Às armas? “Devia era ser ‘aos remos, aos remos!’”, corrige, sem deixar que o sorriso lhe fuja da cara ou que a boa disposição deixe de embalar a conversa. De facto, Vítor Hugo até tinha razão. O professor, de 56 anos, falava do hino nacional português. A música que escolheu para ser tocada, durante os 30 segundos que tem para “picar” o público e “cativar” a multidão, antes de o empurrarem para fora de uma plataforma erguida seis metros acima do mar. Primeira lição que se tira: sim, é brincadeira para acabar dentro de água. “Só espero é que isto não aterre de focinho”, desabafou, antevendo a sina que o espera.

O ‘isto’ é um avião. Ou deveria ser. Atrás de Vítor Hugo, imóvel e no centro de uma garagem meia destapada do Colégio Vasco da Gama, em Belas, está uma “carcaça”, como lhe chama. “Agora vai ser pintado com tintas acrílicas e vai ganhar vida”, garante-nos, ao apontar rumo à estrutura, a roçar os seis metros de comprimento e quatro de largura — e composta por garrafões de água de cinco litros. “Quatro, cinco, 10, 20, 40… São prai uns 180”, enumera, lembrando que “é fácil contar porque o avião está construído por blocos”.

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E pouco mais. O avião, aceitemos o nome, construiu-se unindo grupos de dois e quatro garrafões com cola ou fita adesiva. Um “trabalho de chinês”, desabafa quem o andou a fazer. Bem as procuramos, mas a verdade é mesmo esta: o avião não tem asas. Mas será montado em cima dele que Vítor Hugo, este sábado, vai saltar para a água do mar desde uma plataforma com seis metros de altura, na Baía de Cascais, do Red Bull Flugtag. O lema da prova não engana. É o ‘Dia das Asas’, o tal que pede engenho e criatividade aos participantes para inventarem máquinas que consigam voar — tudo condimentado com uma pitada de coragem. “Vou estar a tremer por todos os lados”, admite o professor de Educação Visual e Tecnológica, antes de garantir que, “pelo menos, isto flutua”.

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Nós acenamos. E acreditamos. Além de ser “muito leve”, garante Vítor, sem especificar o peso, são quase 200 garrafões de plástico, repartidos por duas estruturas — uma que ficará em baixo, a fazer de avião, e outra, que assentará nesta, construída em forma de boneco. “É um passageiro clandestino, bicéfalo, com duas caras, para que todas as pessoas o possam ver”, descreve Vítor Hugo, antes de desvendar o nome do avião e da equipa: ‘Arda que vem aí a troika’. “Sim, porque o boneco está a fugir da troika”, reforça, aguçando ainda mais a nossa curiosidade. Como estará então representada a troika? Além do boneco, explica, a equipa “vai vestida à mendigo, com fatos a imitar a pele e a cara pintada à Zé Povinho”, revela. A indumentária, a música ou “as palhaçadas” que cada equipa faz antes do lançamento interessam. Além da criatividade do avião e dos metros galgados no ar, o júri da prova vai avaliar a “performance” da equipa durante os 30 segundos que antecedem o lançamento.

Okay, está explicado como se verá a troika. Só falta saber o porquê deste tema. “Do nada já se foram embora 20 colegas meus, despedidos, porque a troika está a apertar o cerco”, começa por dizer. “Depois é o governo que aperta connosco, os pais não aguentam a mensalidade da escola, tiram os putos do colégio e metem-nos no ensino público. Assim, o colégio fica com uma população muito pequena para tantos professores”, lamenta.

E apertar foi coisa que Vítor Hugo também fez nos custos. Às tantas, no meio do entusiasmo com que nos descreve o avião, lança o desafio: “Vá, digam lá quanto é que eu gastei nisto.” O nosso palpite roça os 50 euros, o rastilho perfeito para rebentar uma gargalhada no professor. “Devo ter gasto aí uns 16 euros”, garante, pois “os gajos foram trazendo os garrafões”. Os gajos, para Vítor Hugo, é o nome de código a que por vezes recorre para falar dos alunos do colégio. Ao seu lado estão dois que já o foram. Beatriz e Carlos, ela saída do 9. ano, ele já na faculdade, ambos ex-alunos de Vítor Hugo, deram uma ajuda na montagem do avião. Bruno, cunhado do professor, também. “Por isso é que é o Sr. Vítor a ir em cima do avião, para ver como corre”, brinca, às tantas, sem que a piada chegue aos ouvidos do sogro.

A invenção de Vítor Hugo pode não voar. Mas também não lhe exigiu muito da carteira. Às tantas, no meio do entusiasmo com que nos descreve o barco mascarado de avião, revela que deve “ter gasto aí uns 16 euros”. Entende-se: a estrutura é toda feita com garrafões de água de cinco litros, ligados com cola e fita adesiva.

Destes três, contudo, apenas Bruno se juntará a Vítor Hugo na plataforma — as regras da prova dizem que cada equipa é composta, no máximo, por quatro pessoas. A par de Tomás Guedes, que não chegámos a conhecer, o outro elemento será a filha do professor, que “entra sempre nesta loucuras” com ele, mesmo que já tenha dito que “o pai tem idade para ter juízo”. Vítor Hugo dá-lhe razão. “Eu concordo, mas no fundo só não me quero magoar”, brinca, antes de olhar para o relógio e lembrar-se que, em casa, já terá a mulher “em brasa” porque, em vez de a estar a ajudar “numa mudança”, vai gastando minutos a explicar-nos como surgiu a ideia de saltar para a água montado num barco mascarado de avião. E de onde veio, afinal? Para esta não há resposta, mas há uma culpada. E chama-se ‘sanita pensadora’. A nossa pergunta tem tanto de incrédulo como de inevitável: como assim? “Quando não têm ideias, mando os gajos [os alunos] sentarem-se lá”, conta, antes de nos mostrar o utensílio de casa de banho que tem no meio da sala de aula onde leciona há 33 anos. E “se calhar” a ideia surgiu mesmo lá, reconhece, pois o resultado final “acabou por ser um hidroavião. “Levanta na plataforma e aterra na água”, remata.

Voltando à garagem, tudo o que nos rodeia, entre pincéis, martelos e embalagens de plásticos encavalitadas em prateleiras, sugere que os garrafões não foram uma novidade. Certo, e a prova aparece quando Vítor Hugo começa a enumerar as tarefas que, todos os anos, impõe aos “gajos” que tem de ensinar. “Peço-lhes para construírem barcos com garrafões. Cada um tem de levar 12 pessoas e assim fazemos uma regata ecológica na Pista de Canoagem do Jamor. Eles remam em cima disto”, conta. Fora os barcos, há candeeiros por inventar, para “os habituar a mexerem com eletricidade”, pranchas de skimming por construir e até papagaios por montar e pilotar depois na Praia do Guincho. “A vida não é estar sentado à frente do computador. Estas coisas manuais fazem-lhes bem. Qualquer dia até se casam pelo computador e perguntam como é que se fazem filhos!”, atira, provocando a enésima gargalhada em quem o está a ouvir.

E risos também é coisa em que não se poupa ali perto, em Caxias. São 15 minutos de viagem, mais coisa menos coisa, até chegarmos a um pequeno largo, encurralado entre prédios e garagens, na Rua António Pires. A minúcia a descrever o local onde estamos justifica-se pelo nome da próxima equipa que nos recebe — ‘Os Galos da Rua’. Foi nela que Nuno Coutinho, Miguel Peugschitz e João Vieira se conheceram. Eram vizinhos. Ainda o são. E na altura também eram miúdos e estavam “na altura das cabanas”. Construíam tudo e mais alguma coisa. Desde “carros de rolamentos” a “armadilhas para ratos”, conta João, do alto dos 26 anos que hoje conta, idade com que ele e os restantes souberam do Red Bull Flugtag e perguntaram: “Vamos a isto para atrofiar ou para voar?” Decidiram levar a coisa a sério.

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Estamos de novo numa garagem. E nesta nota-se mais a ressaca da mão-de-obra. Há berbequins espalhados pelo chão, bocados de tubo de plástico um pouco por todo o lado; e rolos de papel de celofane arrumados aos cantos. As paredes acolhem arrumação caseira, dividida entre as prateleiras nelas se encostam. E no meio do espaço está o que interessa: duas grandes asas, com um formato em tudo parecido com duas velas de windsurf, unidas por uma estrutura central, feita com um mastro, tubos de plástico e a retranca de uma prancha de windsurf. “Tudo resistente e superleve. Quando está montado é parecido com uma asa delta, com um suporte onde vai o piloto, sentado”, explica João, após desencantar da garagem uma mini-maquete do projeto, feita com cordéis e pedaços de palhinha de plástico. Pouco depois, a pedido do fotógrafo, os três — o quarto elemento nunca chega a aparecer — montam o avião à entrada da garagem. E confirma-se: é a versão caseira de uma asa delta, com seis metros de envergadura (o limite imposto pela Red Bull) e 180 quilos de peso.

O dia está ventoso. E cada rajada que por ali passa parece dar uma prova de que, pelo menos, as asas apanham bem o evento, pois a cada sopro que surge uma asa parece ganhar vida. Aqui não importa. O objetivo era voar na prova e tentar bater os 76,8 metros que, em 2013, fixaram o recorde do Red Bull Flugtag, nos EUA. A distância, recorda João, que já viu filmagens do tal voo, percorreu-se com “uma coisa bem executada e pensada, um modelo de avião mesmo”. Nesse caso “estava tudo impecável, agora neste isto acho que não está”, confessa, arrancando uma gargalhada dos amigos. “Mas calma, quando vejo o nosso, vejo-o a brilhar, tem uma aura à volta”, garante. Ou um galo de Barcelos, cujas cores a equipa ia pintar nas asas, sobre a cobertura de celofane. “Porque é um símbolo português”, justifica João, puxando do mesmo espírito patriótico quando revela que os quatro estavam a pensar em vestir-se de personagens como “o D. Sebastião, o Zé Povinho ou um soldado com um cravo” no momento que antecede o lançamento.

Os tais 30 segundos antes de tentarem a sorte com o avião. “E se metêssemos a tocar o ‘I Believe I Can Fly’? Ou toda a gente vai pensar o mesmo que nós?”, chega a questionar Nuno, o piloto de serviço, “o mais levezinho” e a razão para os restantes não estarem “muito preocupados com a segurança”, acrescenta João, para forçar o riso. Entre plástico, celofane, fibra de carbono e uns quantos parafusos, a fatura ficou nos 40 euros e cerca de duas semanas de trabalho. Um tímido investimento, sim, mas a “estimativa era zero”, confessam os ‘Galos da Rua’, ao darem conta de que o plano inicial se baseava na esperança de conseguirem os materiais em ferros velhos, oficinas ou garagens. “Sabemos que resistência isto tem, agora se voa… Vamos ver”, resume João, congratulando-se por, com “um custo simbólico”, dois designers (um deles ainda a estudar) e um arquiteto de profissão terem concretizado este avião. “Claro que há muitos outros mais elaborados, que têm dinheiro para gastar”, atirou depois. E com razão.

Vítor Hugo gastou 16 euros para juntar garrafões num hidroavião. Os galos foram até aos 40 para improvisar uma asa delta com papel celofane. E uns pinguins só pararam nos 400 euros para traduzirem em madeira e alumínio o plano traçado por um engenheiro mecânico. O projeto veio da cabeça de Rúben Paulo, e a execução fez pelas mãos dele e de Bernardo Pereira, um nadador-salvador, Tiago Dias, um ator, e Eduardo Nascimento, um oficial de operação de voo. Sim, resumido numa palavra, um piloto. Ou seja, os ‘Pinguim Airlines’ parecem ter tudo. “Sim, se era para entrarmos nisto, já agora que ficasse uma coisa com o mínimo de aerodinâmica e em que o pessoal reconhecesse alguma hipótese de ganhar”, resumiu Eduardo, um de três elementos que estudaram juntos no Colégio Militar, em Lisboa, durante oito anos. Tiago é a exceção, mas não destoa do grupo: “Isto não é para participar, é para ganhar.”

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Os quatro amigos, todos entre os 26 e os 28 anos, só partilham uma coisa com as duas equipas anteriores — também eles nos dão as boas-vindas numa garagem, desta vez em Oeiras. Lá dentro, com os devidos descontos, ela quase parece um barracão de um aeroporto destinado a receber aviões. Tudo no seu interior remete para isso: colado nas paredes, além de posters do Red Bull Flugtag, estão duas folhas A3 com o projeto do avião, desenhado a computador, e quatro fatos de pinguim pendurados num cabine — mas já lá vamos. Dois terços da garagem são ocupados com ferramentas ou madeira reservadas para o efeito. No chão, a aproveitar os seis metros de envergadura, está o esqueleto do avião, dividido por dez placas de contraplacado, ligadas por tubos de alumínio. “Cada tubo tem 2,5 metros e custou 11 euros. Depois, cada placa andou à volta dos 25 euros”, indicou Eduardo, admitindo que não tinham noção de que o avião atingiria aquele tamanho.

De peso tem 40 quilos, aos quais se juntarão os de Eduardo, o piloto (só podia) designado para saltar este sábado com a obra. “Acho que tem capacidade para planar. No desenho, pelo menos tem. Não é nada de estapafúrdio nem esquisito, é uma asa delta. Tem dimensão para isso. Vamos lá ver se isto aguenta”, diz, pouco antes de revelar que começaram a trabalhar “há cerca de um mês” e ainda tinham de dedicar um dia só para “pintarem a cobertura com spray ” — isto quando faltavam apenas três para serem chamados à plataforma montada na Baía de Cascais. É lá que vão aparecer mascarados a rigor. Mesmo. “Agarrámos no tema do Madagáscar, o filme, e vamos todos vestidos com fatos de pinguim”, garante um deles. Lá está. O tema é absorvido pela cabeça de todos e prova surge quando o Observador lhes pede para se apresentarem em vídeo ao mundo — fazem-no com nomes de personagens do filme de animação da Dreamworks.

Por isso pintarão também a cobertura do avião com tons de verde, “a lembrar a selva”, e talvez incluir “umas folhas de palmeira”. Para os 30 segundos que têm para espicaçar as pessoas que estiveram com os olhos colados ao evento, os ‘pinguins’, além dos fatos, contarão com um grupo de adeptos próprios. Batota? “Não, perguntámos à Red Bull e é tranquilo”, asseguram, ao explicarem que a ideia de montarem um avião brotou do ‘Cultura qb’, um “grupo de lazer” que já vai na centena de elementos e que organiza atividades através da rede social. “Foi uma questão de decidir participar e pronto”, concluiu Eduardo, enquanto um pequeno rádio, que está sempre ligado, anuncia a passagem a um qualquer novo hit musical.

Os ‘Pinguim Airlines’ foram os mais gastadores: usaram ao todo 400 euros para montarem o seu avião com placas de contraplacado e peças de alumínio. E talvez fossem gastar mais dinheiro em tintas para pintarem a cobertura da sua espécie de asa delta.

Das três equipas que abriram a porta da garagem ao Observador, o título de esbanjadores ficou com os pinguins. Os 400 euros que gastaram não os livram disso. Mas talvez por aí sejam os únicos a terem arranjado maneira de compensar o investimento feito. Partido do tal grupo de Facebook, e “espalhando a palavra por amigos e conhecidos”, os quatro conseguiram vender rifas, “a cinco euros cada”, para compensarem os gastos. “Já vendemos aí umas 30 senhas, ou seja, vamos quase nos 150 euros”, calcula Bernardo, ao revelar que o sorteio se realizará a 13 de setembro e que os prémios consistiam “na participação numa série de outros eventos” organizados pelo Cultura qb, que variam entre o paintball ou uma corrida de karts, por exemplo. “Não querem comprar uma?”, questiona-nos, às tantas, com a mesma genica com que equipa até procurou patrocínios. “Tentámos falar com a NOS, que vai promover o próximo filme do Madagáscar em Portugal, mas nunca nos chegaram a responder”, lamentou Rúben, já conformado por ninguém se aliar ao voo dos pinguins.

A companhia de patrocinadores até pode aparecer. A torneira dos euros canalizados para o avião abriu-se nuns casos e fechou-se em outros. E houve quem menosprezasse as asas e se focasse no bom que é participar. Seja qual for o caso, o destino será o mesmo para todos — terminarem a boiar no mar que banha a Baía de Cascais, após saltarem da plataforma com 30 metros de comprimento e seis de altura. Só as “palhaçadas” nos 30 segundos que cada uma das equipas terá, como dizia Vítor Hugo, ou a “vestimenta a rigor” que poderão escolher, à maneira dos ‘Pinguim Airlines”, é que vão variar entre os 40 grupos que decidiram montar um avião para o dia das asas. O único em que tudo o que levante voo é para terminar na água.