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O novo cartão social, anunciado ainda com o anterior governo, deverá ver a luz do dia no final deste ano. Vai substituir o cabaz de alimentos que era visto com reticências por retirar liberdade de escolha aos beneficiários. Para a ministra da Segurança Social, Rosário Palma Ramalho, a nova modalidade é uma “maneira mais eficiente, mais digna e discreta de as pessoas poderem prover de necessidades absolutamente básicas de alimentação”.

Os especialistas ouvidos pelo Observador concordam que esse risco diminui, que o cartão é “mais discreto” e confere um maior grau de cidadania e responsabilização a quem dele beneficia. A liberdade não será total: os consumos estão limitados a uma lista que contém categorias de produtos suficientemente latos para incluírem maior variedade de alimentos do que o cabaz, como o “talho”, a “peixaria”, “vegetais e batatas congelados”, “frutas/legumes”, até a “sumos e néctares”, “bolachas”, “sobremesas e doces”. Álcool ou tabaco, por exemplo, ficam de fora.

O que é o cartão e porque é diferente do cabaz?

O novo cartão social será atribuído às famílias mais carenciadas, que sejam identificadas como tal pelas instituições locais, e permitir-lhes-á escolher e comprar os bens alimentares. Ao contrário do cabaz — cujos produtos estavam pré-definidos — o cartão dá maior liberdade de escolha, embora não total. Só serão aceites alimentos de uma lista de 36 categorias de produtos, algumas das quais suficientemente latas para poderem abranger vários produtos e, assim, dar maior liberdade de escolha ao beneficiário — veja-se o exemplo do “talho” (que poderá incluir diferentes tipos de carne), “peixaria” (o mesmo para o peixe), “queijo”, “padaria/pastelaria”, etc.

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No comunicado divulgado na semana passada pelo Ministério é referido que o cartão “dá maior liberdade e dignidade às famílias mais carenciadas, permitindo-lhes optar pelos bens alimentares que preferem, diminuindo o risco de estigmatização”.

Quanto dinheiro será carregado no cartão?

Segundo o Ministério da Segurança Social, serão atribuídos 50,95 euros ao responsável pelo agregado, mais 70% deste valor (35,67 euros) por cada membro do restante agregado familiar, seja maior ou menor de idade.

Como se recebe o cartão?

O cartão será entregue aos beneficiários do cabaz alimentar que sejam selecionados pelas instituições locais que apoiam os mais carenciados. Questionado sobre quais os critérios para a atribuição deste apoio, o Ministério do Trabalho responde que “serão as instituições a avaliar as famílias que estão em condições de poder beneficiar do cartão, de acordo com o seu perfil”. “Essas instituições, que estão no terreno, estão nas melhores condições para fazer essa avaliação”, acrescenta.

O cartão permite comprar qualquer produto?

Não. Enquanto que com o cabaz eram entregues produtos previamente definidos, o cartão dá ao beneficiário a possibilidade de escolher que alimentos compra, mas de uma lista com categorias de produtos.

Ao todo são 36 categorias de produtos, divididos por 11 “unidades de negócio” (alimentação saudável, bacalhau, bebidas não alcoólicas, charcutaria, confeitaria e doçaria, congelados, laticínios, mercearia, peixe congelado a granel, perecíveis e produtos refrigerados). O Ministério da Segurança Social explica que a lista “é de bens de primeira necessidade” e “não de marcas”, pelo que o beneficiário poderá escolher as marcas que quiser, desde que dentro das categorias definidas.

A intenção do anterior governo era deixar de fora os alimentos não saudáveis. Aliás, em outubro foi noticiado que o caderno de encargos do contrato de aquisição de serviços de emissão, gestão, carregamento e reporte financeiro, celebrado com a Ticket Restaurant de Portugal, previa numa cláusula que excluía os alimentos “manifestamente desalinhados com a promoção do princípio da dieta adequada e saudável“. Porém, a lista partilhada com o Observador inclui categorias que podem abranger alimentos menos saudáveis, como as bolachas, os doces e as sobremesas.

No comunicado da semana passada, o Governo indica que o cartão “permitirá às famílias mais carenciadas escolher e comprar os bens alimentares que mais se adaptem à suas preferências e hábitos”, o que “não obsta que sejam sensibilizadas para a importância de uma alimentação saudável e equilibrada nutricionalmente”. Fonte do Ministério indicou ao Observador que a Direção-Geral da Saúde (DGS) esteve envolvida na criação da lista, tal como acontecia com a definição dos cabazes. “A DGS definiu a composição do cabaz tendo por referência o que considera uma dieta mediterrânica equilibrada. Além disso elaborou um manual que é disponibilizado às instituições locais”, referiu.

A lista do cartão é diferente da que servia de base à constituição dos cabazes. Segundo a informação que consta no site do Programa Operacional de Apoios às Pessoas mais Carenciadas, o cabaz no continente é elaborado pela Direção-Geral da Saúde e composto por 21 de 25 produtos, entregues mensalmente ao beneficiário. Esse cabaz deveria incluir: leite meio-gordo, queijo meio-gordo, arroz, massa, cereais de pequeno-almoço, tostas, bolacha Maria, feijão em lata, grão de bico em lata, ervilhas em lata, frango inteiro congelado, pescada congelada, atum em lata, sardinha ou cavala em lata, tomate pelado, mistura de vegetais para sopa ou brócolos, feijão verde ou espinafres, cenoura ou alho francês, azeite, creme vegetal e marmelada.

Segundo a execução do POAPMC de 2022, nesse ano, foram distribuídos no continente mais de 531 mil cabazes de alimentos, o que corresponde a 22.341 toneladas de géneros alimentares. Foram abrangidos, ao todo, 150.415 destinatários finais relativos a 56.119 agregados familiares. Mais de 41 mil dos destinatários tinham menos de 15 anos e quase 12 mil tinham mais de 65 anos.

O cabaz tinha sido construído com a Direção-Geral da Saúde (DGS) para assegurar 50% das necessidades nutricionais de cada destinatário. Faz parte do programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas (POAPMC), um mecanismo cofinanciado em 85% pelo Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas, que estava então a chegar a mais de 120 mil pessoas por mês. O número poderia, no entanto, ir variando consoante as necessidades dos beneficiários fossem evoluindo.

Onde é que o cartão poderá ser usado?

Segundo o Ministério, os bens podem ser adquiridos na rede de estabelecimentos comerciais aderentes ao programa, existente em todo o território continental. A lista dos estabelecimentos aderentes “ainda está a ser constituída”. A tutela não explicou como é que os estabelecimentos vão conseguir monitorizar que só determinados produtos sejam comprados com o cartão.

Quando entra em vigor?

O cartão entra “em pleno funcionamento” no último trimestre do ano e pode abranger 120 mil pessoas (o Ministério já referiu que, numa fase inicial, chegará a 45 mil famílias, continuando os restantes a receber o cabaz).

A ideia é nova?

Não e já tinha sido anunciada antes, pelo anterior governo. Em 2021, o Instituto da Segurança Social anunciou o lançamento de uma consulta preliminar pública para que o apoio alimentar às famílias carenciadas fosse atribuído através de cartões eletrónicos, “para dar seguimento à medida do Governo de simplificar o acesso a este apoio”. Na altura, os cartões eram referidos como “e-vouchers” e já se antecipava que seriam “recarregados com uma periodicidade, no mínimo, mensal, com um determinado montante financeiro transferido pelo Instituto da Segurança Social”. Também se frisava que estaria proibida a compra de bebidas alcoólicas ou tabaco.

A medida foi sublinhada pela então ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, como “um passo gigante para Portugal estar na linha da frente na adoção de soluções inovadores, mais eficientes e personalizadas”, reduzindo-se a “estigmatização muitas vezes associada às famílias carenciadas, que assim passam a adquirir os seus bens em igualdade de circunstâncias com as outras famílias, e promove a autonomia, permitindo que cada família possa gerir o seu orçamento”.

A ideia do cartão também já constava no plano de ação da estratégia nacional de combate à pobreza 2022/2025, que foi apresentado em outubro de 2023, lembra Sandra Araújo, coordenadora da estratégia, em declarações ao Observador. E segue o que tem sido uma prática noutros países, assim como uma discussão na sociedade civil que já tem alguns anos.

O cartão é menos “estigmatizante”?

Fernando Diogo, investigador do CICS.Nova e professor da Universidade dos Açores, concorda que o cartão social é “menos estigmatizante” e “mais discreto” do que o cabaz: em vez de terem de se deslocar a um dos locais de recolha (uma associação, por exemplo), os beneficiários vão ao super/hipermercado, “escolhem o que querem, ninguém sabe se estão a pagar com um cartão social ou outro”.

Isso também significa maior liberdade para os beneficiários, o que aumenta o grau de cidadania e responsabilização. “Aquilo que nos faz adultos é a capacidade de decidir o que queremos, dentro de determinadas balizas, e os apoios sociais podem ser desenhados para respeitar essa liberdade ou para controlar as pessoas. O sistema dos cartões permite que as pessoas se sintam mais adultas, mais cidadãs. Atribui-lhes cidadania”, aponta, ao Observador.

Essa maior liberdade também leva a uma melhor adequação às necessidades de cada um, por exemplo, nos casos em que há intolerâncias alimentares. “As pessoas em situação de pobreza estão longe de ser todas iguais. As medidas que tratam as pessoas todas da mesma maneira têm sempre o risco de não serem adequadas para todas. Deste ponto de vista, tem melhores resultados”, acrescenta. A opção do cartão também tem em conta os gostos de cada um, que no cabaz são anulados. “Estamos a falar de cidadãos como os outros, que têm direito a ter os seus gostos”, afirma o investigador.

A lista com as 36 categorias alimentares limita essa liberdade, mas é uma opção com que Fernando Diogo concorda, uma vez que ajuda a garantir que o apoio é direcionado para a satisfação de necessidades básicas e ajuda a evitar “consumos hedonistas”, que procuram o prazer imediato. “Mais uma vez temos de partir da ideia de que as pessoas não são todas iguais. Estou convicto que a maioria vai utilizar para satisfazer as suas necessidades, mas outras poderiam — sem as tais balizas, e em casos minoritários mas que acabam por ser mediatizados — sentir-se tentadas a fazer alguns consumos hedonistas”, explica.

É que “é preciso ter noção de que a vida das pessoas que recebem o apoio é muito dura, no sentido em que os momentos de prazer são muito poucos”. “Há uma necessidade de normalidade na relação consumo-prazer que estas pessoas não têm satisfeitas e pode gerar um consumo hedonista em que se gasta tudo em coisas não essenciais e as necessidades básicas ficam por cumprir, em que se gasta agora e não se pensa no futuro porque muitas vezes têm pouco controlo sobre o futuro. Isto visto de fora pode parecer como irracional, mas quem critica não sabe o que está por trás”, explica.

Sandra Araújo, coordenadora da estratégia nacional de combate à pobreza, também vê benefícios nesta alteração por dar “liberdade de opção, no que se chama ‘soberania alimentar'”. Além de que o mecanismo dos cabazes obrigava a uma logística “muitíssimo pesada”, que impossibilitava, por exemplo, a entrega de produtos frescos ou congelados. Essas barreiras caem.

Por outro lado, evita constrangimentos que chegaram a ser noticiados recentemente, de cabazes atribuídos mas estando incompletos. Aconteceu, por exemplo, em 2023, com o Ministério da Segurança Social, então liderado por Ana Mendes Godinho, a justificar com os impactos nas cadeias de abastecimento da guerra.