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JOÃO PEDRO MORAIS/OBSERVADOR

JOÃO PEDRO MORAIS/OBSERVADOR

De uma Alfama silenciosa a um Cais do Sodré disperso. Como se vivem os Santos Populares sem arraiais (mas com o da Iniciativa Liberal)

Sto. António não se acabou, mas a tristeza de quem o vive de perto (e fatura com ele) não é brincadeira. Em noite de Santos Populares, a fiscalização apertou e até os festejos possíveis foram murchos.

Em Alfama, o Largo do Chafariz de Dentro, em frente ao Museu do Fado, está completamente deserto. Não há manjericos, não há farturas, não há chapéus de sardinha na cabeça de nenhum folião, não há fogareiros, não há bebedeiras descomunais, não há manjericos verdinhos, não há sequer uma música pimba a sair de nenhum dos restaurantes ali em redor, que tentam manter-se à tona depois de meses fechados pelo confinamento e de mais um ano sem Santos Populares. Alfama está silenciosa, pelos piores motivos. Quem ali mora há uma vida não esconde a tristeza de uma tradição interrompida, já por duas vezes, por uma pandemia que não tem vindo a facilitar a vida dos comerciantes locais, nem de muitas famílias que nestas noites montam à porta o arraial e acabam por se sustentar durante vários meses do ano com o que ali faturam.

É o caso de Fernanda Caldeira, nascida em Alfama e onde ainda mora, que diz ser “com grande tristeza” que vive este dia. “Respeitamos as regras, claro, mas se há Caixa Alfama e outros eventos do género, a Câmara Municipal podia ter tentado organizar as coisas para que a gente pudesse estar aqui a ganhar a vida”, diz. Fernanda tem no Largo de São Miguel todos os anos um espaço só dela: há mesas, cadeiras, sardinhas, bifanas, espetadas e ginjinha. “Tenho o arraial todo montado nesses anos, é festa da grossa e ajuda a minha família, somos vários a trabalhar lá”, confessa Fernanda, que também faz venda em retiro. “Tenho 58 anos e os meus pais já vendiam nos arraiais, fui criada assim, não sei viver de outra forma e vieram tirar-nos a Alfama de sempre. Nem um fogareiro para assar umas sardinhas para mim posso ter à porta de casa, já viu?”.

JOÃO PEDRO MORAIS/OBSERVADOR

Logo ao início da rua, virado para o largo, está a Parreirinha de Alfama, casa com mais de 50 anos conhecida por ser casa de Argentina Santos, e onde todos se vestem a rigor como manda a tradição de uma verdadeira casa de fados bairrista. Bruno Costa, um dos sócios do espaço, em noite de casa com a lotação quase cheia, lembra que o público que procura as casas de fado não é o mesmo público “que quer a festa dos Santos Populares”. “Para as casas profissionais, na minha perspetiva, eu creio que pouco impacto tem [a proibição dos arraiais]. Como lisboetas fadistas nós aqui adoramos esta noite pela animação, mas do ponto de vista comercial pouca diferença faz, porque as pessoas que vêm para celebrar os Santos não são aquelas que nessa noite querem vir para uma casa de fados”.

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"A Câmara Municipal podia ter tentado organizar as coisas para que a gente pudesse estar aqui a ganhar a vida”
Fernanda Caldeira, habitante de Alfama

“São 20h30 e sabemos que só vamos fazer uma rodada de mesa. É triste”

Por outro lado, os cafés e restaurantes ali ao pé, com ou sem esplanada, dizem o contrário. Ângela Barros, empregada de mesa n’O Patrono, lamenta a decisão da autarquia ao mesmo tempo que defende que em “anos normais devia haver mais fiscalização de quem vende sem licença”. “Estamos aqui no restaurante, passamos fatura e fazemos tudo direitinho, e depois há muita gente em retiros e barraquinhas que não o faz. Uma pessoa também fica revoltada com isso, mas em 2020 e este ano o problema é maior ainda. Olhe-me para esta esplanada em noite de Santo António, acha normal?”, aponta para a dezena de mesas onde mais de metade está livre. “Em anos normais fazemos três rodadas de mesas ou mais, agora são 20h30 e sabemos que só vamos fazer uma. É triste”.

Câmara de Lisboa decide que não há arraiais populares este ano

São poucas as pessoas que circulam no bairro, e as que há, sem estarem sentadas à mesa de um restaurante, esperam por mesa em algum canto de uma Alfama silenciosa. O Lautasco, no Beco do Azinhal, é dos que mais fila têm à porta, sem estorvar a passagem a quem ainda vai na esperança de encontrar festa bairro acima. Miguel, que espera para ter mesa para jantar com os amigos “responsavelmente”, refere que ficou chocado com os últimos eventos que juntaram centenas de pessoas e “que não cumpriram as restrições impostas”, lamentando que “os arraiais, que são aquilo que as pessoas tanto anseiam, sejam proibidos”.

À sua frente estão ainda meia dúzia de pessoas, todas à espera de ter uma “pequena amostra” que seja dos Santos possíveis.

Maria de Jesus é uma das pessoas que dá a cara pela Ginja d'Alfama. Queixa-se de os terem deixado desamparados ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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Um pouco mais acima Maria de Jesus, uma das três pessoas à frente da icónica Ginja d’Alfama, move-se atarefada atrás do balcão para acabar de servir um pedido que tem na esplanada. Mas as queixas vão bater ao mesmo. “Vamos ficar completamente desamparados aqui, eles já tinham ideia de levar tudo para fora do bairro, então tendo agora dois anos sem santos por aqui vão levar-nos tudo”, aponta.

“Em 2020 foi pior, este ano temos algumas pessoas que vêm tentar viver as festas mas não há nada a acontecer. Dantes os lisboetas e os turistas vinham e gastavam imenso dinheiro, agora nada. Estamos zangados, estamos tristes, perdemos tudo, além do ânimo, que desapareceu”. Por aqui, nesta altura, juntariam-se à equipa, a ganhar cerca de 30 euros por noite, mais três ou quatro pessoas extra para ajudar a dar vazão ao serviço. “Agora nem vê-las. Para quê? Não temos clientela que compense ter mais pessoas. Fico com pena que não tenham esse dinheirinho extra, mas temos de manter a casa aberta com a pouca manobra que temos”.

“Só queria vir sentir este cheiro a sardinha”

Na esplanada, a acabar um prato de caracóis, está Sara Correia, de 30 anos, que diz que desde os 16 que vem celebrar para Alfama. No ano passado ficou em casa, mas este ano admite que “nem pensar”. “Só queria vir sentir este cheiro a sardinha. O que seria ficar em casa no dia de hoje, nem pensar. Está tudo controlado e dá para aproveitar nem que seja para jantar uma sardinha ou uma bifana fora de nossa casa”, diz. “Está uma noite boa, mas falta a música, o calor das pessoas, é muito estranho isto. E sabe a pouco”.

Entre ruas estreitas, mas pouco movimentadas, ouvem-se gritos. Finalmente, Alfama a ser Alfama. Um desacato entre vizinhas por causa de uma bola de uma das crianças da casa gera gritaria na rua, de janela para janela. Momento mais bairristas não havia. Que o digam a meia dúzia de pessoas que se juntou ao fundo da rua para assistir à discussão — estavam a precisar de animação, dizem, num dia murcho de Santos Populares.

Na Medrosa d’Alfama, com a esplanada composta no Largo de São Rafael, Ana Henriques janta com uma amiga depois de uma volta pela cidade que diz ter encontrado “vazia”, uma situação “incomum para estes dias em Lisboa”. Foi marchante pelo Bairro Alto durante muitos anos, mora na Mouraria, mas insiste em vir comer a Alfama — “faz parte da tradição, é fair play”. Ana diz que podia haver música das Marchas Populares na rua para animar a malta, e recorda que o Facebook a lembrou este sábado que há dois anos marchava pelo Bairro Alto, e que “agora é isto, um arraial que não é arraial, mas é porreiro para poder comer uma outra sardinha”.

As ruas vazias e os restaurantes a meio gás dominam o bairro, com forte controlo policial ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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No caricato Jardim das Pichas Murchas, um casal de italianos, a morar em Lisboa há quatro anos, diz ser “assustador a falta de gente nas ruas”. Já estão habituados desde que chegaram a cumprir a tradição como um qualquer lisboeta de gema, que sai e faz a farra na véspera de feriado. Dizem sentir saudades do barulho e da agitação, sobretudo de Alfama, Mouraria e da Graça, para onde costumavam ir nos outros anos. Nesta noite, esperam apenas que vague um lugar na esplanada para poderem, finalmente, comer umas sardinhas no pão, mas sem rebuliço.

A marcha segue — salvo seja, que as Marchas Populares também essas foram impedidas de saírem à rua — e subimos à Graça, outros dos bairros mais típicos e agitados desta noite de Santos Populares. Mas agitado era coisa que não estava, pelo contrário.

Uma Graça sem graça nenhuma

O bairro da Graça é por tradição também um dos mais concorridos na hora de, em anos ditos normais, sair à rua e abraçar as multidões, aceitar que sairá de lá com a roupa impregnada com cheiro a sardinha assada e de se agarrar a algum estranho que o puxe para mais uma ronda de “Apita o comboio”. Mas este ano, também o silêncio tomou conta das ruas e dos largos onde em anos pré-pandemia era até difícil andar sem ser aos encontrões. Paula e Carolina que o digam que, com a sua já habitual banca de manjericos na Graça, não escondem o desânimo de estarem ali nesta noite sem filas, sem tentativas de brincalhões que querem cheirar o manjerico e ainda com cerca de 20 plantas das 100 que compraram e têm à venda desde dia 10 de junho.

“Em anos normais, a gente vendia à vontade 300 manjericos só na noite de Santo António”, diz Paula. “Temos aqui estes todos ainda e não parece que vão ser vendidos hoje. É uma tristeza tão grande”. Já Carolina diz que o facto de “os supermercados também os venderem lixa o negócio todo”. As duas vendem flores e plantas em ocasiões especiais, sempre na rua na Graça ou na Sé, e dizem nunca ter visto nada assim e que este ano é consideravelmente pior que 2020. Bairrista que se preze compra manjerico, “mas já nem isso é bem assim”, remata Paula, que começa a arrumar os sacos junto ao coreto.

Paula e Carolina não conseguiram ainda vender os 100 manjericos que compraram para este ano ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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No Largo da Graça, o cenário compõe-se de outra forma. As esplanadas do Quisoque Nutrilovers, do Churrasco da Graça e d’O Satélite estão à pinha. É sobretudo juventude que procura uma noite especial na medida do possível e ainda dentro do horário permitido. Às 21h30, Nivaldo não quer sentar mais ninguém, diz que já não tem mesas e capacidade para servir. A noite foi boa para o dono do restaurante O Satélite, foi das mais agitadas e com uma afluência espontânea, uma vez que não fez reservas. No entanto, não esconde que economicamente uma noite assim não chega — as perdas, diz, são de cerca de 70% em relação a anos antes da pandemia.

Mais a baixo, n’A Voz do Operário, o famoso Arraial do Beco transformou-se este ano num Retiro, que é como quem diz, “numa espécie de restaurante”, refere Vitor Agostinho, diretor-geral d’A Voz. Este ano não foi possível fazer nem sequer o arraial no recreio da escola e, por isso, foi preciso arranjar soluções para “marcar a efeméride e não deixar passar, celebrando-a não com a alegria normal, mas com uma alegria controlada”, diz.

O Retiro do Beco funcionou com marcação prévia e um menu de festas populares, com lotação de 170 pessoas no espaço. Do ponto de vista de receita, Vítor admite não chegar sequer perto aos valores que são feitos em anos anteriores de Santos Populares, mas que o fundamental é que “as pessoas não esqueçam o Santo António e que tenham uma amostra, ainda que pequena e controlada, das celebrações”.

Numa das mesas, as amigas Carolina, Caren e Paula terminam a refeição e dizem que não podiam estar mais contentes por terem conseguido reserva. “Somos umas privilegiadas por estar aqui, não a celebrar mas a ter a sorte de participar nestas iniciativas que tentam trazer alguma normalidade, dentro do possível”, afirma Caren. Já Carolina, lamenta haver uma tristeza generalizada, com os comerciantes locais a “não conseguirem trazer a vida tão característica deste momento”. “Faltou da Câmara um pouco mais de apoio para viabilizar estas iniciativas, sobretudo para ajudar os comerciantes”, diz.

As ruas da Graça estavam vazias, apenas as esplanadas enchiam o bairro ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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Quando voltamos a subir a rua, o Largo da Graça continua forte mas com menos gente. Seguimos por aí fora, sempre sob o olhar atento da polícia presente nas ruas principais e adjacentes, até chegarmos junto ao convento do bairro. Na Esplanada da Graça, integrada no Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, comummente conhecido como Miradouro da Graça, Érica limpa uma das poucas mesas livres da extensa esplanada. “Querem sentar-se? Estou mesmo a limpar a mesa”, começa por dizer antes de perceber que estávamos só de passagem.

“O miradouro é uma zona onde vem mesmo muita gente, e nós que estamos aqui na Esplanada nem sempre conseguimos controlar esse fluxo, porque o espaço não é nosso. Em noite de Santos era sempre uma roda-viva de pessoas”, conta, dizendo que o controlo policial nos últimos dias tem apertado o cerco em zonas de maior afluência.

Fogareiros proibidos na via pública, operações STOP e restrições à circulação: as medidas para os Santos Populares em Lisboa

Os miradouros têm sido vários pontos de foco de ajuntamentos na cidade e, na conferência de imprensa da PSP e da Polícia Municipal dada esta semana, foi referido que estas zonas estariam delimitadas para evitar aglomerações de pessoas e eventuais incidentes daí decorrentes. Neste caso, não havia delimitação, mas havia vários membros das autoridades que controlavam o fluxo do miradouro.

“É triste ver isto assim também, mas é bom que seja controlado. As pessoas com estas restrições perdem é a vontade de consumir e ficar até mais tarde”, afirma, dizendo que antes da pandemia com as gorjetas do dia calhava a cada um cerca de 15 euros. Agora ficam pelos 2 ou 3 euros, e é quando há.

Ó Mouraria de antigamente, onde andas tu?

“Fado: Tonight, Ce Soir, Hoje” é assim que Graça Guerra no seu restaurante Santo André, que marca a passagem da Graça para Mouraria, recebe os clientes nesta noite de Santo António. A voz de uma fadista soa lá dentro, acompanhada pelas guitarras que, nos últimos acordes, começam a dar por terminada a noite. “É tudo terrível, temos esta brincadeira do fado que anima aqui um bocadinho, mas são 22h30 e acabou. A polícia massacra-nos também. Isto é um restaurante, não estamos a fazer nada de mal. Só queremos cumprir as regras para continuarmos abertos e a vida fica difícil assim”.

A proprietária diz que as perdas são superiores a 70% e a situação está cada vez pior porque as pessoas também “começam a ficar cada vez mais retraídas para sair de casa e ir consumir”, desabafa. “Em anos normais fazia cerca de três ou quatro turnos aqui, desde as 19h até às duas da manhã. Hoje fiz um turno. Como é que se vive?”. Graça lamenta sobretudo a situação das pessoas que, ainda assim não conseguem faturar por não terem um espaço aberto. “Eu não estou em Alfama mas sei que é uma perda enorme para eles, para coletividades e mesmo para muitas famílias que se sustentam nestes dias do ano”.

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Descer a Calçada de Santo André é ser embrulhado num silêncio tal que somos obrigados a olhar novamente para o relógio para ter a certeza que não estávamos enganados nas horas. Ainda não eram 22h30 e estava tudo recolhido e poucos clientes restavam nas esplanadas. No Largo das Olarias, mais um percurso sem passar por uma viva alma — só quando chegamos à Taberna do Calhau, do chef Leopoldo Calhau, é que vemos alguma movimentação, mas também já de quem está a arrumar a casa para dar a noite por encerrada. Mais à frente no Café Belga, o sotaque francês salta à vista e aos ouvidos de uma meia dúzia de pessoas que acabava de bebericar os seus copos de vinho na rua. Nada de mais.

Voltamos para cima e para baixo, entre ruas, becos e ruelas, para voltarmos a não encontrar ninguém. Só polícia e alguns habitantes do bairro que pareciam fazer a vida normal, numa noite que tem tudo de anormal.

Aziz, proprietário do Cantinho do Aziz, na Rua de São Lourenço, tem a esplanada com lotação completa já depois da hora de fecho. Nota-se a azáfama para começar a arrumar as loiças e tentar fazer com que os comensais comecem a abandonar. Esta noite, conta-nos, notou algo que já não via há muito tempo: reservas de grupos de seis e oito pessoas, até agora têm sido quase sempre de dois ou de famílias. “São amigos e quiseram marcar a noite de forma diferente”, diz.

“As pessoas do bairro estão muito tristes, mas estas pessoas têm outro ânimo, não quiseram ficar em casa mesmo sabendo que não ia haver nada. Fico contente de ter uma porta aberta, para mim isso é uma vitória depois do tempo todo que estivemos fechados, se tivesse só um cliente na noite de Santos ficava feliz”, aponta.

As forças policiais foram figura presente em todos os bairros, incluindo no da Mouraria ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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A meia dúzia de passos dali, onde deixámos para trás um grupo que já dançava no meio da rua, está o restaurante O Corvo, com algumas pessoas ainda na esplanada em conversas demoradas. Aqui estão felizes — em noites de Santos Populares o Largo dos Trigueiros enche-se de barraquinhas, pelo que o restaurante acaba por estar fechado nessa noite. Hoje abriram e não pararam durante toda a noite, garante-nos um dos empregados da casa.

Ao lado, o restaurante O Trigueirinho segue as mesmas lides. Jorge diz-nos que os horários não os deixaram trabalhar mais, mas que “dentro dos possíveis, o saldo foi positivo”. O funcionário garante que esta noite foi melhor em comparação com a do ano passado, que houve mais pessoas a quererem estar num bairro típico, mesmo sabendo que não haveria arraiais.

“Em anos normais fazia cerca de três ou quatro turnos aqui, desde as 19h até às duas da manhã. Hoje fiz um turno. Como é que se vive?”
Graça Guerra do restaurante Santo André

À parte de quem ainda prolongava a sua estadia nas poucas esplanadas ainda abertas, as escadarias sucessivas, típicas do bairro da Mouraria, deixaram de ser ponto de encontro para as pessoas. Vazias, limpas, silenciosas e sem quaisquer enfeites típicos que marcam os varandins do bairro. A Mouraria estava irreconhecível e a chamar pelos tempos das vacas gordas das festas populares.

Bairro Alto e Cais do Sodré. O caos anunciado e contido

Vindos do Martim Moniz, com grupos em debandada pelo Chiado acima, no largo junto ao café A Brasileira, à saída do metro Baixa-Chiado, o primeiro grande ajuntamento. Não foi arraial porém que motivou as dezenas de pessoas ali presentes, num local que já é propício à animação de rua. Uma drag queen dança efusivamente e cospe labaredas enquanto “I Will Survive”, de Gloria Gaynor, sai em elevados decibéis da coluna da artista. Todos ali em redor, onde o uso de máscara era claramente escasso, aplaudem e entusiasmam-se com a performance, acabando até por dançar no espaço que se foi abrindo para aquele espetáculo.

Mas rapidamente a festa acabou com a chegada da Polícia Municipal para começar a dispersar as pessoas — muitos grupos, sobretudo de estrangeiros de garrafas na mão e espírito solto, acabaram por abandonar assim que as autoridades chegaram ao local. Pouco depois, a polícia de intervenção. A festa tinha acabado.

A caminho do Bairro alto, a presença policial adensa-se e várias carrinhas do Corpo de Intervenção da PSP dispersas pelo Largo Camões e outros tantos membros da Polícia Municipal a controlar até as passadeiras. Assim que o semáforo para os peões passava a verde, não havia quem pudesse ficar parado, “tudo a circular”, gritavam.

Porém, apesar da agitação deste eixo, a chegada ao Bairro Alto faz-se calma. Há elementos da polícia a controlar todas as entradas e poucos são os que entram sem justificação. As ruas, que ainda há poucas semanas se enchiam de gente que procurava um sítio para sair à noite e para beber fora de horas, estavam vazias. Desertas mesmo.

Sobravam as pessoas que tiveram portas abertas e que àquela hora, já depois das 23h, faziam o rescaldo da noite. Mangueiradas para lavar a calçada, restaurantes de porta fechada a fazer contas à noite e à vida, e mais uma leva de polícias que fiscalizavam cada rua e beco do bairro.

No Chiado, um ajuntamento interrompido pela polícia. Um miradouro vedado e um Cais do Sodré silenciado ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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À saída, pela Travessa da Queimada, com intenção de subirmos para o Miradouro de São Pedro de Alcântara, onde no início de maio centenas de pessoas estiveram sem distanciamento físico, somos abordados por um elemento da Polícia Municipal, que pede identificação jornalística. Mais uma vez, poucos são os que sobem a rua sem justificar essa deslocação. Passada essa barreira, mais polícias cercavam o Miradouro, agora vedado por fitas em todo o seu redor — nessa tarde o acesso ao seu interior ainda poderia ser feito.

Nada havia para ver, os ânimos estavam calmos e faltava ainda picar outro foco de atração para ajuntamentos semelhantes: o Cais do Sodré. A meio da Rua do Alecrim, mais uma paragem, desta vez pelo Corpo de Intervenção que se estendia ao longo da rua e na chegada ao Cais. E, mais uma vez, o vazio tomou conta das ruas, já mais agitadas com o vaivém de grupos que se encontravam em restaurantes e procuravam um local para continuar a noite.

Mas as ordens são claras: é para circular. A Rua Cor de Rosa impávida e serena, já com os proprietários dos estabelecimentos de trouxas arrumadas, prontos para sair de mais uma noite atípica, tanto para o negócio da noite propriamente dita, como para uma noite de Santos Populares com o relógio ainda a bater as 23h45.

O bailarico político e a exceção à regra

Os festejos também têm cor política, e a Iniciativa Liberal acabou por não perder oportunidade de montar o seu Arraial Liberal — como tinha anunciado na semana passada — na zona de Santos, também ela propícia aos habituais bailaricos populares. No dia anterior ao evento, numa nota de agenda, o partido dizia haver mais de mil inscritos para celebrar os Santos Populares à moda liberal.

Começou cedo, antes de todos, este que foi o único arraial anunciado a decorrer na capital e que obteve parecer desfavorável da DGS. Apesar disso, uma hora e meia depois de ter começado já tinham entrado e saído cerca de mil pessoas, segundo números da organização, que até a essa hora estariam também em permanência cerca de 600 pessoas no recinto.

Arraial da IL em Lisboa com parecer desfavorável da DGS para atividades que extravasem comício

Perante o sucedido, João Cotrim Figueiredo, líder do partido Iniciativa Liberal, reconheceu que se estavam a usar privilégios pelo facto de ser um partido político mas de forma “simbólica” e para “dar o exemplo”. Em declarações ao Observador, o candidato da Iniciativa Liberal à Câmara de Lisboa, Bruno Horta Soares, questionado sobre o evento decorrer contrariamente às recomendações das autoridades de saúde, diz que o partido quis “ser uma alternativa” arranjando “soluções para fazer um evento com responsabilidade”.

“Queremos fazer uns santos de 2021, não queremos replicar nada dos Santos tradicionais que vivemos em 2019 e antes”, afirmou Bruno Horta Soares. “Queremos mostrar que há esperança às pessoas, que estão aqui felizes por terem uma alternativa”. Bruno Horta Soares não poupou também as críticas à Medina e à decisão de proibição dos arraiais pela Câmara Municipal de Lisboa. “A câmara devia ter sido a primeira entidade a chegar-se à frente”, disse.

O arraial tinha na véspera mais de mil inscritos ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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“Os pedidos de desculpa do senhor Medina não são suficientes”

O arraial ficou marcado pelo momentos dos discursos, que arrancaram com Pavel Elizarov, um dos manifestantes anti-Putin visados na polémica da partilha de dados pessoais por parte da Câmara Municipal de Lisboa à embaixada russa e Negócios Estrangeiros do país. O ativista afirmou ter saído da Rússia para não ser preso devido às atividades políticas, dizendo que “o regime de Putin é uma ditadura que mata os oponentes do regime dentro e fora do país”.

Não tardou a fazer referência à partilha de dados por parte da CML que pôs em causa “o sentimento de segurança” que até então sentia em Portugal, onde está há sete anos. “Eu quero que isto nunca mais aconteça. Os pedidos de desculpa do senhor Medina não são suficientes“, afirmou.

Na intervenção de João Cotrim Figueiredo comparou o partido a Santo António, “que ficou conhecido como o martelo dos hereges”, afirmando assim que a  Iniciativa Liberal seria “o martelo dos inimigos da liberdade” e desatou a dar marteladas. “Aos que querem o dominar pelo medo não nos vamos submeter, vamos avançar com a nossa coragem, como fez aqui o Pavel”, afirmou. ”Aos que diziam que não havia condições viemos provar o contrário e aqui estamos. Aos que querem uma cidade e um país dominados pelo medo, não nos submeteremos. Aos que nos querem tornar todos dependentes do Estado e do PS não vamos deixar”.

O arraial seguiu com música e muita febra no grelhador, daquela que Bruno Horta Soares disse já ter saudade, referindo que estão também a pôr os comerciantes do largo também como beneficiários desta iniciativa. E entre bifanas, cerveja e bandeiras azuis, houve algo que chamou a atenção dos participantes.

Os núcleos da IL presentes no local, entre bolos caseiros e merchandising, promoviam alguns jogos peculiares. Um deles era um alvo de dardos onde o rosto de Fernando Medina estava no centro, junto de António Costa e também Rui Rio. Outro jogo desafiava os que têm pontaria a munirem-se de arco e flecha e deitarem abaixo um manequim vestido com uma t-shirt do Che Guevara.

O núcleo de Cascais tinha um jogo de dardos com vários políticos na mira. Medina estava no centro ©João Pedro Morais/OBSERVADOR

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Um outro acaso caricato ocorreu com Joaquim e Vanda, donos da rulote de farturas que estava dentro do recinto. A fila foi constante, mas no breve momento em que deixou de existir aproveitámos para perguntar se o dia estava a correr melhor ao negócio que o habitual por terem sido convidados a participar no Arraial Liberal. “Nós não sabíamos que isto estava aqui. Hoje chegámos com o carro e foi quando descobrimos que ia haver um arraial no sítio onde costumamos estar estacionados, não fomos informados”, conta Vanda que, apesar do sucedido, confessa ter mais clientela hoje que o habitual, porque “com a Covid e com a falta de arraiais tem sido terrível”.

Apesar dos lugares sentados em mesas corridas, perto das 20h o recinto deixou de ter lugares livres e muitas das pessoas acabaram por ficar de pé junto dos fogareiros e das restantes bancas dos núcleos do partido, formando pequenos grupos. Poucos dos que ali estavam foram só pela festa, tendo o Observador falado com algumas pessoas que quiseram também, além de apoiar o partido com que se identificam, tentar provar que seria possível fazer um evento organizado.

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