Dino D’Santiago está fechado em casa desde o início de março, depois de chegar de Londres, onde esteve a construir Kriola, repleto de boa energia, que nos invade a casa sem pedir licença, com o funaná ou o batuque a acompanhar. Que nos pede para parar e pensar. Que nos faz sentir revolta. E que nos faz sentir bem. No fundo, sentir alguma coisa, para que não fiquemos dormentes.
Neste 3 de abril, em que a nova coleção de canções foi revelada sem aviso, também faz anos o seu pai, que não vê desde o Natal, e que lhe fez um único pedido: se for para oferecer alguma coisa, que seja também para a mãe. Daí o nome do álbum ser no feminino, uma homenagem que flutua nessa mensagem de lusofonia que Dino D’Santiago tem querido levar a todos. Que também é uma reflexão sobre o que se passa no mundo e em Portugal. Como os episódios do Bairro da Jamaica ou da morte de Luís Giovani, que doeram tanto ao artista luso, que o fizeram chorar.
É uma viagem por Lagos, Cabo Verde, Luanda, Nigéria ou Londres que vem em jeito de redenção, com Dino a tentar libertar-se do medo de se expor, até nas coisas mais pequenas, como a de “falar de amor sem que pareça foleiro”. Um mundo novo carregado de ritmo, de funaná, coladera, grime, ozonto e tarraxo, onde cabem tantos crioulos — diz o próprio que somos todos nós. O que não deixa de ser curioso, porque agora, mais do que nunca, segundo o algarvio, precisamos de aprender a olhar para nós próprios, de nos lembrarmos que “somos todos mistura” e de arriscar dizê-lo ao outro, sem barreiras. Logo numa altura em que o mundo se vai fechando, que as fronteiras vão encerrando. É o que dá ir contra a maré, ou de gostar muito de Salvador Dali.
A equipa do último álbum volta a juntar-se, porque em team que ganha, não se mexe. Porque, para arriscar-se mais, é preciso ter aqueles em quem se confia bem próximos. Uma nação crioula dá trabalho a ser criada. Mas Dino D’Santiago por agora pode respirar e ver se o mundo aceita o convite para dançar. Pelo menos, esse tem sido o seu exercício diário de quarentena, junto à janela de casa: o de expirar o que não quer, e inspirar o que quer sentir na sua vida.
Este disco cai aqui como uma surpresa para toda a gente, inclusivamente para o seu pai, que faz anos hoje.
Fiz questão logo à meia noite de lhe enviar, porque, infelizmente, por causa da covid-19, não estou com eles desde o Natal. Fui para Londres gravar o álbum e quando cheguei fiquei em casa e não fui para o Algarve. Tive receio de estar doente e não saber, com o risco de lhes transmitir. Então foi a minha forma de lhe dar uma prenda, de o fazer sentir alguma coisa.
Já lhe deu feedback?
Ficou muito emocionado, ainda por cima teve dois AVCs e achava que não ia estar cá. Poder ouvir e sentir que tem ali o batuque e o funaná, ficou muito feliz com a homenagem. E foi feita da forma mais bonita porque disse-nos: “Se fosse para oferecer alguma coisa, ofereçam à vossa mãe”. O disco chama-se Krioula, é uma homenagem ao feminino. O simbolismo está sempre lá.
Agora temos de arranjar novas formas de parabenizar os outros, de estar com quem gostamos à distância. Como é que tem lidado com isso?
Tenho, tenho. Como estive a trabalhar no disco, quase que vivi fora cá dentro. A imaginar as canções, a fluir em cada tema. A música faz-te sair de casa sem que saia mesmo. Cada canção remete-me para um sítio. Viajei entre Lagos, Luanda, Lisboa, Santiago, Londres… tenho todas essas cidades cada vez que ouço o álbum.
Não podendo sair de casa, o que é que lhe faz mais falta?
Respirar, ainda por cima o ar está melhor. Abro a janela e faço as minhas respirações diárias, inspiro o que quero sentir para a minha vida e expiro tudo o que não preciso. Tem sido o meu exercício diário. E é tão bom. Parar para respirar.
E pára também para não ler notícias?
Não vejo televisão, começa logo por aí. Vejo séries, vejo vídeos de pessoas de quem gosto, documentários sobre música e história da arte, estou a aproveitar para me cultivar cada vez mais.
Tendo estado a trabalhar com todo esse mundo na cabeça, como é que estar agora fechado em casa? E logo depois de um ano repleto de concertos, festivais, a colaboração com a Madonna…
Em todos os concertos havia um momento em que fechava os olhos, para ouvir as pessoas a cantar, por exemplo, o “Nova Lisboa”, e tentava absorver aquela energia toda. Porque pensava que ia haver um momento em que a minha vida ia ter silêncio e vou querer ouvir isto. E não passou um ano e estamos a viver isto. Tenho passado quase todos os dias sozinho, porque a minha namorada trabalha no hospital de Cascais e então tem de estar sempre lá. Mas consigo ter essas vozes, recebo dezenas de mensagens de portugueses, da Malásia ou de cabo-verdianos, angolanos. A lusofonia espalhada pelo mundo. E isso vai-me metendo para fora de mim, o que me mostra que a música consegue fazer coisas que nem nós temos noção.
Neste álbum há uma vibe positiva. As pessoas estão em casa, a espalhar também uma onda de solidariedade. Quanto tempo é que acha que essa vibe pode durar, no meio de uma pandemia?
Acredito que estamos a ser obrigados a ir buscar um mundo partilhado por todos, que vem mesmo lá de dentro. Estamos a ser chamados a olhar para dentro de nós. A sociedade faz-nos viver de forma tão frenética que nem temos tempo para olhar para quem somos. Somos um produto das circunstâncias e não o que desejamos ser. Somos escravos da agenda, do horário e do tempo. E podemos ser senhores do nosso tempo. Se calhar as pessoas que estão a passar pior são as que não fizeram essa reflexão. E acho que este disco, pelo menos, dá a leveza necessária. Toda a gente esquece a covid-19 quando está a ouvir este disco. Eu esqueço. Tento entrar na cabeça das pessoas e vejo os vários moods que o Krioula me transmite: eu danço, paro para pensar, sinto revolta, alegria mas não penso noutra coisa. Sou eu.
E não quer que as pessoas tenham vergonha de sentir esses “eus” todos.
É isso. Um apelo que está dentro de nós do mundo que procuramos lá fora. É um disco de redenção para mim também. Há uma música que é o “Arriscar”, onde disse mesmo que queria arriscar a ser quem sou. Senti que durante muitos anos da minha vida que não fui quem nasci para ser. Fui produto do sonho dos meus pais, do que as pessoas esperavam. Aqui libertei-me mesmo desse preconceito. Até no próprio processo criativo. Criámos as condições para que a inspiração viesse. Obriguei-me a ir todos os meses a Londres gravar, não importava o quê. E o que é certo é que dessas vezes todas saíram canções.
[“Kriolu”:]
Como é que foi gravar em Londres, com um país a viver um Brexit?
Vivi tudo. O Brexit a acontecer, a extrema direita a acontecer na Europa e o lado ditatorial de países como a Venezuela, o Brasil ou os Estados Unidos, vivi tudo isso e transcrevi para este disco. O último tema, “Nhôs Obi”, com o Vado MKA, é esse apelo: oiçam o choro das nossas mães. De estarmos a levar o mundo para um lado que não deveria ser.
Quando diz arriscar, o Dino já é um músico com uma projeção mediática a nível mundial, depois do álbum Mundu Nôbu. Às vezes, os músicos que têm essa projeção, preferem jogar pelo seguro num novo disco. O Dino não. Porquê?
Foi sair da zona de conforto. Em 2018, quando sai esse álbum, 80% era cantado em crioulo e os outros 20% cantados em português. Depois, nos Prémios Play, vence o melhor álbum, e o prémio da crítica de melhor artista a solo, só aí já foi uma revolução. O que podia acontecer era parar por aí. Felizmente a minha equipa foi forte nisso. Encontrámos a nossa equipa, montámos um mundo novo e porque não continuar a namorar essa energia? É tipo quando treinamos e a equipa está sólida…
…não mexe.
Lançámos o disco em outubro de 2018, e em janeiro de 2019 já estávamos a gravar o Krioula. Tive estrada, tive concertos, isso ajudou a que cada vez que ia para o estúdio, pensava que queria que as pessoas entoassem “esta parte” da canção. Foi um namoro muito bonito.
Além da parte da energia positiva, há também aqui o reverso da moeda: um álbum sobre conflitos raciais, clivagens sociais. Sobre episódios como o do Bairro da Jamaica ou da Cláudia Simões na Amadora. Tivemos um início de 2020 muito marcado por isto…
Foi dantesco.
Quando recebe elogios ou aplausos, sente que pode acontecer um pouco o que aconteceu ao Éder quando marcou o golo da vitória no Euro2016, que depois caiu um pouco no esquecimento. Ou seja, acha que é preciso ter sucesso para que um branco olhe para um negro de igual para igual? Para que não haja racismo, no fundo.
Vou ser muito franco: nunca sofri muito desse preconceito racial. Quando sofri, nem dei conta, só passado algum tempo é que percebi que era um ato de racismo. Algo como “tu és tão fixe que nem pareces preto”, e achava que aquilo vinha de uma forma cómica. Ou como aquela expressão do “então a mim não me serves, sou preto?”. Até já vi negros a dizerem isso. As pessoas não fazem por mal, são expressões que ficaram enraizadas na nossa personalidade e cultura. Mas se continuamos a dizê-las, vamos eternizar algo que não está certo. A minha consciencialização foi essa, não é por não sofrer atos de racismo diretos que vou ser ingénuo, ao ponto daquele irmão ou daquela irmã estarem a sofrer. Estar a entrar no supermercado e ser seguido por um segurança, só pela cor da pele. Eu era seguido em puto, mas não sentia que acontecia por ser negro, era por vir do bairro pobre, então agora vão atrás de mim. É preciso perdoar essa ignorância. Não acredito que venha tanto por racismo. Perdoar, mas não relegar, se não, não vai haver mudança.
Mas como é que transforma esses episódios em música, sem deixar que brotem daí sentimentos mais de frustração ou raiva?
Quando vejo aqueles episódios, aquilo dói-me. Confesso que chorei. É imaginar a nossa mãe, nessa situação. Pensamos no miúdo de Bragança que morre daquela forma, eu sei quanto é que os pais cabo-verdianos gastam, mensalmente, para ter um filho na faculdade. Então tudo aquilo dói-me de uma forma tão extrema que eu nunca levo para o racismo. Isso, para o racismo, é descer à mais baixa frequência. Tem a ver com a injustiça no mundo, essa sim é a grande epidemia. E procuro pensar que faço parte da sociedade que critico, então qual pode ser o meu contributo, para elevar essa frequência? E é assim que penso quando escrevo, não vou bater no ceguinho. Nunca. Vou olhar para a mãe do Giovanni e dizer que a morte do filho dela não foi em vão. Que vamos provar que somos uma geração que vai conseguir fazer a mudança.
Passando aqui para esta vontade de cantar em português, crioulo e inglês. Ainda pensa quando está a falar português?
É uma cena tão estranha.. aí é que se vê a complexidade do ser humano. As minhas canções saem-me muito instintivamente e quando me saem em crioulo, são sempre de intervenção, porque é direto. Não dá muitas voltas, não tem muitas metáforas. Quando sai da alma, sai em crioulo. Quando preciso de pensar e raciocinar, sai em português. Se tenho de elaborar mais, escolho a segunda. Ganha o lado intelectual da mensagem, mas não sei se isso é bom ou mau. Mas felizmente tenho o Kalaf, porque lhe dou o flow sem palavras. Às vezes até tem, como no “Nova Lisboa”. [Dino D’Santiago começa a cantar] “Qual é a ideia, vem e sente, sente, sente esta nova Lisboa”, e eu disse: isto é a minha Lisboa. Comecei a trautear a melodia e o Kalaf articula na minha métrica. Porque dou sempre prioridade à melodia. Digo sempre: antes de palavras, respeitem a minha melodia, porque vem de um canal que desconheço e acredito que vem de um universo de onde vem uma mensagem. Nunca a descaracterizo em função da letra. Mas quero sempre escrever algo em que, se alguém ouvir, possa sair transformado.
E quando fala dessa transformação, há aqui canções com a sua própria história. O que é que ficou de fora?
Se soubesse o que ficou de fora, ia crucificar-me. Há lá canções tão incríveis que davam outro álbum. Só que preciso de sentir que a narrativa tem princípio, meio e fim. Mais do que encher um disco de boas canções, é narrar uma história para que quando eu partir para outro plano na minha vida, sinta orgulho do que fiz. E aqui sinto que há um respeito pela cultura crioula. E desmistifica-a também, porque o crioulo não é o negro, é a mistura entre o negro, o branco, o índio, o oriental. Todos nós somos crioulo. E fui estudar a história: nós temos derivados da língua portuguesa, temos cerca de 30 crioulos. Temos da Indonésia, Macau, Cabo Verde, Brasil, Índia… e só associamos a Cabo Verde ou à Guiné. A língua portuguesa é tão forte que nem temos noção. E o crioulo cabo-verdiano é 90% baseado na gramática portuguesa. Somos mesmo todos crioulos.
[ouça “Kriola” na íntegra através do Spotify:]
O Dino é quase um historiador.
É o que tento passar no disco, e quando forem ouvir quero mesmo que se lembrem que somos o resultado dessa mistura. Que é uma bênção. Mais do que nos separa, isto é algo que nos une. Temos de celebrar isso.
Essa mensagem vem numa altura onde muitos países se estão a fechar, onde se encerram fronteiras. É meio surreal.
É surreal, é… não é de estranhar que o meu movimento favorito seja o surrealismo, muito inspirado pelo Salvador Dali.
O que talvez também seja surreal é estar na Rolling Stone. O que é que o Dino miúdo pensa quando vê a sua cara e nome numa das revistas de música mais populares do mundo?
E o que é mais bonito? Foi o Elias Leight [autor do artigo] que chegou ao meu último disco através do Branko, ouviu e ficou deslumbrado. E fez uma peça lindíssima. Há pouco tempo mandou-me uma mensagem a dizer que estava à espera do que vinha a seguir. Enviei-lhe maquetes, que ia criar uma nova viagem. Ficou logo maluco com a “My Lover”, pediu-me para ser o primeiro a escrever sobre o álbum. Depois disse-me que fui o primeiro lusófono a fazer parte da Rolling Stone? Existe o fado de Amália, existe a Cesária Évora, como é que sou o primeiro? O que eles tinham de história era muito latino, mas era o lado hispânico, não tinham o lado lusófono. E depois chegaram lá através do funk carioca, mas nunca fizeram um artigo sobre isso. E, de repente, fazem um sobre o funaná e sobre o Mundu Nôbu. Abriu-se uma página. E sempre que sai música portuguesa, vou-lhe enviando. É bonito.
Transforma-o quase num embaixador da lusofonia. Sente o peso dessa responsabilidade?
Quando me vi no coliseu a cantar Cesária Évora com a Madonna foi o único momento em que senti: fogo, ela está a cantar em crioulo. Sou só mensageiro, não me sinto embaixador. Sinto-me responsável por levar a mensagem que outros escreveram. Esses são os únicos momentos em que penso dessa forma. O grande embaixador é a nossa cultura. Somos os responsáveis ativos de transportar essa mensagem.
Falámos ali na “My Lover”. E o amor, como é que fica em tempos de quarentena?
O amor fica cada vez mais escancarado. Tenho mais tendência em escrever músicas de intervenção, do que de amor. E a “My Lover” é a primeira que escrevo de amor em que realmente estou feliz naquela manifestação. Todas as outras eram fruto de uma separação ou de uma introspeção em que me sentia escravo da outra pessoa, ou sempre tentar elevar o outro e esquecer-me de mim. Nessa música senti-me feliz naquela pele, pela primeira vez.
Não há medo de ser foleiro nem nada.
Nem de ser lamechas, sempre tive algum cuidado nisso [ri-se]. Pensei: porra, se eu digo “my lover” cá em casa porque é que vou ter receio? Deixa-me ser piroso. É aí que sinto mais a herança portuguesa, nas voltas que dou para falar de amor. Os brasileiros são mais abertos nisso.
Nós é mais saudade e tristeza.
Sim, e até a palavra “amo-te” é difícil de articular.
E demora tempo até ser dita.
Demora, demora… quando se começa uma relação até haver aquela mensagem do “amo-te”, porque não temos coragem de dizer cara a cara, oooh… tanta volta. Nunca mais chega a hora, de repente já nos separámos e nem dissemos.
Parece pedido de casamento.
[ri-se] Parece, parece.
Do amor para a indústria musical, que está aqui também a sofrer algumas transformações. Como é que olha para isso?
Inevitavelmente, vai sempre afetar a máquina que é a indústria. Por outro lado, vai mostrar aos artistas que têm uma voz para lá da indústria, que é possível ser o próprio canal. Vão ser mais livres a criar. O superego da sociedade vai deixar de ser tão interventivo, as pessoas vão estar mais como observadores, sujeitos passivos. Menos interativos na dinâmica da criação. Em vez de um músico a sofrer por não poder estar lá fora, há uma responsabilidade de cada um em ser cada vez mais ele próprio.
Ser mais transparente.
Sim, não ter receio de ser único. Aí é que vamos todos perceber que não precisamos de ser réplicas de um movimento. Temos de ser seres únicos nesse movimento. Penso de uma forma e o José pensa de outra, mesmo que estejamos a olhar para o mesmo objeto. Ser o único que nasceu para ser. Vamos sentir um abalo sim, até economicamente, mas é a oportunidade máxima para percebermos onde queremos ir. Agora que há este silêncio, sem as pessoas a dizerem quem é bom ou não, pensar o que é que queremos realmente eternizar. Para que quando voltarmos a sair para estar na tal máquina, todos sejamos observadores diferentes.