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Stepney morreu há 46 anos, com (precisamente) 46 anos, de ataque cardíaco. Porque se fala nele hoje? Porque graças ao trabalho – e insistência – das filhas, desde a década de 1980, uma parte desconhecida do seu legado está agora disponível
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Stepney morreu há 46 anos, com (precisamente) 46 anos, de ataque cardíaco. Porque se fala nele hoje? Porque graças ao trabalho – e insistência – das filhas, desde a década de 1980, uma parte desconhecida do seu legado está agora disponível

Stepney morreu há 46 anos, com (precisamente) 46 anos, de ataque cardíaco. Porque se fala nele hoje? Porque graças ao trabalho – e insistência – das filhas, desde a década de 1980, uma parte desconhecida do seu legado está agora disponível

Charles Stepney: as gravações nunca antes ouvidas de um produtor visionário revelam-se por fim

Um dos grandes álbuns de 2022 foi gravado numa cave de Chicago nos anos 70. "Step on Step" revela tesouros inéditos do músico e produtor de Earth, Wind & Fire, Rotary Connection ou Terry Callier.

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No passado da música popular existem muitos segredos muito pouco secretos. Por vezes, é apenas uma questão de perspetiva. Pode nunca ter ouvido o nome de Charles Stepney, mas é possível que já tenha ouvido muita música pensada, arranjada e produzida por ele. Foi um dos nomes chave da soul de Chicago nas décadas de 1960/1970 e é idolatrado por muitos. Quem o conheceu em vida fala com um brilho nos olhos sobre a forma como criava um sucesso instantâneo em pouco tempo, no chamado “em menos de nada”, ou o tempo de vida de um cigarro à porta do estúdio. Elton John, a dado momento, foi obcecado por ele, comprava tudo o que tinha as palavras “Charles” e “Stepney” nos créditos e sonhava trabalhar com o produtor. Nunca aconteceu. Stepney morreu há 46 anos, com (precisamente) 46 anos, de ataque cardíaco. Porque se fala nele hoje? Porque graças ao trabalho – e insistência – das filhas, desde a década de 1980, uma parte desconhecida do seu legado está agora disponível num álbum absolutamente magistral, Step On Step, editado pela International Anthem.

São 78 minutos, mais de 20 composições instrumentais que juntam funk, soul, boogie, jazz, abordagens ingénuas, mas justificadas e acertadas, a instrumentos de eletrónica que estavam em voga na época. Gravações que Stepney fez na cave da sua casa — onde criou tantos hits para outros — durante os tempos livres. Não viveu para editar esta música. É possível até que o carácter de experiência – mas não experimental – de algumas destas canções as tornasse avessas à época. Outras reconfiguram fórmulas jazz populares na altura, como os discos de Vince Guaraldi para os especiais de Charlie Brown. De certa forma, as canções de Step On Step serão melhor compreendidas agora.

Não se confunda esta ideia com o cliché-iguaria de que “Stepney era um génio” e que estaria “à frente do seu tempo”A verdade é que no próprio tempo que viveu foi brilhante, criando pérolas para Earth, Wind & Fire, Rotary Connection, Minnie Riperton, Dells, Terry Calier, Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Mannhattans, Ramsey Lewis, entre muitos outros. Durante anos, foi um músico de jazz sem sucesso, até arranjar um trabalho na Chess Records. Aí chamou a atenção de todos o que o rodeavam. Sem dar por isso, estava a criar o som dos Rotary Connection, misturando jazz com rock psicadélico ao longo de seis álbuns cheios de momentos altos.

A vontade do pastor

Reza a lenda que tudo começou em meados da década de 1960. Na altura, Stepney era um músico de jazz, que tocava piano e vibrafone. O trabalho era muito irregular, volta e meia conseguia uns biscates noturnos em clubes de jazz. Davam dinheiro, mas não eram a melhor opção — a mulher não gostava de ficar sozinha em casa, com as filhas, à noite. Um dia, estavam os dois na igreja, queixaram-se dos seus problemas e consta que o pastor pediu a Deus para que Stepney conseguisse uma fonte de rendimento mais segura e regular, que trabalhasse em música e conseguisse fazê-lo no conforto do lar, se possível. Desejo ambicioso, em tempos distantes do teletrabalho e da facilidade de ter estúdios em casa. Stepney conseguiu mais ou menos o que queria.

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[ouça “Step on Step” de Charles Stepney através do Youtube:]

A vida deu uma volta quando conseguiu o trabalho na Chess Records. Não lhe caiu tudo no prato, começou primeiro como músico de sessões e tratava de alguns arranjos. Estávamos em 1966. Cedo começa a despertar a atenção dos chefes da Chess, o seu talento para criar melodias, encontrar os arranjos certos e revelar a natureza dos artistas – puxar para o som o que tinham de melhor – começa a notar-se. O modo como o fazia parecia inato, conseguia criar ouro com uma naturalidade impressionante: isso explica a sua prolífica produção de qualidade ao longo de dez anos. Em pouco tempo está a colaborar com o filho de um dos fundadores da Chess Records, Marshall Chess, num projeto novo para sair numa editora paralela, a Cadet Concept. Assim foram criados os Rotary Connection (Minnie Riperton, que Stepney também produziu, era a vocalista). O álbum homónimo de 1967 pode ser visto hoje como um mapa para o currículo futuro de Stepney, a forma arejada com que magicava orquestrações e vozes muito funcionais, que pareciam estar ao serviço de algo maior.

O trabalho com os Rotary Connection colocou-o no mapa e a vontade de explorar levou-o a trabalhar com músicos de diferentes géneros, desde os blues (Muddy Waters ou Howlin’ Wolf), a soul (Terry Callier, Dells ou Deniece Williams), o jazz com o trio de Ramsey Lewis, onde reencontrou Maurice White e ajudou a fundar o som funk/disco dos Earth, Wind & Fire. Enquanto isto tudo acontecia, Stepney ia desenvolvendo o seu pequeno estúdio em casa. Durante a década de 1970, era normal trabalhar a partir da base doméstica, onde se encontrava com os músicos e, em instantes, apresentava melodias certeiras. Talvez por isso algum do trabalho nesta edição da International Anthem inclua melodias que não serão estranhas a quem desejar explorar – ou já conhece – o trabalho de Stepney como produtor. Algumas ideias já andavam a flutuar por aqui. Ou, em alguns casos, evoluíram para outra coisa qualquer.

O disco presenta o músico que existia na cave ao mundo (ou a uma grande parte dele, que não o conhecia), ora explorando ideias que ficariam para si ou melodias que “daria” a outros, como “Imagination”, dos Earth, Wind & Fire. E a ideia adjacente ao disco é mesmo essa, a de apresentar, há uma história que é contada nestas canções, algumas delas a partir de diálogos entre as filhas, sem a necessidade de contextualizar.

A história agora contada

Esta antologia é também uma revelação. Pelos normais pedaços de História que ficaram por contar, o que ficou por acontecer, mas sobretudo pela naturalidade e o génio de um músico em sua casa. A dado momento, numa das faixas áudio desta edição em que as filhas tecem comentários sobre a música do pai, elas brincam com a palavra “moog”, porque não têm a certeza da forma correta: se é “mogue” ou “mûg”. E riem-se disso, enquanto realçam o quão pioneiro e visionário o pai era por estar a experimentar com aquele sintetizador em Chicago, naquela altura. Há qualquer coisa que fica nas entrelinhas, sente-se uma inocência na voz delas, as mesmas em que se mistura o sucesso da carreira de produtor do pai com a ausência de conhecimento geral do quão brilhante era aquilo que ele fazia na sua casa, para si e para a sua família.

“Step On Step” é uma coleção especial. Porque apresenta o músico que existia na cave ao mundo (ou a uma grande parte dele, que não o conhecia), ora explorando ideias que ficariam para si ou melodias que “daria” a outros, como “Imagination”, dos Earth, Wind & Fire. E a ideia adjacente ao disco é mesmo essa, a de apresentar, há uma história que é contada nestas canções, algumas delas a partir de diálogos entre as filhas, sem a necessidade de contextualizar, mais com a vontade de partilhar algo pessoal, ternurento.

[“That’s The Way of The World”, um primeira versão de uma canção que faria parte do catálogo dos Earth, Wind & Fire:]

É uma generosidade que se ouve nas canções. Stepney deu muito de si aos outros e isso ficou na música que criou na cave: na candura das melodias, nos jeitos quase infantis com que cria narrativas boogie/funk sem esforço. Ao ouvir alguns destes temas, dá para pensar o que seria da História de alguma música se estas canções tivessem saído da cave de Stepney no seu tempo. Histórias como as dele há muitas, de artistas que deixaram obra perdida ou de edições, que por N razões, ficaram esquecidas. Nas últimas duas décadas procura-se muito este tipo de artefactos, sobretudo a vontade de encontrar elos perdidos entre “isto” ou “aquilo”, ou até as raízes das raízes de certos géneros. A grande diferença de Stepney em relação a essas manias do mercado, é que na cave não estava a fazer nada de diferente do que já fazia e dava a conhecer ao mundo. Estava era a fazê-lo para si.

Os apontamentos do pai

Há uma intimidade avassaladora. Ouvir Step On Step de seguida, um privilégio recompensado. Há uma alegria contagiante logo num dos primeiros temas, “Daddy’s Diddies”; mais para a frente, “In The Basement” – curiosamente – tem melodias que não sabem conter a luz e, quase no final, “Notes From Dad” agrupa de forma brilhante todas as parcelas de jazz que se ouvem aqui e ali em “Step On Step”. Em quase todos ouve-se a mente de um produtor a trabalhar, a criar fórmulas perfeitas. Para si próprio.

Sai numa das editoras do momento, a International Anthem, que há bem pouco tempo esteve muito bem representada na última edição do Jazz em Agosto. A editora de Chicago trabalha, sobretudo, com músicos locais, editando alguma da música mais relevante do presente: basta olhar para as listas de melhores dos anos das principais publicações, nos últimos cinco anos, para encontrar lá discos da International Anthem. “Step On Step” foge à lógica do presente, mas mostra um outro lado da editora, o de cuidar da sua cidade e da música da sua cidade. Por isso, editar a música de Charles Stepney e ouvir “Step On Step” é sentida como uma homenagem necessária. Sobretudo porque o seu nome surge em tantos discos de Chicago.

Step On Step procura corrigir a história, mudar a forma como Charles Stepney é lembrado e esclarecer o quão é importante conhecê-lo. Este álbum fá-lo da forma mais inesperada possível. Chegar lá pela música que criou num pequeno laboratório caseiro é um evento especial, luminoso.

E também surge nos créditos de Jay-Z, Kanye West, Public Enemy, A Tribe Called Quest, Primal Scream ou Boards Of Canada. A lista é imensa (na verdade, se procurar, existem mais de 600 entradas em bases de dados que registam o uso de samples de Stepney). Para dizer a verdade, quanto mais se procura pelo nome de Charles Stepney, maior o embaraço pelo seu nome não ter uma maior presença no vocabulário musical. Se procurar pelo nome no YouTube, ficará surpreendido pelos resultados com depoimentos apaixonados. A Wax Poetics, por exemplo, tem lançado pequenos episódios dedicados à sua história e música.

Step On Step procura corrigir a história, mudar a forma como Charles Stepney é lembrado e esclarecer o quão é importante conhecê-lo. Este álbum fá-lo da forma mais inesperada possível. Poder-se-ia ficar a conhecer o génio de Charles Stepney através de uma compilação nos melhores temas que trabalhou, mas essas canções já se conhecem, só não se associa – necessariamente – o nome. Chegar lá pela música que criou num pequeno laboratório caseiro é um evento especial, luminoso. É provável que cause vício durante muitos meses, mas esse era um dom de Stepney. Estamos agarrados às músicas dele, há décadas, sem realmente sabermos.

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