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Leo Aversa

Leo Aversa

Carminho tem o que é preciso para cantar Jobim: "borogodó"

Primeiro em casa, depois entre amigos. A fadista conheceu assim as canções de Tom Jobim; e entre jantaradas surgiu o "que tal um disco" que agora é editado. Uma conversa com Carminho e Paulo Jobim.

Foi num jantar de cantorias que Paulo Jobim e a viúva de Tom, Ana Jobim, entregaram a Carminho um ficheiro Excel e um almanaque com trezentas canções, como quem diz “agora é só escolher”. A lista encurtou para 14 faixas, também com a ajuda de Chico Buarque – um dos convidados do disco, além de Maria Bethânia, Fernanda Montenegro e Marisa Monte – e com a certeza de que cada letra teria que soar bem em português de Portugal.

Se Carminho tem tudo o que a bossa nova quer, o mesmo se aplica para o inverso. Com a incrível mestria de Paulinho Jobim, Paulo Braga, Daniel Jobim e Jaques Morelenbaum, a Banda Nova, a última de Tom Jobim e que o acompanhou durante uma década, não dava para falhar. “Se não tivesse estas pessoas provavelmente não teria feito este disco”, esclarece a fadista. Ainda bem que tinha.

carminho canta jobim

“Carminho canta Jobim” (Warner)

Este disco é uma oportunidade única. Como surgiu?
Carminho (C): Surgiu assim de um encontro de amigos. O facto de nos últimos quatro anos ter ido muito ao Brasil e de terem existido muitos encontros… primeiro foram cruzamentos artísticos e é claro que esses encontros às vezes se tornam amizades. Partilham-se jantares e cantorias. Numa dessas sessões havia um songbook do Tom Jobim, construído aqui pelo Paulinho Jobim, começámos a folhear o cancioneiro e era do género: “Carminho cante esta agora…”. Aquilo começou-se a inspirar.

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Pelo meio apareceu a Ana Jobim, viúva de Tom, certo?
C: Sim, a Ana e a Kati, dona da Biscoito Fino, editora por onde sai este disco, desafiaram-se para isto. Não sabia se ia isso mesmo acontecer, mas fiquei logo a pensar que seria uma honra. Elas contactaram o Paulinho e…

Paulo Jobim (PJ): É que antes disso, um amigo português, o Ricardo Peixoto, tinha sugerido isso mesmo… “porque é que vocês não fazem então um disco do quarteto [Banda Nova] com a Carminho?”.

Já conhecia a Carminho, por essa altura?
PJ: Não, já tinha visto a sua primeira apresentação no Brasil e tinha ficado muito bem impressionado, mas nem deu tempo para procurar o contacto… vieram logo ter comigo propor isso. Então nos encontrámos.

C: Foi quase uma coincidência estranha.

PJ: É, esse primeiro encontro foi estranho, ela diz que o português do Brasil é uma língua estranha…

C: Não, não, o que disse foi que me é estranho interpretar canções nessa língua. Estranho no sentido de não me entranha, não me é natural, mais rapidamente interpretava naturalmente uma canção inglesa ou francesa. É como se você tivesse de cantar com o sotaque do nordeste.

PJ: Ou em português de Portugal.

"No fado, o fadista é intérprete e depois há o poeta que está na mesa do canto da taberna. Só que ficou fixa a ideia jocosa de que o fadista é o canário [risos]. Ao contrário de alguns canários, gosto de saber o que estou a cantar, a música que está lá dentro, sou eu que escolho tudo. Dou sempre uma canelada ao gozão que me vem chamar de canário."
Carminho

E o que ficou decidido nesse primeiro encontro?
C: Quando tive a honra de conhecer o Paulo ele vinha com um calhamaço com quase trezentas canções do Tom Jobim.

PJ: É, eu cheguei e disse para a Carminho cantar essas [risos].

Essas trezentas, é isso?
C: Sim, e se por um lado foi assustador, que o Paulo diz que quase me afugentou do projeto mas é mentira, não foi assustador, foi um grande desafio. Não foi tão evidente como cantar aquelas canções com que já estava familiarizada, foi antes pensar que tinha ali trezentas canções e que queria mergulhar naquele universo. Era um Excel com data e ordem, tudo. E depois, claro, o Chico Buarque foi a pessoa que mais me falou de Tom Jobim, antes de ter conhecido o Paulo.

Coincidências à parte, o Tom Jobim é uma referência para muitos. Que memórias tens dele enquanto miúda?
C: Lembro-me de um genérico da Globo… “Vou-te contar…” [canta num tom baixo].

PJ: Era uma novela, e ficou muito na altura, “Vou-te contar…”.

C: Ah, fazia parte das conversas entre o elenco?

PJ: Acho que era da apresentação, sei que tinha esse número e aí vinham os casos mais graves

C: Já me lembro. Era uma novela que falava da vida real das pessoas e, no fim, havia um genérico, antecedida por esse “Vou-te contar…” e depois apareceu alguém a contar a sua história, um superdotado paraplégico que era paralímpico, uma pessoa que tinha superado um problema de droga… Bom, mas lembro-me também dos discos da minha mãe, portanto, lembro-me ainda de outras versões de Jobim. Tudo.

FOTO 10 CARMINHO E PAULO JOBIM_1

Carminho e Paulo Jobim

Acaba por beber dessa noção de parceria e de partilha que os brasileiros têm bastante. Ainda que seja fadista, que por norma ocupa um lugar solitário.
C: É um preconceito que quero quebrar. Gosto de escrever, compor, gosto deste processo que eles utilizam e que acho muito natural. No fado, o fadista é intérprete e depois há o poeta que está na mesa do canto da taberna. Só que ficou fixa a ideia jocosa de que o fadista é o canário [risos]. Ao contrário de alguns canários, gosto de saber o que estou a cantar, a música que está lá dentro, sou eu que escolho tudo. Dou sempre uma canelada ao gozão que me vem chamar de canário.

Falaram num Excel de onde foram escolhidas catorze entre trezentas…
PJ: Você nem sabe… foi um trabalho estatístico [risos].

C: Foi estatístico foi.

Presumo que tenha dado prioridade aos temas que resultariam melhor em português de Portugal.
C: Na verdade foi excluir. Sobretudo algumas de que gostava muito, só que não daria para cantar com o meu sotaque português. O Paulinho fez a lista dele, o Chico Buarque também… só que no fim o berbicacho foi meu, é um processo solitário. Sou eu que tenho de as defender e cantar.

Ninguém saberá melhor os limites da própria voz…
PJ: Nem mais. Não me pareceu fácil, quanto mais ela cantava e gostava, pior.

C: Exato, no fundo, tinha que escolher canções que se tornassem minhas. Vou cantar um intérprete que já foi tocado centenas de vezes, ou seja, tinha que trazer a minha identidade para as fazer minhas. Aí estará a minha linguagem e a minha cultura mas também o meu gosto.

"[Carminho] Tem aquilo que se chama de borogodó. Não sei o que é, é uma palavra brasileira que deve ser africana. Ela tem borogodó, é uma coisa que todo o mundo especial tem. É uma ótima cantora, firme, não sei... afinadíssima, fiel às letras, tudo."
Paulo Jobim

E como foi ouvir a bossa por uma fadista?
PJ: Adorei, durante a gravação ficava preso a cada música, quando ela vinha e cantava era uma coisa nova para mim, as músicas tomam uma outra dimensão, não só pela emoção dela mas também pela língua, que me parece que dá um status maior à poesia, quando é falado em português de Portugal.

Chico Buarque, Maria Bethânia, Marisa Monte. Estas colaborações são também uma aproximação a gente que é profundamente conhecedora de Tom Jobim.
C: Sim, sem dúvida, mas a minha grande parceria neste disco é a Banda Nova. São estes quatro músicos, o Daniel (neto de Tom) era da Banda Nova de pijama, quando era pequeno, porque ficava a ouvir os ensaios, ele tem o piano do Tom Jobim, os silêncios, aquela linguagem, como mais ninguém. Depois estes três músicos que tocaram com o Tom durante dez anos, esta banda nasceu no ano em que eu nasci.

PJ: Provavelmente a gente ninou você. [risos]

C: Portanto é o Paulinho Jobim, o Paulo Braga, que é o maior baterista brasileiro, tocou com a Elis, com o Milton, com o Caetano. E o Jaques Morelenbaum, todos sabemos o maestro e músico que é, um violoncelo que se traduz sempre em coisas simples e surpreendentes. Este quarteto deu-me a liberdade de ser livre, foi a grande generosidade deles. Sabendo tanto, estando tão à vontade com o reportório, deram-me uma liberdade para fazer como queria, para até sugerir algumas coisas. Este disco posso chamá-lo meu, mas se não tivesse estas pessoas provavelmente não o teria feito.

Seria um risco demasiado grande.
C: Sim e não me sentiria livre para estar como eu sou, sem alguém que me diga “Carminho vai”. Com aquele “vai”, de um Paulinho Jobim, eu vou, com um “vai” de um louco qualquer não vou. Mas falando dos convidados, são todas as pessoas que me deram Tom Jobim. O Chico Buarque com todas as histórias, é um mestre que admiro como poucos. O que o Tom Jobim fez com o Chico é o que o Chico faz comigo. A canção “Retrato em Branco e Preto” foi a primeira parceria entre ambos, é mítico. A Maria Bethânia é uma das maiores intérpretes de Tom Jobim, é incrível, morde as palavras, conhece o português. Isso ensina-me Tom Jobim. Quando cantei com a Bethânia ela cantou e eu segui-a.

E a Marisa Monte?
C: A Marisa já é mais da minha idade, ainda que seja de uma geração acima. Vamos dizer que somos quase da mesma idade, como sendo um elogio para as duas [risos]. É uma pessoa que traz a tradição mas leva-a à modernidade.

Aquele arranjo de voz foi perfeitamente natural?
C: Aquele arranjo de voz, e está aqui o Paulinho para dizer se já viu isso acontecer, só se consegue quando há muita muita intimidade. Aquilo que se ouve é o que fazemos em casa.

Foi num take?
C: Foram dois. Mentira, foram três, para ser mais precisa. O primeiro aquecendo a voz, o segundo com ideias e o terceiro foi o final. Foi muito divertido.

PJ: Eu perdi esse dia das duas, porque andei a ter umas febres durante o disco… foi azar. É curioso que se cante tanto o meu pai, ele sabia muita música do mundo, na verdade gostava mais de tocar a música dos outros do que a sua.

"Ainda estou a fazer deste disco uma realidade, ainda estou no espanto deste disco. Ainda estou espantada que este disco seja meu. Não me mimetizei a nenhuma linguagem, mantive-me firme e isso é um orgulho para mim."

Portanto está seguro que o seu pai se reveria nesta escolha da Carminho.
PJ: Olha, quando ouvi a Carminho cantar pela primeira vez fiquei muito emocionado com o seu jeito de cantar, com a emoção, a mesma coisa aconteceu com a Ana Jobim, que estava nesse jantar onde tudo começou. Nós vimos uma cantora fabulosa e ficámos com vontade de fazer isso, para nós é diferente do que ver mais uma cantora brasileiro fazer mais um disco do meu pai.

Mas o que é que a Carminho tem que vos fez perceber que seria a pessoa ideal?
PJ: Tem aquilo que se chama de borogodó. Não sei o que é, é uma palavra brasileira que deve ser africana. Ela tem borogodó, é uma coisa que todo o mundo especial tem. É uma ótima cantora, firme, não sei… afinadíssima, fiel às letras, tudo. Acho que esses são os motivos.

E chegam.
PJ: É, e bastam.

Ficou a vontade de experimentar ainda mais coisas, depois disto?
C: Isto não é fado, obviamente. Mas o fado é que me ensinou a cantar, o fado foi a minha escola interpretativa. Ouvir bem os silêncios, escolher as canções, o fado ensinou-me a cantar qualquer música, se até hoje tenho sido muito feliz a cantar fado tradicional? Sim. De repente descobri um compositor que me faz sentir igual, que me preenche da mesma maneira, leva-me a um lugar de calma e ao mesmo tempo de adrenalina. A arte serve para nos desacomodar. O fado libertou-me, deu-me um navio e fez-me chegar ao Brasil. Mas vou chegar a muitos lugares, de certeza.

E sobre o tal “experimentar mais”…
C: Não sei… Ainda estou a fazer deste disco uma realidade, ainda estou no espanto deste disco. Ainda estou espantada que este disco seja meu. Não me mimetizei a nenhuma linguagem, mantive-me firme e isso é um orgulho para mim. Mas ao mesmo tempo é uma honra estar a tocar com esta gente. Agora a resposta é sim, estou aberta, não sei é o que vai ser.

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