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Volodymyr Zelensky não poupou nas palavras. Estávamos a 20 de março, a guerra na Ucrânia durava há menos de um mês e o Presidente ucraniano protagonizava os seus discursos a vários parlamentos mundiais. O discurso daquele dia, porém, deu mais nas vistas. Dirigindo-se ao Knesset, o Parlamento israelita, Zelensky — ucraniano judeu — pediu um apoio mais firme daquele país à luta dos ucranianos e comparou diretamente a tragédia que se abatia sobre a Ucrânia com o Holocausto. O dia 24 de fevereiro, disse, ficava duplamente marcado pela tragédia: o dia da invasão em larga escala à Ucrânia e o dia em que foi fundado o Partido Nazi.
À altura, a comparação não foi bem recebida por todos. “A guerra é terrível, mas a comparação com os horrores do Holocausto e da Solução Final é escandalosa”, comentou à altura o ministro das Comunicações, Yoaz Hendel. Vários deputados do Knesset também criticaram as palavras de Zelensky.
Em março, a ideia de que Israel poderia apoiar diretamente a Ucrânia com armamento parecia impossível. O país mantinha-se firme numa política de alguma equidistância entre Ucrânia e Rússia, oferecendo-se até como possível mediador do conflito. Agora, mais de meio ano volvido, Kiev volta a pressionar o governo israelita para que apoie mais claramente o país, em vez de enviar apenas ajuda humanitária. E, desta vez, a situação talvez possa ser diferente. Porquê? Uma palavra com quatro letras apenas explica tudo: Irão. E a ideia de “o inimigo do meu inimigo meu amigo é”.
A ligação Teerão-Moscovo e o risco para o acordo nuclear do Irão
Os últimos dias foram marcados por um fator que introduziu grande perturbação no cenário da guerra ucraniana: o uso dos drones chamados de “kamikaze” por parte da Rússia, cuja origem é provavelmente iraniana. Só nesta segunda-feira, os ataques com os Shahed-136 terão morto pelo menos oito pessoas. Kiev garante que o armamento é iraniano e, por isso, está a equacionar quebrar as relações diplomáticas com Teerão.
“Estes drones são bastante lentos, mas também têm uma uma carga poderosa, por isso um ataque com um deles é equivalente a um ataque com um míssil”, afirmou logo no final de setembro Serhiy Bratchuk, porta-voz da administração militar de Odessa. “Isto pode ter um impacto psicológico [relevante] na população. É um ato de terrorismo.”
Oficialmente, o Irão nega que esteja a fornecer este armamento à Rússia. “A República Islâmica do Irão não forneceu nem irá fornecer qualquer tipo de armamento para ser usado na guerra da Ucrânia”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros Hossein Amirabdollahian ao homólogo português. João Gomes Cravinho, porém, sublinhou na chamada que ocorreu na passada sexta-feira que Portugal está preocupado com “os indícios recentemente veiculados sobre a utilização de drones iranianos por parte da Federação Russa em território ucraniano”.
As provas têm-se amontoado. Além das garantias de ucranianos e do governo norte-americano, outras provas apontam Teerão como origem destes drones. Já em abril, o The Guardian garantia que a Rússia estava a receber equipamento militar iraniano através das milícias que o país tem no Iraque. Agora, são vários os grupos próximos da Guarda Revolucionária do Irão que reivindicam a origem deste armamento em vários canais no Telegram: “Não há dúvida de que os drones usados pelo exército russo são iranianos”, garantia-se no grupo de hackers informáticos associado à Guarda Revolucionária Iraniana, Sepah Cyberi, segundo o The New York Times.
Esta terça-feira, o mesmo New York Times publicou mais dados sobre a ligação Teerão-Moscovo. Segundo o jornal, o Irão enviou militares, para ajudarem os soldados russos a aprender a mexer neste material, que estão agora numa base militar da Crimeia. Serão todos membros da Guarda Revolucionária. E outros órgãos, como o Washington Post e a agência Reuters, dizem que o apoio iraniano poderá ir além de drones, com o regime a equacionar fornecer mísseis terra-terra ao exército russo.
Mas por que razão estará o Irão a fornecer armamento à Rússia em segredo? Mahmoud Shoori, vice-diretor do Instituto do Irão e de Estudos da Eurásia, diz ao Times que o país tem noção de que a causa ucraniana é mais popular entre a população iraniana, sobretudo entre os jovens — que protagonizam neste momento os maiores protestos dos últimos anos no país, na sequência da morte de Mahsa Amini. Mas, ao mesmo tempo, “o Irão também quer mostrar ao mundo que é aliado de uma superpotência militar e que tem capacidade de lhe vender armamento, para mostrar que as políticas ocidentais de pressão máxima para isolar o Irão não funcionaram”, diz.
Apesar de uma relação pontualmente tensa do país com a Rússia, Teerão partilha com Moscovo uma oposição ao Ocidente e, em particular, aos Estados Unidos. E, como lembrou ao Wall Street Journal a investigadora da Chatham House Sanam Vakil, “uma Rússia enfraquecida pode ser boa para o Irão, porque consegue extrair coisas dela”.
É, contudo, uma jogada de alto risco que começa a ter consequências possivelmente nefastas para o regime do Ayatollah Khamenei. O acordo nuclear entre o Irão e o P5+1 (EUA, Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha) está a ser renegociado, mas pode vir a cair.
“A proliferação de drones do Irão para serem usados pela Rússia na Ucrânia torna mais difícil à administração Biden e à Europa vender um regresso ao acordo”, resumiu à Newsweek Jadon Brodsky, diretor do grupo Unidos Contra um Irão Nuclear. “É um sinal de que estão a tentar recriar uma realidade geopolítica com o Irão que já não existe. 2022 não é 2015.”
A situação entre os vários atores já estava tensa graças aos protestos pela morte de Mahsa Amini, sob custódia policial por não estar a usar corretamente o véu islâmico, com os EUA, a União Europeia e o Reino Unido a aplicarem novas sanções ao Irão. Agora, os líderes europeus podem vir a fazer o mesmo por causa dos drones, o que poderia matar de vez o acordo nuclear. França e Reino Unido já argumentam que o fornecimento de drones à Rússia viola em si mesmo os princípios do acordo nuclear. E esta pode, por isso, ser a primeira vítima deste envolvimento do Irão na guerra da Ucrânia.
Israel, de neutra a participante?
Mas o que tem isto a ver com Israel? Tudo. Há anos que o país encara o Irão como o seu maior inimigo na região e a maior ameaça à sua segurança nacional. Kiev sabe disso, razão pela qual aumentou a pressão diplomática nos últimos dias para tentar forçar Israel a tomar uma posição de apoio mais declarada à Ucrânia, enviando armamento ou, pelo menos, sistema de defesa anti-aérea.
A Rússia também sabe de tudo isto. Na segunda-feira, o antigo Presidente Dmitry Medvedev avisou Israel de que o fornecimento de armamento à Ucrânia “destruiria as relações políticas” com Moscovo. E a pressão parece ter tido efeito: o ministro da Defesa, Benny Gantz, cancelou quase de imediato uma chamada telefónica que tinha agendada com o homólogo ucraniano. Esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita, Yair Lapid, voltou a reiterar a posição do país: “Quero deixar claro que não estamos a vender armamento à Ucrânia.”
Israel evita hostilizar diretamente a Rússia por uma questão simples: “Na prática”, já explicou Lapid em setembro, a fronteira de Israel com a Síria é, neste momento, “uma fronteira com a Rússia”. Mais concretamente, os israelitas pretendem preservar as boas relações com Moscovo que lhes têm permitido bombardear alvos iranianos na Síria, com o acordo tácito da Rússia. Ou seja, é a boa relação com a Rússia — país que agora recebe armamento do Irão — que permite a Israel combater o seu inimigo Irão. Em política internacional não há, de facto, amigos.
Mas o fornecimento de drones iranianos a Moscovo pode vir mexer neste complexo tabuleiro geopolítico. Israel já tem noção há muito de que, para os israelitas, a causa ucraniana é altamente popular. Além disso, também está preocupada com os efeitos da sua posição na opinião pública ucraniana. Em setembro, o site Axios teve acesso a um documento do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita que dá conta de que uma delegação do país teve um encontro com uma empresa de relações públicas ucraniana para melhorar a imagem de Israel no país: “A narrativa na Ucrânia de que Israel não esteve à altura das expectativas danificou a nossa imagem”, reconhecia o ministério naquele documento.
Apesar de se manter oficialmente neutra — como faz o Irão —, a verdade é que Israel já pode estar a ajudar Kiev na sombra há algo tempo. O The New York Times avança, por exemplo, que o país tem fornecido informações aos ucranianos sobre os drones usados pelo Irão; e garante que uma empresa privada israelita está a auxiliar o país com imagens de satélite sobre o posicionamento das tropas russas.
Agora, a entrada do Irão no conflito ucraniano pode levar Israel a também tornar mais clara a sua posição. “Isto apagou qualquer dúvida sobre onde se posiciona Israel neste conflito sangrento”, disse o ministro Nachman Shai no passado domingo. “Chegou a altura de a Ucrânia receber ajuda militar [nossa] como aquela que os EUA e os países da NATO lhe dão.”
Os próximos dias podem ajudar a clarificar se a posição de Shai é minoritária ou se o conflito na Ucrânia está mesmo a alastrar-se também ao Médio Oriente.