Excertos da declaração de António Costa

Mensagem de António Costa sobre envio de apoios sociais para TC

A resposta à pandemia tem exigido um enorme esforço financeiro do Estado, isto é, de todos nós contribuintes, numa mobilização solidária da comunidade nacional em favor dos que mais têm sido afetados, bem sabendo que, perante a violência desta crise, tudo é sempre pouco para satisfazer as necessidades de cada um.”

O reforço de apoios sociais pode ter de recuar no futuro, caso o Tribunal Constitucional venha a dar razão ao primeiro-ministro, e António Costa fez questão de começar esta declaração por afirmar não ter reservas em abrir os cordões à bolsa. A pandemia tem exigido de todos — e aqui falou para “nós contribuintes”, a fórmula mas direta de apelo simultâneo ao lado mais economicista e ao lado solidário de cada português — e o Estado tem correspondido. “Não nos temos poupado a esforços”, garante na frase logo a seguir a esta, começando o elenco das várias medidas que tomou: no SNS, no apoio às famílias, ao emprego, às empresas, etc. E continuou por mais uns parágrafos do discurso, chegando mesmo a dizer que, “por iniciativa do Governo, já estão – e estarão – em vigor medidas de apoio à família, aos trabalhadores independentes e incentivos aos profissionais de saúde. Todas estas situações têm financiamento garantido no Orçamento do Estado”. E, na fase de respostas aos jornalistas, ainda acrescentou que vai pagar os apoios que considera inconstitucionais até à decisão do TC e que o próprio Tribunal, nessa altura, “pode não obrigar as pessoas a devolver o dinheiro que venham a receber” até lá, disse, tentando condicionar já à partida a decisão do coletivo de juízes. “Da declaração de inconstitucionalidade não resulta o desaparecimento de apoios sociais”, insistiu nesta mesma lógica.

No total, as medidas extraordinárias de resposta à pandemia impuseram já, até fevereiro deste ano, um aumento da despesa de 4 729M€. Este aumento da despesa social tem sido assumido, sem aumento de impostos, sem cortes no investimento público, nos salários ou nas pensões.

Segundo objetivo: quantificar, ainda com o português-contribuinte-que-quer-contas-prestadas na mira e perante as acusações da oposição de não estar a fazer o que se exige perante as várias carências sociais que a pandemia veio expor nos últimos meses. Até admitiu, já no final, que os “apoios existentes” podem não ser “suficientes para as pessoas que carecem”. António Costa a querer provar que não tem qualquer receio em furar o défice, quando o país o exige. E a propósito até mostrou como vitorioso um valor que há ano e meio seria impensável expor desta forma: “No curto espaço de um ano, passámos do primeiro excedente orçamental da nossa Democracia para um défice de 5,7% do PIB”. É uma frase ao contrário do que tem sido hábito nos discursos políticos desde que as metas de défice fixadas pela União Europeia trouxeram aos governos todo um discurso de rigor de contas públicas e de necessidade de contenção orçamental que tornou quase indistinto se quem estava no poder era mais à esquerda ou mais à direita. Desde Durão Barroso (e as queixas do Presidente Sampaio sobre a vida que tinha de existir além do défice) a António Costa, passando por José Sócrates e (sobretudo) Pedro Passos Coelho, que não se ouvia um primeiro-ministro a inverter totalmente essa lógica. O próprio António Costa era, até aqui, uma das vozes mais firmes sobre este rigor, escaldado que estava das críticas ao despesismo socialista que, no poder, tinha tantas vezes acabado em ajudas externa. Agora o novo politicamente correto parece ser exceder o défice. Não que o rigor tenha ficado para trás, mas Costa não quer que pareça que é por uma questão de austeridade que está a falhar aos portugueses.

É um esforço orçamental totalmente justificado. Porque perante uma conjuntura tão adversa, qualquer medida de austeridade seria profundamente errada, e, sobretudo, porque não podemos hesitar em gastar o que for necessário para que nada falte ao SNS e temos de mobilizar todos os recursos possíveis para apoiar a manutenção do emprego, a sobrevivência de empresas paralisadas pela crise e proteger os rendimentos das famílias”

Há poucos discursos políticos que tenham falado tanto de Passos Coelho sem o referir diretamente como este (mas já veremos mais exemplos). Aqui, no uso da palavra “austeridade” e na sua associação à palavra “crise”, o objetivo de Costa não pode ser mais claro: distanciar-se daquela receita que, entre 2011 e 2015, tanto criticou e que não quer repetir só porque está novamente em crise. A austeridade é “profundamente errada” para responder a esta maré baixa, insiste o primeiro-ministro num argumento que não é novo no seu discurso. Já disse, em várias ocasiões, que só o investimento pode ajudar na recuperação da economia que urge fazer nesta altura, depois de tantos meses de atividade económica parada ou a meia haste. Fixa também aqui que há três potencialmente intocáveis quando se fala em canalizar dinheiro para o que é importante: emprego, empresas e rendimento das famílias. E continua, no seu discurso, no desfiar de apoios (incluindo nesta fase os trabalhadores independentes, sócios gerentes, empresários individuais, casais com filhos, famílias monoparentais, restauração, turismo e cultura) com que o Governo já avançou neste ano.

Este reforço dos apoios sociais é fruto do intenso diálogo e negociação que o Governo promoveu e que permitiu a aprovação pela Assembleia da República do Orçamento de Estado para 2021″.

Em condições normais, que é como quem diz “num qualquer debate parlamentar”, António Costa puxaria a si e ao seu Governo os galões de cada um destes apoios. Mas neste caso interessa-lhe repartir os louros com a Assembleia da República. A mesma que aprovou com uma maioria que não lhe é favorável (todos menos o PS) os três diplomas que estão no centro deste caso e que reforçaram apoios sociais já existentes contra a vontade do Governo. Esse Parlamento que agora considera insuficientes os apoios, esteve no “intenso diálogo e negociação”, quer com isto dizer o primeiro-ministro. E aqui atinge os seus parceiros à esquerda: o Bloco porque esteve ao lado do Governo — com uma abstenção quando o PCP votou contra — no Orçamento Suplementar em 2020; e o PCP que esteve ao lado do Governo — com uma abstenção quando o BE votou contra — na viabilização do Orçamento para este ano. Ambos os exercícios orçamentais apareceram com um forte pendor de resposta a esta crise.

A nossa Constituição é muito clara na repartição de poderes. O Parlamento é soberano na aprovação do Orçamento e o Governo é totalmente responsável pela sua execução. Por isso, uma vez aprovado o Orçamento, a Assembleia não pode, nem aumentar a despesa, nem diminuir a receita, previstas nesse Orçamento.

E já que estava a falar do Parlamento, o passo seguinte: recordar que depois de aprovar orçamentos, é ao Governo que compete a sua execução. E não ao Parlamento. Cada instituição no seu galho. Só não referiu a outra figura institucional que entrou nesta equação concreta, o Presidente da República, a quem cabe a função de garantir o regular funcionamento das instituições democráticas. Não o fez aqui, nem em nenhum outro ponto do discurso, evitando o confronto direto numa decisão que é, em si mesma… um confronto direto com Presidente da República que, no caso, é também um professor jubilado que foi catedrático em Direito Constitucional. É que com este envio dos apoios sociais para fiscalização sucessiva e urgente dos apoios sociais, não só passa por cima de uma decisão de promulgação presidencial, como diz que a lei que o Presidente-constitucionalista deixou passar está ferida de inconstitucionalidade. E que o erro é até grosseiro, de princípio e “perigoso”. Mas António Costa quis fintar essa afronta direta e tentou colocar antes o odioso direto no Parlamento e não em Marcelo. Um problema com Belém é tudo o que não pretende ter com uma maioria parlamentar tão frágil. O que tem com o Parlamento, já não há nada que possa retardá-lo, está em marcha (e a aprovação, novamente contra a vontade do Governo e do PS, do prolongamento das moratórias concedidas em pandemia, é mais uma prova clara disso).

Lei é Lei e a Constituição é a Lei Suprema, que é nosso dever cumprir e fazer cumprir, sejam as medidas populares ou impopulares, estejamos ou não em ano eleitoral, seja ou não o Governo maioritário. A Constituição é sempre a Constituição. Esta pandemia é o combate mais duro das nossas vidas. Mas, tal como defendi na crise anterior, também esta crise tem de ser enfrentada no escrupuloso cumprimento da Constituição”

É talvez a frase mais importante da declaração que António Costa fez ao país esta quarta-feira. É aqui que tornou claro o que iria fazer (a certeza só chegaria já no fim da mensagem) e porquê. A “defesa da Constituição” é um bem em si mesmo, nesta frase de Costa, mas também traz um vantajoso argumento para atirar à esquerda nos próximos tempos. E mais uma vez a memória de Pedro Passos Coelho quando afirmou que tal como na “crise anterior” também nesta vai cumprir a Constituição. É uma das críticas que o PS de Costa mais fez — e continua a deitar — ao Governo de Passos, depois de alguns chumbos de normas orçamentais (incluindo o corte de pensões) do Tribunal Constitucional. Esse era o Governo que governava contra o Constitucional, na argumentação socialista, tanto que António Costa, em campanha logo em 2015, se apresentou como o candidato do “reencontro com a Constituição”, do regresso à “trajetória de normalidade constitucional”. Mais, no início de 2012, foi um grupo de deputados do PS e do Bloco de Esquerda que juntaram assinaturas para pedirem a fiscalização sucessiva do corte das pensões ao Constitucional — e acabaram por ganhar. Agora é servir um prato frio, sobretudo ao BE de Catarina Martins, a acusação de estar ao lado daqueles que, em tempos, quiseram violar a Constituição. E mais, chama, nestas entrelinhas, populistas a todos quantos foram neste barco — e aqui o Presidente não escapará, mas sobretudo os partidos que já vê empenhados na luta autárquica deste ano. O eleitoralismo cai sempre bem quando na política se fala na distribuição de dinheiro. Não vale tudo, diz Costa tentando conquistar espaço no lado bom desta força… eleitoralista.

É certo que o Senhor Presidente da República procurou limitar os danos constitucionais destas Leis ao propor uma interpretação que esvazia o seu efeito prático, e até reforça os poderes do Governo, ao entender – e cito – que ‘os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento de Estado vigente’. Ainda assim, subsistem questões por resolver”

O Observador já tinha noticiado, quando António Costa classificou de “muito criativa” a mensagem do Presidente da República que acompanhou a promulgação dos apoios sociais, que o primeiro-ministro ficara a cismar com a frase “os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento de Estado vigente”. Via-a, como revelou esta quarta-feira, como um reforço de poderes do Governo, que desta forma ficaria livre de não aplicar os tais apoios reforçados pelo Parlamento, bastando-lhe alegar incapacidade orçamental. Mas “o Governo não pode deixar de cumprir uma lei da AR enquanto esta vigorar”, disse sobre este ponto concreto, e ainda disse que os cidadãos merecem perceber com o que vão poder contar, que não pode ser ele a decidir, entre aqueles beneficiários, que mais merecia, e, por fim, o argumento que, por si merece um novo destaque (para ler a seguir).

É perigoso que se forme um precedente que abre a porta para o receio expresso pelo Presidente da República de  ‘a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado’. A incerteza jurídica gera insegurança e mina a confiança nas instituições”.

Aqui está  a verdadeira e inconfessada razão de enfrentar de forma clara o Presidente e aquilo que o Governo parece ver como uma tentativa de ser Marcelo — e não o Governo — a ficar com a faca e o queijo na mão, já que era o Presidente que passaria a vigiar, na promulgação de cada diploma que aumentasse a despesa, se haveria ou não capacidade orçamental e se era ou não uma tentativa “constante” do Parlamento de “desfigurar” o Orçamento. Quantas vezes seriam aceitáveis para Marcelo até vetar um destes diplomas? É que se na mensagem de domingo o Presidente garantiu que vetará “em caso de convicção jurídica clara, de se encontrar perante uma inconstitucionalidade e nenhuma justificação substancial legitimar o uso de veto” e se “a prática parlamentar passar a ser de constante desfiguração do Orçamento de Estado”, a verdade é que não o quantificou. E até lá seria ele e o Parlamento a determinarem se havia folga suficiente ou não. Em suma: geririam o Orçamento do Estado. Mais poder ou poder executivo muito condicionado, afinal? Costa hesitou, pensou e acabou por reclamar uma decisão que possa vir a protegê-lo para futuro. E até disse aos jornalistas que esse futuro pode mesmo acontecer nos próximos tempos, dramatizando o cenário pandémico. “A pandemia não está ganha e podemos ter retrocessos”, “pode agravar-se e o que conseguimos pode andar para trás” e aí será preciso ter capacidade orçamental controlada.

Trata-se do exercício normal das minhas competências, no quadro do princípio da separação e interdependência de poderes consagrado na Constituição, ou seja, como muito bem sintetizou o Senhor Presidente da República: “É a Democracia e o Estado de Direito a funcionarem”

E, por fim, a decisão e a assunção do “dever” de “solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação das normas aprovadas pela Assembleia da República” que António Costa considerou “inconstitucionais”. E também a justificação de não estar a enfrentar ninguém, mas sim a exercer aquela que é uma prerrogativa sua e constitucionalmente prevista. A fiscalização abstrata da constitucionalidade pode ser pedida pelo primeiro-ministro (artigo 281.º). Aliás, até atirou para Marcelo, já na fase das respostas às perguntas, ao recordar que Marcelo também disse que existia este caminho. Não haverá, por isso, “nenhum conflito com o presidente da República”, afirmou em São Bento. Não é uma extravagância nem um capricho, quis assegurar, mas é um socalco fundo no já sinuoso e estreito terreno político para o Governo de António Costa.