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“É todas as noites, esta malta é boa gente”: Guimarães Jazz, um festival “profundamente emocional”

No primeiro fim de semana, vimos a celebração de Alice Coltrane, a sintonia de apelido Koppel e a dimensão da big band da ESMAE. Este jazz, que acontece bem para lá dos palcos, continua até dia 19.

Novembro é um mês rebelde, que gosta de brincar de verão por altura do São Martinho. Assim se passeava nas ruas de Guimarães no passado dia 12 de novembro, com o sol refletido na calçada do centro histórico. No ar já se sentia o prólogo das Nicolinas, a romaria que em breve despenteará a cidade com pinheiros, bombos e roubalheiras, tradições que qualquer vimaranense propaga com orgulho. Se as festas populares remontam ao século XVII, o Guimarães Jazz, por seu lado, é um caçula de 31 anos. Porém, o festival já ocupa um lugar querido no coração das gentes que reclamam aqui ter nascido Portugal. São essas mesmas gentes a assumir que desde a Capital Europeia da Cultura, em 2012, a cidade não mais foi a mesma.

O Tio Júlio, da tasquinha de seu nome, di-lo sem rodeios. “A Capital trouxe vida a Guimarães”. Trouxe também muitas boas bocas que, chegadas àquela esquina da histórica Rua de Couros, salivam ougadas pelos preguinhos da casa. “A carne é boa”, esse é o único segredo, “não há mais nenhum”, garante António Júlio Novais, 65 anos feitos.

Nós, todavia, ousamos contrariar o maestro desta tasquinha. Não fosse a sua simpatia no bigode reguila e a porta aberta a qualquer idioma ou clubite (embora o Vitória seja omnipresente nas paredes) seria apenas uma taberna de bons pregos, como tantas outras. Sendo assim, é uma taberna de bons convívios também, onde “a malta do jazz” se junta madrugada fora. “Ui, é todas as noites! Ainda ontem eram 4h da manhã quando saíram daqui”, diz, antevendo dose igual para mais logo. “Esta malta é boa gente”.

Anders e Benjamim Koppel: um diálogo de pai e filho através do jazz

Voltaríamos lá mais tarde e efetivamente às 3h30 ainda o Tio Júlio desdobrava-se em pedidos, um preguinho para aqui, umas moelas para acolá. Contudo, não encontrámos por lá Benjamin Koppel, Anders Koppel e Martin Andersen, trio dinamarquês que se apresentou durante a tarde no Guimarães Jazz.

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Pai e filho estiveram em palco unidos pela bateria de Martin, perfeitamente integrada nesta família, para uma hora que se assemelhou a um manifesto dos ideais do jazz, segundo Koppel & Koppel: um jazz europeu que assenta em bases formais clássicas (ou não fossem eles descendentes de Herman D. Koppel, importante compositor clássico dinamarquês) e que, a partir daí, se abre para a improvisação e para a incorporação de outras sonoridades no seu falar, como a folk dos Balcãs (lembrando que Anders fez parte do trio de jazz-folk Bazaar) e até a sedosa soul, apontamento que, quando se fez sentir, levou alguém ao nosso lado a atirar a cabeça para trás e a soltar um “ai que bom”, como se a música lhe estivesse a massajar as têmporas.

Benjamin Koppel, Martin Andersen e Anders Koppel, intérpretes de um jazz europeu de formas clássicas e que, a partir daí, se abre para a improvisação

Anders Koppel, tocando no seu órgão Hammond e dançando com os seus pés descalços de meias às riscas pelos pedais, ditou o fluxo e a aura do concerto. Tivemos momentos evangélicos, dignos de uma missa brevis, mas também outros que nos levaram a passear mentalmente pelas margens do Canal Nyhavn, num passo solitário, algo sombrio, procurando alguma boémia no inverno rígido do norte da Europa. A polifonia de mais de cinquenta anos de carreira de Anders, marcada pela fundação da banda Savage Rock, nos anos 60, e pela composição de inúmeras peças para ballet, cinema e teatro, foi notada em toda a atuação, conferindo-lhe um refinado ecletismo.

Benjamin, por seu lado, foi-se ajustando ao modo como o pai expandia e retraía o som, ao modo como brincava com as dinâmicas e como suspendia uma nota até ao seu último fôlego. As suas entradas de saxofone ao peito foram sempre feitas com respeito, sem que isso abafasse a sua irreverência, exibida em solos tecnicamente destemidos. Afinal, o seu percurso no jazz é tudo menos imaturo: fundador da editora Cowbell, assinou parcerias com Joe Lovano, Randy Brecker, Kenny Werner ou Jack DeJohnette, só para mencionar alguns. Foi bonito ver, numa atuação sem pausas (excetuando o encore), como duas gerações se honraram uma à outra e reinventaram a sua própria visão do mundo e da música em palco.

Um festival “profundamente emocional”

“O que se passou aqui foi um universo sonoro muito específico. Há uma certa sonoridade que parece pairar no ar, como se fossem auroras boreais”, diz Ivo Martins, sentado à conversa com o Observador no Vila Flor Café-Concerto, já depois dos aplausos finais para o Benjamin Koppel, Anders Koppel e Martin Andersen trio. É ele que orquestra o Guimarães Jazz há 27 anos, de uma forma “muito intuitiva”, confessa: “trabalhamos e gerimos o que nos aparece sem grandes planos”.

Ivo Martins, o diretor do festival, alertou que não quer “transformar o jazz numa coisa cristalizada, longínqua e impessoal”. Para ele e para a sua equipa, o mais importante é delinear uma programação diversa, capaz de cruzar várias influências dentro do estilo, e que permita ao público “descobrir a música e construir as suas próprias narrativas”.

À primeira vista, parece uma afirmação quase desleixada, mas o que realmente transparece para quem acorre a Guimarães nestes dias de festival é um modus operandi muito à flor da pele, atento e sensível ao ponto de marcar indelevelmente músicos e público. Bernard, por exemplo, veio pela primeira vez no ano passado e ficou tão arrepiado com os dias vividos na 30.ª edição, que este ano voltou a apanhar um avião da Alemanha para estar novamente em Guimarães. “Vou estar a semana toda”, diz-nos sacudindo o seu shaker em forma de ovo. Não, ele não é músico, esclarece-nos, mas adorava saber tocar bateria. Faltando-lhe o engenho para domar as baquetas, vai desenhando ritmos com o seu ovo, deixando-se navegar pela maré de jazz que por aqui se vive.

Ainda na conversa com Ivo Martins, o diretor do festival alertou que não quer “transformar o jazz numa coisa cristalizada, longínqua e impessoal”. Para ele e para a sua equipa, o mais importante é delinear uma programação diversa, capaz de cruzar várias influências dentro do estilo, e que permita ao público “descobrir a música e construir as suas próprias narrativas”: “queremos que as pessoas desfrutem, sintam coisas novas, sejam confrontadas com surpresas e saiam das rotinas instaladas”.

"Matriz Motriz", projeto que o guitarrista Mané Fernandes (do coletivo Porta Jazz) apresentou em Guimarães

A programação, com selo d’A Oficina, estende-se a várias outras instituições: desde a ESMAE, com a sua Big Band, que este ano foi dirigida pelo trompetista de Chicago Victor Garcia, passando pela Universidade de Aveiro, que tem o Centro de Estudos de Jazz (CEJ), sem esquecer a Porta-Jazz, a Sonoscopia ou a Orquestra de Jazz de Matosinhos, que encerrará a edição deste ano homenageando George Russel, com a interpretação do álbum “Jazz in the Space Age”. “Tentamos interagir com associações de músicos, organizações e instituições que promovem o jazz, porque, desse modo, estamos a chegar a outras pessoas a quem nunca chegaríamos se estivéssemos metidos no nosso reduto. Interessa-nos trabalhar num espírito aberto”, refere Ivo.

Se o leque de escolhas hoje é muito mais diversificado do que há 31 anos, também é preciso notar que o universo “híper digital” da música atual é regido por algoritmos que afunilam gostos. Perante isto, como é que um programador age? “Só há uma maneira de fintarmos o algoritmo: é sermos profundamente emocionais”, defende. Quando um coração bate, a música acontece.

Om Namah Shivaya, Om Alice Coltrane, Om Hamid Drake

Emoção, transcendência e espiritualidade foi o que encontrámos no concerto da noite, no Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor. Em palco, Hamid Drake fez-se acompanhar por músicos de vários cantos do mundo: Itália, Guadalupe, Serra Leoa, Noruega, Nova Iorque, enfim, um sem número de ascendências e ancestralidades que naquele momento se puseram em diálogo para se conectarem com o espírito de Alice Coltrane. Um pouco à imagem da exposição “Heteróclitos”, inaugurada recentemente no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), na qual os 1128 objetos da coleção de José de Guimarães são convocados para, relacionando-se entre eles e diluindo conceitos pré-estabelecidos de espaço e de tempo, nos lançarem a pergunta, “como podemos viver juntos?”.

“Recebi essa transmissão dela e, desde esse dia, alguma coisa tomou conta de mim. Percebi que a Alice Coltrane estava dentro de mim. O que ela representa está dentro de cada um de nós”, diz-nos o baterista Hamid Drake.

Ao ouvir Alice Coltrane pelas mãos de Hamid Drake estamos certamente mais próximos de encontrar uma resposta a essa questão, baseada no amor, na beleza, na criatividade, na consciência divina e no poder transformador da música para abrir novas possibilidades espirituais, sociais e culturais. Foi isto que o percussionista, praticante de um jazz espiritual cheio de orientalismos e africanismos, à semelhança da homenageada, nos disse literal e musicalmente ao longo da hora e meia de concerto.

Ele, contou-nos já depois de um solo impressionante de bateria, de mais de 15 minutos, que parecia beber da visceralidade de uma “Battle at Armageddon”, deve a sua entrega ao jazz à própria Alice Coltrane. Conheceu-a aos 16 anos, diz, numa sala na periferia de Chicago e, entre um abraço emotivo, recebeu a bênção da pianista e harpista de Detroit para se lançar sem medo pelo caminho da música, se era mesmo isso que ele queria. “Recebi essa transmissão dela e, desde esse dia, alguma coisa tomou conta de mim. Percebi que a Alice Coltrane estava dentro de mim. O que ela representa está dentro de cada um de nós”.

Num palco liderado pelo baterista Hamid Drake, o princípio partilhado foi simples: Alice Coltrane, agora e sempre

Ela esteve no meio, dentro e a pairar em nós durante aquele concerto, disso ninguém duvida. De tão transcendental, Hamid Drake pareceu, em certos momentos, encarnar Shiva, deus supremo do Hinduísmo, aquele que destrói e regenera, aquele que, com os seus múltiplos braços, ataca a percussão como se ali residisse o divino masculino e o divino feminino, a alma da própria Swamini Turiyasangitananda, nome que Alice adotou quando se converteu à religião Hindu.

A determinada altura ouvimos laivos de “Journey in Satchidananda”, faixa que dá nome ao álbum homónimo e obra prima de Alice Coltrane, gravado em 1971 com o igualmente líder espiritual do jazz, Pharoah Sanders. Foi nesta cadência que Hamid apresentou a sua banda, como se de um mantra se tratasse, evocando “Om Namah Shivaya”, algo que poderíamos traduzir livremente para “eu inclino-me perante o meu divino Ser interior”. Ele inclinou-se perante Sheila Maurice-Grey, na trompete, Jamie Saft no piano e nos teclados, Pasquale Mirra no vibrafone, Brad Jones no contrabaixo, Jan Bang nos sintetizadores e Ndoho Ange, bailarina que se fez serpente, estátua sagrada e pulsão da natureza durante o concerto, soltando frases em modo spoken word, “who is this unique woman, this warrior woman, illusive and wisdom woman?” É Alice Coltrane, agora e sempre.

Mas afinal, o que é o jazz?

A divindade feminina tem muitas maneiras de se mostrar. Ela é delicada, pacífica e complacente e, simultaneamente, guerreira, destemida e implacável. Valéria Dias, de braço erguido para assumir a jam session do Vila Flor Café-Concerto, lembrou isso mesmo com este gesto corajoso. Como Durga, a invencível, pegou no microfone e juntou-se ao Victor García Group, que nesta edição foi responsável por dinamizar as tradicionais jam sessions do festival. As próximas sessões acontecem de 17 a 19 de novembro, na Associação Convívio, onde o Guimarães Jazz começou há 31 anos.

Afinal, questionamo-nos também nós, o que é o jazz? Sem querer, Victor García deu-nos a resposta, enquanto conduzia a Big Band da ESMAE num concerto de domingo onde se ouviu Dizzy Gillespie, Billie Holiday, António Carlos Jobim, Stevie Wonder e rumba.

Jazz sem jam não é jazz e felizmente em Guimarães o espaço para a improvisação é amplo. É lá que se mostram os músicos do futuro, como Valéria, de 22 anos, que não cabia em si por ter visto Dianne Reeves na quinta-feira, 10 de novembro, no primeiro dia do festival. “Eu faço anos no mesmo dia que ela”, atirou entusiasmada, como se nessa bonita coincidência estivesse a confirmação inequívoca da vocação para o canto jazzístico que nem ela sabia ter. Porque Valéria, como nos explicou já depois de ter deixado um apinhado Café Concerto em delírio, gostava de cantar Amy Winehouse na adolescência. “O que é o jazz?”, perguntar-se-ia então. Amy deu-lhe a pista, Lady Gaga em dueto com Tony Bennett apontou-lhe o caminho, o Conservatório do Porto e a admissão na ESMAE fizeram o resto.

Mas afinal, questionamo-nos também nós, o que é o jazz? Sem querer, Victor García deu-nos a resposta, enquanto conduzia a Big Band da ESMAE num concerto de domingo onde se ouviu Dizzy Gillespie, Billie Holiday, António Carlos Jobim, Stevie Wonder e rumba. Um concerto onde todos os alunos tiveram espaço para solar, para dançar Quimbara quimbara quma quimbamba, para partilhar o palco com alguém que vem da tradição do jazz de Chicago e o está a reescrever com as suas heranças latinas.

A big band da ESMAE, num concerto em que onde todos tiveram espaço para solar, para dançar, para partilhar o palco com alguém que vem da tradição do jazz de Chicago e o está a reescrever

A certa altura da atuação, Victor Garcia introduziu “Zugzwang”, faixa composta pelo próprio para homenagear Gillespie. O nome remete para um movimento típico do xadrez, elucida. Diz-se que um jogador está em zugzwang quando é obrigado a fazer uma jogada que o colocará numa situação de desvantagem face ao adversário. Às vezes na vida, lembra Garcia, as coisas não nos correm de feição. “Porém, independentemente de tudo, nós estamos vivos e continuamos a fazer música juntos”. É assim o jazz, é assim a música e são assim os Heteróclitos de José de Guimarães: uma pulsão de vida, de renovação e de resistência, a linguagem das emoções, da empatia e do indizível, o encontro com o que de mais sagrado há em nós. Mesmo que o mundo se atropele em sucessivos zugzwangs, teremos sempre a arte para nos salvar.

Até dia 19 de novembro, o Guimarães Jazz continuará a dar-nos música, questionamentos e valiosos fôlegos de humanismo no Centro Cultural Vila Flor. O saxofonista David Murray regressa ao festival no dia 18 de novembro, sexta-feira, com o seu Octet Revival (€15), ele que marcou aqui presença em 2014, dessa feita acompanhado pelo Infinity Quartet; Victor Garcia apresentar-se-á ao lado do pianista Ben Lewis, do baterista Greg Artry, do contrabaixista Josh Ramos e da sua mulher e vocalista Jill Katona no sábado, 19 de novembro, às 17h (€10); e a Orquestra de Jazz de Matosinhos revisita “Jazz in the Space Age” de George Russel também no sábado, às 21h30 (€15), para o concerto de encerramento do Guimarães Jazz. São estes os próximos grandes destaques de uma programação que pode ser consultada na íntegra no site do festival.

“Fecha-se uma edição, abre-se outra no próximo ano com um espírito completamente aberto”, diz Ivo Martins. Vejamos o que a intuição lhe sussurra para 2023.

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