calava, o Carlos ficava muito incomodado e tinha de fazer algum tipo de barulho, alguma brincadeira ou ataque de tosse. Perguntava-lhe porque é que ele fazia aquilo, sendo um tipo tão tímido. E ele confessava que só dessa forma conseguia entrar no café”. É uma das primeiras memórias sobre Carlos Paião que António Sala, homem da rádio e das canções (algumas também escritas por este artista ímpar), nos atira.

Arroz com gorgulho, talvez, como enfeitar um embrulho, era a sugestão em “Pó De Arroz”, sincera interpretação de Paião dos jogos da sedução, onde admite render-se aos encantos, mas nunca esquecer o caricato que é uma mulher maquilhada e um tipo embeiçado. “O ‘Pó De Arroz’ ia ser o lado B do ‘Playback’, ainda durante o festival, só que o Francisco Vasconcelos, na altura supervisor, disse que lançar aquilo assim era um crime, que era uma obra prima”, releva David Ferreira. “É um caso raro em que tivemos de adiar o lançamento de uma música porque era boa de mais”.

“Pó De Arroz” confirma a vida além do Festival da Canção, a garantir a permanência de Carlos Paião nos televisores, passa o testemunho de 81 para 82 no “Sabadabadu”, de blazer branco, olhos arregalados, a conquistar Portugal ao lado de Camilo de Oliveira e Ivone Silva. “Ga-Gago”, lado B, seria outra prova da capacidade deslumbrante de dicção, uma metralhadora de palavras que compensava qualquer fragilidade vocal.

[“Pó de Arroz”]

Um grande single, “Pó De Arroz”, simultaneamente terno e galhofa, seria suficiente para abrandar a ansiedade de Paião pelos 15 minutos de fama? “Ele tinha um medo tremendo que as pessoas só se lembrassem de ‘Playback’”, atesta Nuno Gonçalo da Paula, escritor de Intervalo, a única biografia do cantor. “A verdade é que conseguiu ser o autor mais novo que compôs para a Amália Rodrigues”. O fadista António Mourão foi o primeiro a gravar Paião, com “Fado Reguila”, um sinal da versatilidade do compositor que era apregoada aos sete ventos por Mário Martins, Diretor do Departamento de Artistas e Repertório da Valentim de Carvalho, e mais importante do que esse título feérico, o responsável por produzir e fazer render o ativo mais valioso da editora: Amália Rodrigues.

“Intervalo. Biografia de Carlos Paião”, de Nuno Gonçalo da Paula (Âncora)

Adoentada em casa, a maior divindade do fado consente ouvir uma cassete com canções inéditas de Carlos Paião. Fica maravilhada com a graça e complexidade velada de “O Senhor Extraterrestre” e “Amigo Brasileiro”, comenta de imediato as semelhanças com o falecido parceiro, Alberto Janes, de “As Pupilas do Senhor Doutor” e “Foi Deus”. “O Alberto Janes também estava nas medicinas, era farmacêutico e um pinguinhas com as rimas, os detalhes, tudo muito científico, é uma comparação que faz todo sentido”, concorda Herman.

No carnaval de 82, Amália regressa à televisão após longa ausência, a apresentar o single “O Senhor Extraterrestre”, com a única capa-cartoon da sua carreira. Olá boa tarde, copinho de vinho, “e lá foi no seu caminho, que era um pouco em ziguezague”, canta Amália o encontro com o alienígena, no Passeio dos Alegres de Júlio Isidro. Parece um instante, Carlos Paião é um estudante de medicina envergonhado e um punhado de meses depois, vencedor do bilhete dourado da RTP, representante de Portugal em Dublin, com segundo single de sucesso e duas músicas gravadas pela maior voz nacional. Era um recreio chamado Portugal, de Norte a Sul, para onde seguiria esta brincadeira? Para Ílhavo, sempre Ílhavo.

[“O Senhor Extra Terrestre”, por Amália Rodrigues:]

Preferia ser “um bom cantor a um mau médico”

“Na areia, na areia
Um velho a cismar
Do mar, mão cheia
De sonhos sem par
Parece ir embora
Tem rugas no olhar
Na vida outrora
Foi homem do mar”

O “Lobo de Mar”, canção e saudosista homenagem, de rugas no olhar, é um retrato do pai de Carlos Paião, antigo capitão da marinha mercante que passa ao filho a cidade de Ílhavo como porto seguro. Carlos Manuel de Marques Paião nasceu no dia 1 de Novembro de 1957, em Coimbra, por falta de equipamento médico para acompanhar um parto penoso, e cresce na cidade costeira de Ílhavo, onde também cresce sua música, e músicos, nunca deixando, até ao dia da morte, de ser acompanhado em palco por uma banda de conterrâneos. Hoje, os pais de Paião moram na cidade que sempre será associada ao músico, apesar de, feitas as contas, o seu filho único ter passado mais tempo em Cascais, na Parede.

“Nos anos 50, em Ílhavo, o mais habitual era os homens estarem no mar. O Carlos desde pequeno dizia que, embora gostasse de mar, não queria seguir a vida marítima como pai. Depois o pai deixou a marinha mercante e foi colocado como piloto da barra em Lisboa. A família muda-se para a Parede, mas manteve sempre as raízes em Ílhavo”, recorda Nuno Gonçalo da Paula.

Autodidata, o aluno intermitente na escola, irrequieto, começa como quem não quer a coisa a tocar viola, piano e acordeão. “Teve aulas de solfejo em pequeno, mas a professora desistiu, porque ele não olhava para a pauta, tocava tudo de ouvido”, conta o biógrafo.

O "Playback" no Festival da Canção em 1981 (foto de Jorge Jacinto)

Jorge Jacinto

Salesianos do Estoril, Liceu de Oeiras, São João de Brito e de repente, num singelo 25 de Abril, a liberdade começa a passar por aqui e as canções de pop sinfónico português passam a odes, cantigas que são armas. Seja na veia de Avô Cantigas ou José Mário Branco, Carlos não se arma em esquisito, é tudo música, e se está no auge das canções de protesto, vamos lá fazer um “Canto da Guerra”, e assim se estreia, no Festival da Canção Illiabum Clube. Em Ílhavo, pois claro. E ganha, naturalmente.

Era a pós-liberdade, tanta emancipação, tanta vontade de resolver as coisas pelas cantigas, pelas greves, pelos desdobramentos constitucionais, que a música popular ficava quase restrita aos protestos. E escondidas, debaixo dos bigodes de Paião, estavam dezenas de músicas ligeiras, alegres, de sentido dúbio num momento de fachos e comunas, de pontos nos is.

O que hoje sabemos é que as canções de Paião, melodias de perfeição redondinha, já estavam nos anos 80. Grava algumas e envia a cassete para a Valentim de Carvalho. Passam dias, semanas, meses, até o destino as deixar cair no colo de Mário Martins, culpado por engendrar o então recente ganha pão da editora: Marco Paulo. “O Mário fez-me uma grande publicidade sobre este artista chamado Carlos Paião”, conta David. “Dois colegas da casa tinham ignorado por completo a cassete, o que chateou o Mário e eu gostei muito depressa das canções, e também gostei da participação do Carlos no Festival da Canção de 80, já estava ali alguma coisa.” A estreia no concurso com “Amigos eu voltei”, gravado depois por Alexandre Cruz, foi presa fácil nas semifinais para o bombástico “Um grande, grande amor” de José Cid. Limpinho. Mas a vingança seria breve.

“Conheci o Carlos na Valentim, na altura em que estava a gravar o primeiro single, ‘Souvenir De Portugal’, e gostámos logo um do outro. O Carlos fez-me ouvir uma série de coisas que tinha em carteira, ele compunha muito e com muita facilidade, dezenas de cantigas dos mais variados estilos. O engraçado é que das coisas que ele mostrou, o ‘Souvenir De Portugal’ não era das mais impressionantes.”

[“Souvenir de Portugal”:]

Palavra de António Sala e a ponte perfeita para “Souvenir De Portugal”, que talvez fosse uma canção de sucesso na Lisboa gentrificada de 2018:

“Muito galo ró-có-có
De Barcelos e não só

Pandemónio, pão de ló
E temos trouxas de ovos”

Roda o disco do primeiro single, “Eu Não Sou Poeta”, lado B, e conhecemos o infalível romântico que também habitava neste compositor, o popularucho de emoções ao rubro, citações corriqueiras que nos arrebatam pela simplicidade, de alta contaminação, dos miúdos aos graúdos, tudo a espernear que não é poeta não. Nos bastidores é a mesma equipe que acompanharia Carlos nos anos seguintes: Mário Martins na produção, Shegundo Galarza nos arranjos, e Hugo Ribeiro na consola, o omnipresente engenheiro de som da Valentim.

[“Eu não sou poeta”:]

Estava tudo lá, mas a canção não conseguiu fazer despontar uma carreira, nem com a estreia televisiva no “Febre de Sábado de Manhã”, Cinema Nimas, de bata branca, porque no meio desta brincadeira das cantigas, ainda estava a estudar medicina, a largar sempre a frase pronta, que preferia ser “um bom cantor a um mau médico”. “Uma inquietação dos pais, que pediam para ele terminar o curso”, revela Nuno Gonçalo da Paula. “Ele nunca exerceu medicina e quando os colegas em tournée lhe pediam para ver uma constipação, ou assim, dizia sempre: “Até te posso dar a receita, mas podes morrer’”.

“Fenómenos estranhos, com júris a dar zero pontos, muito esquisito”

Herman José, intérprete maior da escrita única de Carlos Paião, acede ao nosso pedido e viaja no tempo: “Quando o conheci percebi logo que era uma figura surpreendente, com uma capacidade de trabalho e concentração louca, basta dizer que quando começou a fazer espetáculos conseguiu acabar o curso de medicina. Outra coisa que me surpreendeu foi que ao princípio cantava de forma insegura e depois apanhou-nos todos de surpresa, conseguiu arranjar um mecanismo que funcionou, ninguém imaginaria que ele seria capaz”.

“És a miúda mais palerma, camelóide que eu já vi”, cantam todos, pelos recreios, pelas ruas, e para quem consegue exercitar a memória, impressiona os amigos com tiradas destas:

“Analfabruta, pestilenta, hipocondríaca
Avarenta, bexigosa

Vou comprar um dicionário
Que só tenha nomes feios
Para eu te chamar todos
Até teres o ouvido cheio”

A verborreia de “A Canção do Beijinho” foi o primeiro sucesso de Herman José, comediante que até então esperava impacientemente pela música certa, e foi também a primeira composição de Carlos Paião a entrar na psique nacional. “Quando ouvi a canção, a nossa primeira parceria, achei absolutamente genial, foi o grande sucesso desse verão, entrámos a matar”, diz-nos Herman todo satisfeito. Finalmente, com provas da sua capacidade de fazer música popular, Carlos começa, em playback, a preparar a sua entrada a pés juntos em todas as casas de Portugal.

[“A Canção do Beijinho”, por Herman José:]

Alexandra, Maria José Canhoto de nascimento, preparava o seu primeiro álbum de originais com uma canção de Paião, prática que se propaga inclusive para os artistas da Valentim, e qualquer músico que tivesse a sorte de apanhar o compositor na frente.

“O Carlos era um amor, uma pessoa fantástica e um compositor incrível. Em 81, depois do sucesso do ‘Playback’, cantei ‘Passeio de Charrete’, uma rara parceria do Carlos com o António Rosa. Pudemos logo perceber que ele fazia músicas com imensa graça, como as do Herman, e também baladas de melodias muito bonitas. O Carlos foi daqueles aparecimentos em Portugal que não se entende. Para nós que cantamos e não compomos, ele faz muita falta”, recorda a cantora.

“Todos queriam músicas de Carlos Paião”, confirma o biógrafo. “Porque sabiam que ele nunca disse não a ninguém, percorria todos os estilos possíveis de música e respeitava muito os colegas”. Além de Alexandra, seguem-se Joel Branco, Lenita Gentil, José Alberto Reis, Nuno da Câmara Pereira e por aí fora. “Uma característica única do Paião é que era bom demais, não se protegia, não sabia dizer que não e acreditava demasiado nas pessoas”, explica Herman, que nesse momento começa uma relação de grande proximidade com o músico.

“O Carlos era muito firme nas suas convicções”, acrescenta David Ferreira. “As únicas vezes que me lembro de o Carlos se zangar era para defender colegas, quando acontecia eu, ou outra pessoa, comentar que não devia dar canção a tal artista porque era muito piroso. Ficava furioso com estes comentários.”

“Ele era muito difícil de encaixar numa categoria, o lado intelectual era muito desenvolvido, o que permitia ser maior que tudo o que se fazia naquela fase da música portuguesa”, diz Herman José.

A capacidade profética de Paião estava evidente no primeiro álbum, Algarismos, a piscar o olho à eficiência técnico-táctica de Fernando Santos em “Zero zero”:

“A zero, a zero, a zero
Vai o jogo começar
Já se sente o desespero
Precisamos de empatar”

Algarismos é uma ousadia na música ligeira, um disco conceptual sobre os números, com produção burlesca de Mário Martins, entre David Bowie e Marco Paulo. “O Carlos nunca está em nenhuma das coisas que estão na moda, aparece em plena força do rock português”, lamenta David Ferreira.

“Quatro maços”, uma improvável canção anti-tabagista, era o mais próximo do boom rock, composto as restantes dez canções matemáticas com humor (“Meia-dúzia”, “Não há duas sem três”) e grandes baladas (“Os namorados”, “Feito num oito”), com brilho singular na pueril “Canção dos cinco dedos”. No final foi tudo insuficiente para igualar o sucesso dos singles anteriores. “É que ele era muito difícil de encaixar numa categoria, o lado intelectual era muito desenvolvido, o que permitia ser maior que tudo o que se fazia naquela fase da música portuguesa”, reflete Herman.

[“Meia Dúzia”:]

Cândida Branca Flor, das principais intérpretes do músico, é convocada para representar o campeão em título, no Festival da Canção de 82. Apesar da impressionante permanente, do verso sugestivo de “Toma lá cuidado/ Porque o teu amado/ Pode ser dos tais”, ou do regresso do bigode sensual de Pedro Calvinho nos coros, Cândida Branca Flor e o “Trocas e Baldrocas” são destronados pela cantiga delirante, fogo-de-artifício e confetis, potente remédio contra as vicissitudes da vida, que é, até hoje, o “Bem Bom” das Doce.

[“Trocas e Baldrocas”, por Cândida Branca Flor:]

Mais um ano, mais uma voltinha, e na edição de 83, no Porto, o próprio Paião decide cantar “Vinho Do Porto”, um dueto com Cândida que certamente iria derreter o coração nostálgico e patriótico do público nortenho. Na concorrência, além dos suspeitos do costume, estava um grande amigo, que ainda por cima consegue o segundo lugar, dois à frente de Paião e Cândida. “Eles eram favoritos”, confessa o improvável medalha de prata de 82, Herman José. “Convivemos com alguma tensão durante a competição, que acabou logo no dia seguinte, quando perdemos os dois”.

David Ferreira não fica convencido com o quarto lugar, de uma canção que continua, em 2018, a servir de banda sonora para brindes de Sandeman e companhia. “Não ganha o festival com fenómenos estranhos, com júris a dar zero pontos, muito esquisito, numa canção que conta uma boa história e está bem construída”.

Herman: “Dedicou-se demais aos espetáculos, foi isso que lhe levou a vida”

Hoje continua tudo igual. Portugal permanece numa relação intensa com Carlos Paião, basta ligar a rádio, e provavelmente, revirar os olhos aos primeiros acordes, produção foleira, até que bate o refrão, e aí bate que bate, bate coração, louco de ilusão, lembramos o primeiro amor, crianças a viver esperanças, e estamos rendidos a esta ingénua homenagem ao crescimento apaixonado chamada “Cinderela”.

[“Cinderela”:]

“Aquelas canções mereciam mais, mas naquela altura a canção ligeira era anacrónica nos arranjos e na produção”, justifica David Ferreira. “Era uma época de excesso de sintetizadores, que fazia baixar o orçamento”. Aquele sintetizador maroto, hoje mimetizado por lo-fis de barbas e bonés, na altura era o arranjo possível para estas grandes canções, sejam infantilidades (“Arco Íris”) ou slows de potência máxima, com lágrimas à Bonga, no canto do olho (“Versos de Amor” e “Discoteca”). “Era uma fonte inesgotável de composições, um repentista, não precisava de inspiração, acontecia estarmos sentados numa mesa, alguém dizia algum disparate, e passados dez minutos estava feita uma cantiga”, testemunha António Sala.

A derradeira passagem no Festival da Canção seria em 86, ao lado dos vencedores anteriores, à la Live Aid, mesmo ano que lança o faducho “Cegonha”, rodeado de criançada, e canta a batida africana de “Lá Longe, Senhora” num festival internacional em Tóquio. “Talvez o maior festival que se realiza no mundo”, como explica no “Deixem Passar A Música”. A presença constante na televisão não se restringe às cantigas, chega a fazer de maquinista em “O Foguete”, programa humorístico da RTP. Para quem recorda o tesourinho, é aquele programa com o genérico slapstick e aquela letra:

“Tem piano no bar
O Pião a cantar
Mais o Sala e Luís Arriaga”

Tudo imortalizado inclusive pela estreia televisiva do célebre rechonchudo Fernando Mendes, a comer um frango, como não podia deixar de ser.

Cândida Branca Flor e Carlos Paião

Na memória de António Sala: “A ideia era fazer um programa da televisão dentro de um comboio, inspirados pelo ‘Barco do Amor’ e o ‘Expresso da Meia Noite’. Era um programa ligeiro, com uma boa reação popular, mas a crítica foi impiedosa. O conceito inicial até teria atores, mas o Carlos insistiu que queria ser mesmo maquinista, e assim ficámos os três a fazer personagens. Apesar de tudo, o Carlos era quem estava menos presente nos bastidores, tinha imensos espetáculos, o curso de medicina. Não dormia e só comia sandes”.

O único foguete com potência para voar na televisão portuguesa era comandado pela nova força da comédia nacional: Herman José. Numa longa viagem, durante as tournées infindáveis de Herman e Paião pelas estradas portuguesas, começam a imitar Tony de Matos, Marco Paulo e entre os dois amigos, a matar o tempo, fazem parir uma criança de caracóis: Serafim Saudade.

“Desafiei-o a fazer músicas para o Serafim Saudade no ‘Hermanias’, e fizemos um disco inteiro”, conta o comediante, a descrever saudosamente esta época de diversão infantil. “Parecíamos dois miúdos a brincar”. “Ao contrário dos textos humorísticos, onde tenho quase sempre de retocar, nunca mudei uma vírgula destas canções, o trabalho já estava perfeito, ele era um artesão”.

O álbum de Serafim Saudade incluía um pente de plástico verde e o dueto “Prás Sogras que Encontrei na Vida”, com o verso pertinente “Ter uma sogra sempre ao lado/ É bem pior que ser multado”

“Numa sexta pedimos ao Carlos um hino para a selecção que ia para o México”, conta David Ferreira sobre o Mundial de 86. “Na segunda ele entrega o ‘Bámos Lá Cambada’”. “Como é que é possível uma música simples, trinta anos depois ser conhecida dos miúdos aos avós? Isto tem um nome, é génio”, defende Herman.

[“Bámos Lá Cambada”:]

Nos coros, a acompanhar o cordial alcoólico Estebes, está um leque invulgar, desde Marco Paulo, Luís Represas, a Alexandra. “Os solos femininos que se ouvem no “Bámos Lá Cambada” sou eu”, indica orgulhosa. “Foi muito engraçado, imagine o que é aquela gente toda junta, houve um momento em que fiz uma trapalhice na voz, e eles gozaram todos comigo.”

“Os nossos caminhos separaram-se um bocadinho porque ele começou a fazer muita estrada, descobriu que num espetáculo ganhava o equivalente a um mês de autor. Quanto a mim, dedicou-se demais aos espetáculos, porque foi isso que lhe levou a vida”, recorda Herman. Na última vez em que estivemos juntos ele foi fazer uma participação no meu programa ‘Humor de Perdição’, curiosamente fazia de médico, e lembro-me de lhe ter dito que, no estado em que estavam as estradas portuguesas, não fazia sentido estar constantemente em digressão. Acho que ele começou a expor-se demasiado. Os espetáculos ao vivo são muito absorventes, viciantes, e desligamos muito do resto das coisas.”

“E ele disse que só com canções não dava para ganhar a vida”

Agosto, mês de grandes romarias. Agosto de 1988, mês de grandes desgraças. O país repleto de emigrantes, cheios de francos suíços para gastar em música, nas cidades e terrinhas, onde se chegava por um tortuoso processo de horas e curvas. Por sorte apanhou dois dias de descanso no meio da temporada quente. No segundo, mau agoiro, o Chiado começou a arder. No terceiro dia tinha concerto marcado em Penalva do Castelo.

“Na altura era muito difícil”, explica Alexandra, colega de muitos palcos. “Os artistas desta geração não sabem a sorte que têm de ter estas estradas, andávamos em caminhos perigosíssimos, corremos muitos riscos, eram horas e horas na estrada durante a noite, e o Carlos acabou por sofrer com estas condições”. Um camião bateu de frente, na Estrada Nacional 1, perto de Rio Maior, e o cantor foi esmagado pelo sistema de som.

“Ele tinha 300 ou 400 canções feitas, estava constantemente a compor, a mulher ainda guarda uma gaveta com uma série de letras”, diz-nos Nuno Gonçalo da Paula. “Escrevia primeiro as letras, que era a maior dificuldade. Na música era rápido. Com os Trio Odemira escreveu numa bomba de gasolina, num guardanapo, a pensar nos três tons de vozes da banda”.

“Naquele momento era o artista português com mais espetáculos”, indica o biógrafo. “O acidente chamou a atenção para a forma como os artistas trabalhavam na altura: podiam ter um espetáculo em Faro no sábado e no domingo em Viana do Castelo. Ficou demonstrado que não se podia pedir tudo aos artistas”. “Cheguei a sentar-me com ele e dizer que não devia perder o tempo a correr o país, e escrever mais canções”, recorda amargurado David Ferreira, que na altura do acidente tinha um recado constantemente adiado para ligar ao cantor. “E ele disse, com razão, que só com canções não dava para ganhar a vida”.

“Ele era o típico brincalhão, e transpunha o seu espírito de forma natural para as músicas”, reflete Herman. “Porém, ao mesmo tempo que isto acontecia, tinha uma necessidade enorme de ser aceite como um músico sério, o que era um disparate”. O álbum póstumo, Intervalo, que sai no mesmo ano de 88, respeita o desejo final do compositor, de colar na capa o autocolante: “Nova música ligeira portuguesa”. Sem rodeios, era música ligeira, nova, diferente das restantes, e este disco apontava para um renovado Paião, um baladeiro ímpar, que poderia ter sido o nosso grande cantor romântico popular de corte fino. “Caiu redonda no chão”, “Intervalo” e “História Linda”, que expõe esta necessidade de amadurecer.

“A canção ficou marcada pelo inevitável peso da tragédia”, explicou Dina numa entrevista ao Observador sobre “Quando as nuvens choram”, uma das parcerias no disco, assim como “Mar de Rosas”, com o Trio Odemira. “Ele tinha 300 ou 400 canções feitas, estava constantemente a compor, a mulher ainda guarda uma gaveta com uma série de letras”, diz-nos Nuno Gonçalo da Paula. “Escrevia primeiro as letras, que era a maior dificuldade. Na música era rápido. Com os Trio Odemira escreveu numa bomba de gasolina, num guardanapo, a pensar nos três tons de vozes da banda”.

“Ele era o típico brincalhão, e transpunha o seu espírito de forma natural para as músicas”, recorda Herman José

Os órfãos, como António Sala e Alexandra, despedem-se do compositor da forma que gostariam, a gravar originais de Paião. “Gravei uma das últimas canções que o Carlos fez, que se chama ‘Tudo Acabou’”, lamenta a cantora. “Mostrou-me em casa dele, gostei logo da cantiga, muito bonita, isto dois meses antes de falecer. Quando consegui gravar foi uma grande emoção dentro do estúdio, ainda o convidei para lá ir, disse que não era possível, tinha muitos concertos, mas que confiava em mim”.

António Sala, que estaria prestes a gravar um álbum produzido pelo amigo, improvisa “Microfone e Voz” como uma homenagem. Hoje, alguns arriscam que o caminho de Paião estaria no teatro musical, outros em anos e anos de singles transversais, no estilo de “Palavras Cruzadas”, última entrada de Paião no Festival da Canção, em 89, por José Alberto Reis.

“Estou constantemente a homenagear Carlos Paião”, diz Herman, numa alusão à última homenagem no Festival da Canção. “É o pilar do meu espetáculo, não consigo livrar-me dele”. Não é só Herman José, somos nós todos, ainda presos às canções de Carlos Paião, a desdobrar-nos em versões, bandas tributo, como esta última por João Pedro Coimbra (Mesa) e Nuno Figueiredo (Virgem Suta e Ultraleve), ou na “O Senhor Extraterrestre” de Gisela João, “História Linda” de Carminho.

[“Pó de Arroz” pelo tributo Paião:]

Ou melhor, quando estamos no carro, a cantar esta mesma “História Linda”, alto e bom som, a lembrar uma história de amor, dessas que a gente já sabe de cor — por vezes, é verdade, com um final trágico. “E então perguntas-me a razão da história”, exclama Carlos Paião no último verso, eco que bate no mistério destas canções populares, que o próprio compositor esclarece em jeito de despedida:

“Sabes, amar é uma vitória
E a vida é simples de contar”.

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