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O Governo já disse que quer legislar e dar um enquadramento fiscal e contributivo mais favorável aos trabalhadores remotos que são nómadas digitais, mas ainda não disse como nem quando
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O Governo já disse que quer legislar e dar um enquadramento fiscal e contributivo mais favorável aos trabalhadores remotos que são nómadas digitais, mas ainda não disse como nem quando

O Governo já disse que quer legislar e dar um enquadramento fiscal e contributivo mais favorável aos trabalhadores remotos que são nómadas digitais, mas ainda não disse como nem quando

Do IRS à Segurança Social e ao SNS: a saga dos trabalhadores remotos que querem mudar-se para Portugal

Há cada vez mais trabalhadores que têm contratos com empresas lá fora, o que obriga a uma adaptação no IRS, Segurança Social e direitos. Mas pandemia deixou pontas soltas. Governo prepara regime.

O mercado português era “pequenino” para Diogo Tavares, motion designer (design em movimento). Em Portugal, ainda trabalhou para estúdios de animação, mas rapidamente começou a colaborar com empresas no estrangeiro e, há quatro anos, rumou para Amesterdão. Só que a pandemia chegou em 2020 e obrigou-o a trabalhar em casa, um espaço “super pequeno” na capital holandesa, “onde as rendas estão altíssimas”. As perspetivas de Diogo em relação a uma possível transição profissional também pesaram, assim como a vontade de estar mais perto da família. “Compensava voltar.” E assim foi.

Pouco tempo antes de 2020 terminar, Diogo perguntou à agência em Amesterdão se podia mudar-se para Portugal e trabalhar a partir de cá. A resposta não foi imediata, mas a empresa — e um dos seus principais clientes — não queriam abrir mão dele. “Tive de passar por vários pedidos e entrevistas para poder fazer o pedido de transição para cá. Consegui, deram-me essa liberdade, mas o processo demorou uns dois ou três meses”, conta ao Observador.

Chegou a Portugal em fevereiro deste ano e, se algumas coisas não mudaram — a equipa com quem trabalha continua a ser a de Amesterdão —, o regresso também obrigou a um conjunto de adaptações: desde logo, contratuais. O contrato de trabalho de Diogo deixou de estar vinculado à empresa nos Países Baixos, para passar a estar com a filial em Portugal (uma dor de cabeça poupada, dado que, sem essa filial, o processo seria mais moroso, como veremos).

teletrabalho

Trabalhadores remotos portugueses são procurados nomeadamente pelos salários: conseguem pagar mais do que os concorrentes em Portugal, mas menos do que pagariam em países como EUA ou Alemanha

Getty Images/iStockphoto

Também as cláusulas do contrato sofreram alterações: nos Países Baixos não é obrigatório o pagamento do subsídio de refeição, como em Portugal (a agência apenas oferecia snacks e bebidas), nem do subsídio de Natal, pelo que essas obrigatoriedades tiveram de passar a constar no contrato português. Mas se lhe era pago um “pequeno bónus” por altura das férias isso deixou de acontecer por cá. O sistema fiscal holandês também é diferente (a soma dos impostos sobre os rendimentos e das contribuições sociais é mais baixa), mas a transição foi feita de forma a que, com as tabelas de retenção na fonte portuguesas, o rendimento líquido não baixasse.

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Viver num país e trabalhar para uma empresa que está noutro virou tendência com a pandemia, e o número de trabalhadores remotos aumentou exponencialmente, dizem vários especialistas ouvidos pelo Observador. No caso português, isso viu-se com o regresso temporário de muitos emigrantes portugueses em teletrabalho,  a chegada de estrangeiros que aproveitaram a generalização do trabalho à distância para vir conhecer o país — ou aqui fixar-se —, ou com o aumento de trabalhadores que já cá viviam e passaram a ter contratos remotos.

Mas não basta querer trabalhar remotamente. Para as empresas no estrangeiro que querem enviar um funcionário para fora ou contratar num outro país há regras — como também as há para os trabalhadores que escolham um Estado diferente para trabalhar à distância. O processo implica não só uma adaptação à lei nacional, às regras contributivas e fiscais que existem para todos os gostos pelo mundo fora — e nem é preciso sair da Europa para se deparar com essa heterogeneidade. Mas também a um conjunto de requisitos — desde a autorização de residência, ao número de utente e contribuinte —, que esbarram nas informações contraditórias e na extensa burocracia dos serviços portugueses.

Entraves que podem, aliás, estar a funcionar como um desincentivo para as empresas que até pensam contratar trabalhadores remotos ou para os funcionários que querem escolher Portugal, alertam os especialistas. O Governo já disse que quer legislar e dar um enquadramento fiscal e contributivo mais favorável aos trabalhadores remotos que são nómadas digitais, mas ainda não disse como nem quando. Até lá, mudar a morada para Portugal pode significar uma dor de cabeça para muitos trabalhadores (sobretudo se forem estrangeiros) e as suas empresas.

Trabalhador remoto vs. Nómada digital

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Um nómada digital é geralmente descrito como alguém que dispõe essencialmente de três recursos principais para trabalhar: dispositivos móveis que lhe permitam trabalhar à distância, banda larga e acesso à internet. Esta definição difere da do trabalhador remoto no sentido mais tradicional uma vez que, explica o Livro Verde, “os nómadas digitais procuram usufruir de liberdade de localização, quer em termos de trabalho, quer em termos de residência, podendo alternar com regularidade a sua residência e o local (país ou região) a partir do qual prestam a sua atividade remotamente, envolvendo muitas vezes prestação de trabalho entre países diferentes”. Ou seja, um nómada digital, por definição, está sempre de um lado para o outro, o que nem sempre acontece com o trabalhador remoto.

Por outras palavras: um nómada digital é um trabalhador remoto, mas um trabalhador remoto não é necessariamente um nómada digital se exercer a sua atividade sempre no mesmo local. A pandemia veio fazer aumentar o número de pessoas que se mudam para outro país ou que, estando no seu país, decidem trabalhar para fora.

Contribuições sociais são devidas no país onde se está a viver. Mas e durante a pandemia?

Inês (nome fictício) trabalha numa empresa de software na Alemanha e aproveitou a vinda a Portugal pelo Natal para prolongar a estadia durante três meses. Com a possibilidade de teletrabalho, não houve entraves por parte da empresa, que encerrou os escritórios na fase mais crítica da pandemia. Em tese, como a estadia em Portugal não se fez ao abrigo do regime de destacamento (já lá iremos), e não veio nem de férias nem com bilhete de ida, as contribuições sociais deveriam ter passado a ser feitas em Portugal. “Esse foi um dos motivos que me fez querer voltar. Sabia que, se ficasse muito tempo, a minha situação poderia ter de mudar e não queria problemas“, refere ao Observador, preferindo o anonimato.

O caso de Inês nem é grave (foram só três meses). Mas há situações de pessoas que vieram no início da pandemia e que por cá foram ficando, aproveitando a flexibilização do teletrabalho oferecida pelas empresas (e, por vezes, exigidas pelas regras impostas pelos governos), sem que tivessem mudado as práticas contributivas. Essas situações estão a ser controladas ou fiscalizadas pela Segurança Social? Questionado pelo Observador, o ministério da Ana Mendes Godinho não respondeu.

Bónus, internet ou folgas extra. Há empresas (poucas) a dar benefícios pelo teletrabalho, mas lei é um terreno movediço

A Segurança Social não estava preparada para o tema dos trabalhadores remotos“, observa por sua vez Luís Leon, ao Observador. O fiscalista da Deloitte admite mesmo que, tendo em conta a excecionalidade da pandemia, a Segurança Social possa não estar a controlar estas situações. É também devido a esse caráter excecional que o advogado especialista em direito laboral Pedro da Quitéria Faria, da Antas da Cunha Ecija, considera que, nos casos mais frugais, não haverá ilegalidades. “Estamos a falar do trabalho remoto que, nalguns casos, foi praticamente imposto e em que era indiferente onde se realizava“, defende.

Casos temporários (ou irregulares) à parte, o que acontece quando um trabalhador pede à empresa para trabalhar a partir de outro país? O mais fácil é quando já existe uma filial no país de destino. Aí, a solução é a que foi aplicada a Diogo: o contrato passa para a filial, que processa os salários e faz os respetivos descontos mensalmente. Quando isso não acontece, a empresa fica obrigada a inscrever-se na Segurança Social, um processo mais moroso, com o “trabalho extra administrativo inerente“, refere Luís Leon. Um esforço extra a que muitas empresas podem não estar dispostas, sobretudo para um único trabalhador.

“Quem tem de fazer a alteração é a empresa estrangeira e isto acho que é dos temas que há-de estar em discussão ao nível da UE mas não está resolvido, que é a razão pela qual algumas empresas estão a recusar que as pessoas mudem de país, porque passam a ter obrigações diferentes “, afirma o fiscalista.

Luís Leon, fiscalista da Deloitte, diz que "a Segurança Social não estava preparada para o tema dos trabalhadores remotos"

A regra a nível europeu dita que a Segurança Social deve ser paga no país onde o trabalhador vive (e não necessariamente onde está a entidade empregadora). Essa obrigatoriedade surgiu para “acautelar abusos“, evitando que as empresas se estabelecessem em países de Segurança Social baixa e, a partir daí, contratassem só para poupar nas contribuições.

Mas há uma exceção à regra: o tal regime de destacamento, que pretende “fomentar a circulação de pessoas e negócios”. No caso da União Europeia, a maior parte dos acordos bilaterais de Segurança Social celebrados por Portugal definem que quem estiver temporariamente num país diferente pode manter as contribuições no sítio onde está a entidade empregadora durante um período limitado — tendencialmente, até dois anos, que podem ser prolongados por mais dois. Mas esse processo não é automático: é preciso informar a Segurança Social do país para onde se mudou para evitar surpresas.

Luís Leon admite que há ainda perguntas soltas que a legislação europeia não acautelou. Por exemplo: e se um trabalhador decide por si só que quer mudar de país e a empresa não se opõe? Pressupõe-se que há acordo? “É um dilema que não está resolvido. E também não está porque se a UE tratar corre o risco de abrir uma caixa de pandora que põe em causa o primeiro princípio basilar que é: as pessoas descontam no sítio onde vivem e trabalham”, aponta.

A regra dos seis meses

A história é diferente no que toca aos impostos sobre o rendimento. Atualmente, não há uma regra única na UE que determine como é que devem ser tributados os rendimentos dos europeus que estão temporariamente num outro país da união. Porém, o país onde tem residência fiscal poderá ver-se no direito de tributar todos os rendimentos auferidos lá fora (o que inclui não só salários, mas também pensões ou prestações).

E como saber qual o país de residência fiscal? A definição varia de país para país e da existência ou não de um acordo de dupla tributação, mas Luís Leon explica que o mais comum é que se seja considerado residente fiscal no país onde esteve mais de seis meses por ano (não necessariamente consecutivos); onde tem a sua casa; e onde está a sua família. Quer isto dizer que, nalgumas situações, poder-se-á ser considerado residente fiscal em mais do que um país, o que pode levar a uma situação de dupla tributação. Para responder a esses casos, muitos países firmaram entre si acordos de dupla tributação — nos quais se determina onde deve o trabalhador pagar impostos (Portugal tem 91).

A disparidade dos acordos de dupla tributação

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Os acordos de dupla tributação diferem muito entre si. Segundo o Financial Times, por exemplo, os EUA têm mais de 50 acordos bilaterais para evitar a dupla tributação e 30 de Segurança Social. Ou seja, nalguns países, os trabalhadores dos EUA não têm de pagar impostos duas vezes sobre o salário, mas podem ter de o fazer no que toca à Segurança Social.

No caso português, “o que é importante perceber-se é que não é pelo facto de ter vindo para Portugal e estar a viver cá, e manter o meu contrato no outro país, que os meus impostos continuam a ser todos feitos lá fora. Sobretudo se passei mais de seis meses em Portugal — e nem tem de ser no mesmo ano fiscal, não tem de ser consecutivo“, sintetiza Luís Leon.

Também aqui, o fiscalista admite que a Autoridade Tributária possa não ser capaz de fiscalizar automaticamente quem não está a cumprir, mas há formas de fazer disparar os alarmes. Uma simples pergunta endereçada aos serviços do Fisco pode levantar questões e desencadear uma investigação. Mas o Ministério das Finanças também não respondeu às perguntas do Observador sobre se o controlo destas situações foi apertado com a pandemia.

E como é feito o IRS? Se a empresa estrangeira tiver em Portugal uma filial, à partida, é ela a responsável pela retenção na fonte. Já quando a empresa não tem representação no país, o processo é mais complexo para o trabalhador, que tem, ele próprio, de declarar os rendimentos auferidos no estrangeiro através do chamado Anexo J. “A pessoa desconta cá normalmente. O que pode acontecer é que, como a entidade é estrangeira, não lhe deduz o IRS todos os meses e a pessoa tem de pagar o IRS de uma assentada só no ano fiscal a seguir“, consoante as tabelas portuguesas, explica Leon.

Mas há soluções que têm aparecido nos últimos tempos e que funcionam como uma espécie de representantes das empresas no país escolhido pelos trabalhadores — tratando deste trabalho burocrático pelas duas partes.

"O que é importante perceber-se é que não é pelo facto de ter vindo para Portugal e estar a viver cá, e manter o meu contrato no outro país, que os meus impostos continuam a ser todos feitos no outro país. Sobretudo se passei mais de seis meses em Portugal — e nem tem de ser no mesmo ano fiscal, não tem de ser consecutivo."
Luís Leon, fiscalista da Deloitte

Unicórnio português cria entidades por país para “fazer a ponte” entre empresa e trabalhador remoto

O português Marcelo Lebre criou, em 2019, juntamente com o holandês Job van der Voort, uma solução que facilita às empresas estrangeiras contratar em qualquer parte do mundo. Em termos práticos, a Remote vai criando uma entidade por país que “faz a ponte” entre a empresa (que, assim, não precisa de se registar na Segurança Social em Portugal) e o trabalhador, que tem um contrato por conta de outrem firmado com a Remote e não com a empresa-mãe.

Já entre a empresa e a Remote é firmado um contrato de prestação de serviços. “O contrato do trabalhador fica vinculado à empresa-mãe. É estipulado que a pessoa está a trabalhar naquele projeto, que é a empresa mãe”, explica Marcelo Lebre. É, assim, a própria Remote que trata do processamento salarial, dos descontos, dos seguros de saúde. “É quase como se fosse a substituição de um ramo local daquela empresa no país.”

Remote. Há um novo unicórnio com um cofundador português

A procura por estas entidades aumentou muito com a pandemia, indica Marcelo Lebre. A Remote tem hoje entidades em mais de 50 países, o que a obriga a ter equipas especializadas em conhecer a lei de cada país e a adaptar os contratos “de forma a estarmos a 100% em cumprimento porque não podemos operar em zonas cinzentas, temos de garantir que os contratos são válidos e são aplicáveis em todas as jurisdições”. É que, exemplifica Marcelo, é comum uma empresa no país A querer contratar alguém no país B, “mas com alíneas a que estão habituados no país A”. “Muitas vezes isso não é possível. Temos de aconselhar a empresa e avançar só com o que é permitido, tendo em conta os direitos e deveres do trabalhador e da entidade patronal.”

O advogado Pedro da Quitéria Faria explica que, em termos de direitos laborais e no caso português, a lei nacional é o mínimo que tem de ser aplicado. Por exemplo, se no país onde a empresa está situada há menos dias de férias e em Portugal (onde está o funcionário) há mais, o que se aplica são as regras portuguesas. O mesmo acontece em matéria de regras de despedimentos ou de salário mínimo nacional, por exemplo.

E os salários, podem sofrer cortes quando o trabalhador se muda para um país com menor custo de vida? Regra geral, as leis na UE, à semelhança do que acontece em Portugal, impedem que haja cortes salariais mesmo com a mudança de país.

O advogado acredita que haverá em breve uma “harmonização” a nível europeu para lidar com os nómadas digitais. “Faz parte de um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pela comissão europeia, no setor do trabalho e é uma das questões que vai ser analisada, e eventualmente legislada, em função do Livro Verde”, defende.

Os direitos no regime de destacamento em Portugal

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No caso do regime de destacamento, o trabalhador destacado tem de ter os direitos mínimos na lei portuguesa (exceto se o estabelecido no contrato for mais favorável), em matéria de:
a) Segurança no emprego;
b) Duração máxima do tempo de trabalho;
c) Períodos mínimos de descanso;
d) Férias;
e) Retribuição mínima e pagamento de trabalho suplementar;
f) Cedência de trabalhadores por parte de empresa de trabalho temporário;
g) Cedência ocasional de trabalhadores;
h) Segurança e saúde no trabalho;
i) Protecção na parentalidade;
j) Protecção do trabalho de menores;
l) Igualdade de tratamento e não discriminação.

Marcelo Lebre, por sua vez, acrescenta que um dos desafios é “salvaguardar os direitos dos trabalhadores porque, numa relação entre entidade patronal e trabalhador, a entidade patronal pode sempre portar-se mal”. “O que fazemos é garantir que os trabalhadores têm todos os direitos e deveres assegurados a qualquer momento, mesmo que a empresa desapareça amanhã”, afirma. Isso implicaria, por exemplo, o acesso a subsídio de desemprego (já que os descontos estão a ser feitos no país de residência).

O cofundador da Remote nota que o mercado português é cada vez mais apetecido pelas empresas estrangeiras por uma miríade de fatores. Por um lado, a cultura: “Somos pessoas extremamente flexíveis, adaptamo-nos bem à maior parte dos contextos, o que não acontece noutros países, como França ou Alemanha.” Depois, a língua: em Portugal “quase toda a gente fala inglês”. E, claro, os salários.

É que estas empresas conseguem oferecer ordenados mais altos do que as concorrentes em Portugal, mas ainda assim poupar, pagando menos do que se contratassem, por exemplo, nos EUA ou na Alemanha. “E as pessoas que contratam até têm mais formação e são mais qualificadas.” Com o trabalho remoto, as barreiras geográficas deixam de ser um entrave e as empresas podem “estar focadas em encontrar a melhor pessoa, independentemente de onde esteja”.

O tema dos nómadas digitais "faz parte de um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pela Comissão Europeia, no setor do trabalho e é uma das questões que vai ser analisada, e eventualmente legislada, em função do Livro Verde"
Pedro da Quitéria Faria, advogado da Antas da Cunha Ecija

SNS, SEF e até o IMT: estrangeiros queixam-se da burocracia

O britânico James Ellsmoor, de 28 anos, estava na Colômbia quando a pandemia chegou. O país começou a fechar fronteiras e James tentou sair rapidamente. Esteve uns meses em casa, no Reino Unido, até decidir, em outubro último, mudar-se indefinidamente para Portugal. “Queria estar perto da minha família no Reino Unido, aprender português”, diz ao Observador.

James gere uma empresa (sediada nos EUA) de marketing e comunicação na área ambiental e da sustentabilidade, a Island Innovation, e todos os cerca de 12 trabalhadores (alguns freelancer) trabalham remotamente. Em Portugal, está registado como trabalhador independente, mas admite que ainda está um bocado alheado sobre as responsabilidades. Quem trata das burocracias do registo e dos descontos para a Segurança Social e do IRS é um contabilista, mas não foi fácil encontrar quem conhecesse bem as regras aplicáveis ao seu caso. Até chegar ao atual contabilista — com quem ainda está a “tentar perceber como as coisas funcionam” — teve outros que não estavam preparados para lidar com trabalhadores remotos.

“A minha situação mudou ao longo dos últimos meses. A situação é confusa. É muito difícil navegar o sistema, ter aconselhamento e conseguir um contabilista que tenha conhecimentos do enquadramento internacional. Tem sido uma dor de cabeça“, afirma.

Já esperava que o processo fosse burocrático, mas o mais árduo foi conseguir um número de utente para um acesso facilitado a cuidados de saúde no SNS. “Para o conseguir, acho que tive de ir a uns dez sítios diferentes”, conta. Com tantas dificuldades — que incluíram várias idas a centros de saúde, que convergiam na mesma resposta: enviar um email, a que nunca responderam — acabou por contratar um seguro privado “que não é demasiado caro”.

Casos como o de James têm chegado à Moviinn, uma startup que ajuda trabalhadores e empresas a fixar-se em Portugal — desde abrir uma conta bancária, a conseguir um NIF, número de utente, até à regularização dos animais de estimação ou dísticos da EMEL. A maioria das pessoas que procuraram o serviço, diz Maria Borges, relocation diretor (responsável pelos procedimentos de mudança para Portugal), são trabalhadores altamente qualificados, nomeadamente das áreas tecnológicas, muitos com filhos pequenos, e que pedem o estatuto de residente não habitual.

Pandemia e situação política dos países leva a pedidos de apoio

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A pandemia veio dar um empurrão ao volume de pedidos de apoio da Moviinn, mas há outras determinantes importantes: a situação política dos países. Quando Donald Trump ascendeu à Presidência dos EUA, houve um aumento de pedidos, nomeadamente de informação, “caso as coisas piorassem”. A procura baixou com Biden, mas ultimamente voltou a subir — fruto, aponta Maria Borges, da resistência à vacinação ou das “limitações de direito de voto” nalguns estados. No caso do Reino Unido pós-Brexit, desde janeiro que os pedidos não páram de subir.

Maria confirma que a perceção de James Ellsmoor é semelhante à dos estrangeiros que acompanha. “O enquadramento jurídico português não joga bem com os nómadas digitais. Portugal não está preparado porque toda a legislação de legalização implica que as pessoas fiquem residentes, o que não joga bem com o conceito de nómada digital“, refere.

Mesmo quando os trabalhadores vêm para ficar, as maiores dores de cabeça têm vindo do SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (agora SEA), para a autorização de residência; do Serviço Nacional de Saúde (SNS), para o número de utente (importante para os cuidados de saúde); e do IMT, para equivalência às cartas de condução.

Os atrasos no SNS são “compreensíveis” dada a pandemia, mas Maria diz que, em Lisboa, onde há mais estrangeiros, o tempo médio para obtenção do número de utente “era, há algumas semanas, de cinco meses”. Já por causa dos atrasos no SEF, “temos imensos processos parados“. “É verdade que têm poucos efetivos, mas a situação está impossível”, observa, apontando que não estão a ser aceites novos agendamentos desde junho. Estes atrasos na regularização, indica, podem dificultar a celebração de contratos de trabalho. “É uma pescadinha de rabo na boca porque a pessoa, quando vai à entrevista do SEF, já é suposto levar um contrato de trabalho.”

Também nos consulados há regras diferentes — até no mesmo país — e que, para Maria Borges, fazem pouco sentido. “Há consulados em que a pessoa, para pedir um visto de residência, tem de apresentar um contrato de arrendamento de um ano, uma conta bancária já com um saldo razoável e NIF… e nem sabe se vai ter o visto aprovado”, exemplifica.

Portugal estuda novo regime

A lei portuguesa não foi alterada durante a pandemia para enquadrar este fenómeno específico, mas o Governo já sinalizou que quer fazer mudanças no caso dos trabalhadores remotos que são nómadas digitais. Aliás, a intenção é criar um regime com um “enquadramento fiscal e um sistema de acesso à proteção social específico”, lê-se no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que está em discussão na concertação social. O Governo quer fazer uma alteração “promovendo soluções para a sua melhor integração em Portugal, nomeadamente no plano da contratação por empresas, no enquadramento fiscal destes trabalhadores, no acesso a seguros de trabalho, bem como no acesso à saúde e à segurança e à proteção social”.

O ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira (C), acompanhado pela ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes e pelo secretário de Estado Adjunto, do Trabalho e da Formação Profissional, Miguel Cabrita, durante a reunião plenária da Comissão Permanente de Concertação SocialLisboa,que decorreu no Palácio da Ajuda, em Lisboa, 15 de outubro de 2020 . ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho está a ser discutido na concertação social

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

No Livro Verde, o Governo elenca várias medidas que estão a ser implementadas a nível europeu. Durante a pandemia, a Estónia criou um visto — o Digital Nomad Visa — que atribui autorização de residência até um ano desde que os nómadas tenham um salário mínimo de 3.000 euros por mês. Já na Grécia, foi desenhado um regime fiscal que dá um desconto de metade dos impostos sobre o rendimento durante sete anos. E na Alemanha há vistos para freelancers, artistas e profissionais autónomos.

Já Portugal, lembra o Livro Verde, criou o Programa e-Residency, que constava no Simplex 2019, tendo sido apenas feita uma proposta de regulamentação. O programa mais emblemático está a ser implementado na Madeira — o Digital Nomads Madeira, que tem como objetivo atrair nómadas digitais para a região. No Digital Nomad Village, na Ponta do Sol, os nómadas têm acesso a um espaço de coworking gratuito, têm ajuda na reserva de apartamentos ou hotéis, eventos e contacto com outros nómadas e a comunidade local. Para usufruírem têm de ficar, pelo menos, um mês.

O Governo português, é certo, não tem poder para legislar em matéria de Segurança Social ou IRS a nível europeu, mas pode criar um regime benéfico e favorável, à semelhança do que se passa na Madeira, afirma Luís Leon. Maria Borges, por sua vez, tem dúvidas de como tantos problemas podem ser resolvidos. “Tem de haver, claro, vontade política, mas não estou a ver quando vai acontecer porque há ‘N’ entraves.”

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