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Hugo Macedo

Hugo Macedo

Ivo Canelas. "Fui um bom adolescente cliché: romântico, exacerbado, complicado"

O primeiro monólogo de Ivo Canelas, “Todas As Coisas Maravilhosas”, chega ao Estúdio Time Out, em Lisboa, a 7 de janeiro. Motivo para uma conversa sobre a vida, o trabalho e as manias do ator.

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Um dos seus primeiros trabalhos enquanto ator implicou descer a Avenida da Liberdade a fazer de preservativo. Depois disto, claro, pode vir tudo, está-se pronto para qualquer coisa. E embora a sua experiência seja larga – recordemos “Fura-Vidas”, “Zona J”, “António, Um Rapaz de Lisboa”, “Alice”, “Os Filhos do Rock” e muitas peças de teatro – este é o seu primeiro monólogo. “Todas As Coisas Maravilhosas” é uma reflexão sobre a passagem do tempo, sobre o facto de aos sete anos acharmos um gelado algo maravilhoso e de aos 20 vivermos na dúvida, se ainda queremos aquele gelado ou não.

Ivo Canelas é um dos mais talentosos atores portugueses, ainda que em jovem – antes de se interessar pela representação – tivesse a perceção que essa era uma arte que vinha no sangue das pessoas. Quando percebeu que se podia trabalhar para ser ator não hesitou. Pelo meio, trabalhou na Passagem do Terror, na Feira Popular de Lisboa, fez leilões em Nova Iorque, serviu hambúrgueres, leu O Ensaio Sobre A Cegueira em português e em inglês e colecionava bichos de conta quando tinha que estudar matemática, truque que não está ao alcance de qualquer um. Por último — e não menos importante: é um otimista. Portanto, boa sorte.

“Todas as Coisas Maravilhosas” é a história de alguém que está a recuperar o seu passado, que depois de a mãe ter ido para o hospital começa a fazer uma lista de todas as coisas maravilhosas do mundo.
Sim, a génese da lista é um pretexto, é um presente para a mãe. Que tem questões depressivas.

Essa ida para o hospital é uma eventual tentativa de suicídio?
Eventual, sim. E esta lista de um miúdo de sete anos é uma resposta a isso, um miúdo de sete anos a tentar, de uma forma pragmática e eficiente, organizar o mundo à volta por coisas maravilhosas que estimulam a vontade de cá estar. É uma reação visceral e simples, como só as crianças conseguem, profundamente utópica e ingénua, mas depois a história é sobre o que acontece a este miúdo ao longo dos anos, que se torna adulto, e como é que ele, nós, percecionamos estas questões familiares, o sentido destas coisas todas, a enorme dificuldade que é falar sobre tudo isto, falarmos entre nós. Este texto é um pretexto para essa discussão, aquela questão de que só nós e a nossa almofada é que sabemos o que é que se passa durante aquelas oito horas da noite. Durante as outras 12, fazemo-nos à vida, que remédio.

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Os primeiros dois tópicos dessa lista são gelados e guerras de água. Interessam-lhe?
Completamente. Estes são os primeiros dois tópicos que ele escreve com sete anos. E hoje, quase com 45, os gelados continuam a estar no meu top cinco, com certeza. O que acho fantástico nesta lista é sentir a idade a passar, com sete anos considero gelados a coisa mais importante do mundo, se calhar com 20 o facto de ter um cabeleireiro que faça mesmo o que eu quero com o cabelo é uma coisa maravilhosa, se calhar com trinta conversar com alguém com quem gosto de dialogar é outra coisa maravilhosa… A questão é se estas coisas se mantêm com o mesmo valor, se o valor muda, acho que esse é o grande desafio de crescer, como é que mantenho esta coisa de olhar à volta e dizer “que chapéu tão louco”, “que tapete tão engraçado”. E não apenas o ramerrame do dia-a-dia.

"A única experiência que tive de relação direta com o público foi uma coisa que fiz há muitos anos, na Feira Popular de Lisboa, trabalhava na Passagem do Terror. E adorei. Havia um grande sentimento de imprevisibilidade, um contacto super direto com o público, sentíamo-nos muito expostos."

E se fizesse esta lista hoje?
É engraçado, tenho feito esse exercício de tentar sintetizar as coisas ao máximo. Realmente há uma dose de ingenuidade nesta lista, mas acho que um dos grandes trunfos da humanidade é a sua ingenuidade, mas no sentido quer do engenho, quer da sua crença às vezes tonta de acreditar em coisas impossíveis. Ando a fazer esse exercício e até a pedir às pessoas que me rodeiam para pensar em cinco coisas maravilhosas.

E quais seriam os tópicos?
A minha mota, que comprei há seis meses, é maravilhosa, para andar em Lisboa, adoro. Um dia de sol como este, absolutamente único. E depois, às vezes, dou por mim… hoje acordei a meio da noite, estava cheio de sede e tinha um copo de água que tinha posto na mesinha ao lado. Pensei “ter um copo de água quando estás cheio de sede, é uma coisa maravilhosa”. Não precisar de me levantar nem nada. Isto são brincadeiras, mas o cérebro começa a reparar. Acho que além da capacidade de alguns terem uma maior propensão para a felicidade, há também um exercício de ativar essa propensão, há um trabalho, e essa lista é um bocado fazer esse trabalho.

Falamos de um monólogo.
É um monólogo, uma conversa em arena, com o público à volta, em discurso direto, contando uma história e envolvendo, de uma forma muito simples, as pessoas.

Provocando?
Partilhando pequenas memórias que todos reconhecemos com facilidade.

Como é que gosta de explorar essa relação com o público?
A única experiência que tive de relação direta com o público foi uma coisa que fiz há muitos anos, na Feira Popular de Lisboa, trabalhava na Passagem do Terror. E adorei. Havia um grande sentimento de imprevisibilidade, um contacto super direto com o público, sentíamo-nos muito expostos, mas ao mesmo tempo era muito excitante porque não havia aquela formalidade do “sim, estou a fingir que estou a gostar”. Havia uma coisa de “gosto” ou “detesto”.

O que é que fazia lá?
Fiz de tudo. No último ano fazia a porta, tinha grupos e grupos a entrar, eram umas 1500 pessoas por noite em grupos de dez pessoas, era repetir um texto minuto a minuto, era muito excitante. Sempre me interessou esta ligação com o público e como isso tem que te influenciar. Mas como vês, não tenho muita experiência nisto, este é o primeiro monólogo que faço, com alguma interação com o público, não sei bem como é que se fez, quer dizer sei, acho que sei, tenho que estar mais disponível do que nunca. Porque somos todos muito surpreendentes quando expostos, porque estamos um bocado contrariados assim à frente dos outros.

Foto: Hugo Macedo)

Porque é que isso nunca foi acontecendo no seu percurso?
Nunca surgiu. Tenho um lado relaxado em relação ao percurso, ou seja, não decido muita coisa, vai surgindo, esse universo nunca se aproximou.

E há alguma vontade específica para agora querer fazer isto?
Sim, o Hugo Nóbrega, do H2N, que assume a produção deste espectáculo, apresentou-me o texto e perguntou-me se estava interessado em fazê-lo. Muitas vezes os meus trabalhos vão assim, vêm ter comigo e fazem um convite, adorei o texto e aceitei.

Prefere esse lugar de expectativa, de ver o que chega?
Estamos tão treinados para fazer acontecer, para forçar que aconteça o que quer que seja… o nosso treino desde cedo segue o lema “se trabalhares muito consegues”. E depois temos dificuldade em viver ao contrário: o deixar acontecer. Por feitio, já imponho demasiadas coisas a mim próprio e ao universo em geral e prefiro, nalgumas coisas, não impor muito.

Isso pode até ser um exercício interessante.
Para mim é, dou-me bem com essa curva apertada onde o volante não é mexido por mim, gosto disso… para sair de áreas de conforto, é isso, gosto de não dominar muito.

“Os ciúmes? São transversais ao mundo inteiro”

Tem feito alguma televisão, pequenas participações em séries internacionais e algumas séries nacionais. Gosta desse formato de série?
Gosto muito, acho que é um formato que pede mais detalhe e atenção e ao mesmo tempo também permite desenvolver mais as coisas que num filme, gosto desse formato em termos de gravações, não ocupa um ano… dou-me bem com esse formato. Fiz agora uma série, a “Sul” [que deverá estrear em 2019]…

Podemos falar disso a seguir?
Claro. Lá está , quando tentamos dominar não corre bem.

Antes queria perguntar-lhe como é que foi fazer de diretor de jornal na série da RTP “Filha da Lei”?
Gostei imenso desse universo, ainda tivemos algum tempo para fazer pesquisa mesmo em jornais e há ali um universo muito interessante, aquela zona perigosa dos jornalistas que é a zona da performance, o facto passa a ser entretenimento, e esse balanço pode ser inebriante, de repente percebo porque é que o José Rodrigues dos Santos estava histérico, no começo da Guerra do Iraque, a dizer que voavam bombas por todos os lados. Não havia bomba nenhuma a rebentar. E esta personagem era completamente vendida ao entretenimento, é fascinante esse mundo onde pintamos a realidade como queremos e nos estamos a marimbar para os factos.

"Acho que sou comunicativo q.b, mas na génese sou tímido. Inclino-me mais para o perfil tímido, mas a maior parte dos meus colegas atores acho que também são assim, acho que equilibramos a necessidade de ter público e a outra parte, que não põe a cabeça fora da toca e cujo trabalho é uma forma de espreitar o mundo."

Agora sim, falando da série “Sul”: que personagem é a sua?
O material é interessante, não trabalhava com o Ivo M. Ferreira há muitos anos, ele tem um lado de criação muito aberto, é fixe essa liberdade, de um realizador que permite ir longe, dá-nos o que queremos ao mesmo tempo que ele sabe bem o que quer.

Tem que ceder.
Sim, tem que ceder, é uma dança para todos, direção e realização é gestão humana. Na série faço de um bispo da igreja universal ou pelo menos dessas famílias. Gosto muito de personagens onde a verdade e a mentira se esbatem ou onde pelo menos é uma linha confusa… não são necessariamente seres humanos terríveis.

São pessoas complicadas.
Sim, ambíguas, e acho que isso é humano. Quando isso está escrito é muito interessante de explorar esse género de caminho, sem ser o bom ou o mau.

Fez também, este ano, “Credores”, do Strindberg, com encenação do Paulo Pinto.
Nunca tinha feito Strindberg e confesso que o material custou-me a aceitar.

Portanto, Strindberg não o excita particularmente.
Agora excita-me muito, mas no início… e lembro-me de ter a mesma reação quando comecei a ler Tchékhov, lembro-me de ser miúdo e achar aquilo tudo insuportável, aquela alta burguesia é muito cansativa, muitos problemas do primeiro mundo. E há um choque cultural, porque a origem não está no nosso país. Os ciúmes? bom, acho que são transversais ao mundo inteiro, mas neste caso é tudo tratado de uma forma particular. Costumava dizer a brincar que se esta peça fosse em Portugal não tinha pernas para andar porque ao fim de dez minutos eram tiros de caçadeira para os dois e o problema ficava resolvido. Ali não, ali sentam-se e falam.

Trocam-se os tiros pela intelectualidade.
Exatamente. Os tiros passam a ser intelectuais, têm igual violência, não nos matam fisicamente mas matam-nos intelectualmente. Aquilo era uma chacina entre três pessoas. E foi preciso ultrapassar os problemas da nossa leitura, que dizem que o Strindberg fez uma peça misógina, sempre com algum receio de estarmos a fazer um hino a uma certa masculinidade. O material é muito delicado. Não quero fazer uma leitura correta do que aquilo pode ser, o que acho interessante é pensar onde é que me coloco neste trio. Coloco-me no lugar do ex-marido violento que está a orquestrar uma vingança maquiavélica durante sete anos? Ou vou-me colocar neste atual marido sem ego, completamente inseguro no seu sítio da relação, dominado por ela? Ou vou segui-la a ela, porque ela não tem homens à sua altura ou está a ser esmagada por estes homens que, não estando à altura dela, a amarfanham? Aquilo era esgotante de fazer. Mas fascinante. São personagens muito velhas, mas que associo a uma zona da adolescência, onde as coisas são todas muito exacerbadas e onde dependemos profundamente do olhar do outro para dizer o que somos.

Passou por momentos desses na adolescência?
Sim, acho que sim, acho que fui um bom adolescente cliché, romântico, exacerbado, complicado.

O que é que o preocupava que os outros dissessem sobre si?
Não sei… acho que sou comunicativo q.b, mas na génese sou tímido. Inclino-me mais para o perfil tímido, mas a maior parte dos meus colegas atores acho que também são assim, acho que equilibramos a necessidade de ter público e a outra parte, que não põe a cabeça fora da toca e cujo trabalho é uma forma de espreitar o mundo. Li há pouco tempo uma citação fantástica do Oscar Wilde que diz: “Dá a um homem uma máscara e ele vai-te contar a verdade”.

“Acho que me tenho divertido mais com a idade”

Ainda era bebé quando esteve seis meses a viver no Texas.
Sim, com três ou quatro anos. Os meus pais foram lá terminar os cursos, o meu pai foi tirar uma especialização em engenharia de ambiente e eu fui com eles e lá moramos meio ano. Mas depois tive problemas nos ouvidos e voltei para Portugal, portanto não tenho qualquer memória dessa minha experiência americana.

Nada, nem uma imagem?
Só dos álbuns de fotografia e memórias inventadas, não acredito que sejam memórias reais.

Nasceu e cresceu em Lisboa, certo?
Sim, sou um lisboeta suburbano, sim. Cresci na Portela, Olivais, eram os bairros da altura.

Como é que foi esse tempo?
Estava-me a lembrar de uma coisa que um amigo escreveu há uns dias: “Além das coisas que são indizíveis e das coisas que não quero falar sobre a minha intimidade”… além dessas, posso falar das outras. Acho que me tenho divertido mais com a idade, mas tive uma infância algures entre o maravilhoso e o “não-me-posso-queixar”. E uma adolescência entre o “não-me-chateiem” e o “sai-da-frente”. Acho que as coisas se equilibraram mais recentemente, com o passar do tempo tenho-me divertido mais e melhor.

É suposto ser assim?
Não sei, para mim tem sido assim. Conheço pessoas que gostaram muito de um certo período, quem me dera ter outra vez trinta, gente que tem essa nostalgia, no meu feitio não há espaço para essa nostalgia, chuto sempre as coisas para a frente. Se tivesse que escolher uma época para viver escolhia uma que ainda não tivesse existido.

Hugo Macedo

Futuro, portanto. Porquê? O futuro pode assustar.
Porquê?

Pelas coisas que se passam no mundo.
Certo, mas e se olhar para trás, é assustador o que se passou, também.

É verdade.
Nesse sentido sou otimista. Neste contexto político atual onde as coisas estão obviamente complicadas… mas acho que já estiveram tão complicadas, mais complicadas, menos complicadas. E continuo a acreditar que a curva é ascendente, ou seja, há uma evolução e o que está exposto neste momento é uma série de formas de fazer as coisas que nos colocaram num sítio outra vez em que temos que as repensar urgentemente. O que estamos a viver neste momento não são causas, são sintomas, são consequências de ações lançadas há quarenta anos. O nosso cinismo e o nosso distanciamento da política… podíamos ter tido esta conversa há vinte anos e eu diria: “Não voto, acho a política um bocado estúpida, não acredito em ninguém, estão todos a enganar-nos”. Acho que isso se instalou de tal forma, ficámos tão cínicos em relação à realidade, que, de repente, apareceram algumas pessoas que começaram a verbalizar esse cinismo e a dizer “concordo com o vosso cinismo, há outra forma de fazer as coisas”. E houve quem ouvisse. Em mim, por exemplo, produziu logo um efeito de maior envolvimento naquilo tudo que está a acontecer. E uma aprendizagem, se calhar tardia, espero que não: a democracia é algo que nos pertence a todos.

Era mais alheado antes?
Tudo me interessava, mas se tivesse que ir votar provavelmente não ia. Hoje essa questão já não se põe, também há mais maturidade, espero. Eu já sou da geração pós-25 de Abril, para mim isto era tudo garantido, vivemos momentos super excitantes de evolução do nosso país. Mas esta importância da democracia é como um espaço público, é público e por isso todos têm uma quota-parte de responsabilidade, a democracia é isso. Ela, mais do que nunca, se tornou fascinante para mim, julgava que era uma pedra que não se mexia. Não é, de todo. Não podemos fazer de suíços a vida inteira, a lógica da neutralidade não dá, temos que dizer “estou deste lado” ou “estou daquele lado”. Sinto isso nas gerações mais novas, acho que estão muito mais acordadas para isto não descambar para qualquer sítio feio.

O seu otimismo também veio com a idade?
Não, é mesmo algo que me acompanha desde há muito, tinha uma piada quando era miúdo que era: “A luz ao fundo do túnel não é mais do que um contraplacado pintado de branco”. Mas, mesmo com esse medo em mente, o otimismo é-me natural. Se for contraplacado…

Já sabemos que é contraplacado.
Sim. Isso mesmo.

“Nova Iorque obrigou-me a endireitar as costas”

Fez o Conservatório.
Sim, e depois ganhei uma bolsa da Gulbenkian e fui para o Lee Strasberg Theatre and Film Institute [em Nova Iorque] mais três anos. Esta é a base e depois ando sempre nuns workshops, por aí.

Foi muito importante?
Sem dúvida. Talvez de formas diferentes, entrei muito novo no Conservatório, tinha 18 anos, acho que ainda não era focado o suficiente. O Strasberg dizia uma coisa muito gira que era algo do género: “Deem-me uma série de alunos quando têm quinze, até aos dezassete, só para lhe abrir as possibilidades, depois deixem-nos ir embora fazer a adolescência, não há paciência, e deixem-nos voltar já com 23 ou 24, já um bocadinho mais a saberem quem são”. Acho que o meu período no Conservatório foi muito a desenvolver experiência de vida e pouco trabalho efetivamente, muita desconcentração, muita hormona, desisti várias vezes, voltei e quando voltei já estava mais sereno. Acho que o Conservatório, tal como muitas escolas em Portugal, dá um belo ensino generalizado, mas não dá um método.

"Nova Iorque obrigou-me a endireitar as costas. Temos que falar alto, temos que dizer para sair da frente, temos que dizer o que queremos antes de explicar porque é que queremos, temos que dizer “quero água, estou cheio de sede” e não o contrário. "

E o Strasberg?
Também foi muito importante. Sobretudo porque já tinha tido esse processo de crescimento, fui para Nova Iorque com 27 ou 28 anos, já tinha tido experiência profissional, para o bem e para o mal, e é assim um privilégio muito grande, especialmente já tendo trabalhado, ter a oportunidade de voltar a não me preocupar com a execução. Ter o prazer de explorar o “não sei mesmo o que estou a fazer” é fantástico, explorar isso até às últimas consequências. Procurar o resultado é contraproducente na nossa área, os resultados têm que aparecer e são fruto de trabalho, mas parte do trabalho…

É ignorá-lo?
É não decidir quais é que são os resultados, é criar condições para ser surpreendido pelos resultados. O Strasberg trouxe-me essa oportunidade que ao longo da vida me tem feito pensar em muitas coisas.

E Nova Iorque, enquanto cidade, o que lhe deu?
É um sonho, é uma espécie de humanidade. É um símbolo de um mundo velho que foi todo para aquele lado, todos os bandidos, já não tinham sítio neste sítio e disseram-lhes que podiam tentar daquele lado, se sobrevivessem a chegar até lá, acho que a génese da América é isso.

Como a história da montanha, para onde ninguém deve ir porque nunca ninguém voltou de lá.
Sim, mas se chegares lá não há reis, a terra é de quem lá chegar, que pode fazer o que quiser, escolhe um bocado e faz o que quiser. A América é tudo isso, é a Europa velha, bandida, e ninguém mandará em ninguém lá, isto está tudo naquele povo. É um povo engraçado, um daqueles estudos disse que os gajos caíram para 58% na aprendizagem em matemática, mas continuam a ter auto-confiança como uma das suas três características mais fortes. O que é formidável na auto-confiança é que quando é só auto-confiança é insuportável, mas quando é acompanhada por outra coisa expande para zonas em que ainda temos que trabalhar muito. Portanto, Nova Iorque é esse aglomerado de gerações, sonho, esperanças, todos depositados naquele sítio apertado e malcheiroso, que agora já não é tão malcheiroso, mas que continua a ser muito apertado. É muito excitante e desgastante, porque toda a gente está lá está nessa cavalgada.

Deu-lhe auto-confiança?
Nova Iorque obrigou-me a endireitar as costas. Temos que falar alto, temos que dizer para sair da frente, temos que dizer o que queremos antes de explicar porque é que queremos, temos que dizer “quero água, estou cheio de sede” e não o contrário. Os portugueses fazem um bocadinho aquela coisa do “Sabes o que é? Saí agora de casa e está muito calor na rua, cansei-me muito e quero água, estou cheio de sede”. Isso em Nova Iorque é duro. É o “dá-me água” e acabou.

H2N, Hugo Macedo©, Ivo Canelas, www.hugomacedo.net,

Eça de Queiroz não se safava lá.
Pois não, porra.

Ainda em educação: era bom aluno?
Mínimos essenciais olímpicos e fui melhorando, mas sempre nos médios.

E nos intervalos?
Nos intervalos?

Sim, se era bom aluno nos intervalos da escola.
Sim… lembro-me dos intervalos de vinte minutos. E de gostar. Já não há, pois não?

Duvido muito.
Pois, é isso.

O que é que dava para fazer em 20 minutos?
Epá, comparados com os de cinco era um mundo, era estonteante. Os de cinco só davam tempo para sair de uma sala e ir para a outra.

“Sempre que tinha testes de matemática colecionava bichos de conta”

O que é que leu em miúdo?
O Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Marquez, foi assim uma coisa que me marcou, aquele universo tocou-me de uma forma especial. Mais tarde, O Ensaio Sobre A Cegueira, do Saramago. Li aquilo em português e em inglês, achei que o gajo devia escrever mais, devia ter um segundo livro. Nunca tinha sentido aquele desespero de ver um livro a acabar, então nos últimos capítulos lia uma página por dia.

Fazia essa gestão.
Sim, e ia a correr para casa, era uma coisa muito estúpida, porque é que não levava o livro comigo? Em relação aos filmes, em miúdo, o primeiro filme que vi na vida foi “O Gato Que Veio do Espaço”, do Walt Disney, que era um gato persa com uma coleira que voava… acho fixe, depois revi-o vinte anos mais tarde… nunca voltes aos sítios onde já foste feliz, já diz quem sabe. Vi uma vez um filme, não me lembro do título, mas há uma cena em que a mãe, cujo filho tinha morrido numa coisa qualquer trágica, reencontra uma caixa com um perfume dele. Era uma atriz extraordinária… e aquele plano apertado da atriz a abrir a caixa, a abrir os objetos, e quando ela abre aquele perfume, o que lhe acontece do ponto de vista emocional marcou-me. Era muito violento.

"Recentemente descobri, por exemplo, o Conan Osiris. Surpreendeu-me verdadeiramente, nunca tinha ouvido nada assim. Já tinha ouvido partes daquilo em vários sítios, mas nunca assim, tudo junto, acho que tem uma linguagem literalmente nova. A sensação que tenho quando ouço um artista assim, inovador, é quase como se sintetizasse não sei quantas experiências de não sei quantos anos numa só pessoa. É raro ver isso." 

Talvez ainda não tivesse idade para ver.
Pois… aquilo abalou-me mesmo, nunca tinha visto um ser humano, no mundo da ficção, a ir do zero aos mil tão depressa. Deu-me uma possibilidade que não conhecia, daí fui parar aos documentários do Strasberg e a uma espécie de cirurgia humana que mostra que é possível trabalhar coisas que nos levam para zonas diferentes. Esses documentários, quando tinha 16 ou 17 anos, foram muito importantes.

Foi mais ou menos nessa altura que percebeu que queria ser ator.
Sim, foi por aí que larguei o astronauta e pensei que se calhar tinha que fazer outra coisa.

Mas não houve nada no seu passado que o tenha levado a querer ser ator.
Não. Comecei a ver pessoas a representar e a pensar “mas eu posso trabalhar para fazer isto”. E isso interessou-me, o facto de ser trabalhável. Não sabia que se podia trabalhar para ser ator, achava que era algo que vinha com as pessoas, chegava-se lá e fazia-se o que era preciso. Depois percebi que não.

Ninguém nasce ator, é isso?
Acho que se nasce com sensibilidades, com inclinações para coisas.

Tinha algum hobby particular, em jovem?
Sempre que tinha testes de matemática colecionava bichos de conta, acreditava que eles me ajudavam com a matemática.

Ajudavam como?
Só a presença deles. Tinha que estudar matemática, coisa que abomino, então achava que se fosse buscar ao chão todos os bichos de conta que encontrasse e pusesse numa caixinha à minha frente isso me podia ajudar.

E tinha notas melhores?
Não, mas pelo menos enquanto estava a estudar matemática estava a olhar para os bichos.

Não era uma forma de estudar menos?
Não… bom, era, acho que era.

Era um colecionador de bichos de conta.
Sim, só para os exames de matemática.

“Trabalhei em casas de hambúrgueres, depois fiz leilões”

O Ivo foi o “Cosmo” no filme “Zona J”.
Nem eu me lembrava. Já foi há tanto tempo. Lembro-me que filmámos em Chelas, que o elenco era super diversificado. Lembro-me de estar em Chelas e ver uma coisa que me impressionou muito: um miúdo e um cão enfiados num quadrado, uma espécie de cerca de madeira com contraplacados à volta, estávamos no intervalo para almoço. A brincadeira deles consistia nisto: o miúdo agarrava a cauda do cão e dava-lhe pontapés. O que era alucinante nessa imagem era o olhar de ambos. Estavam alterados, estavam os dois num sítio de excitação violenta. Era uma imagem de abandono e de como, ao mesmo tempo podemos confundir “não estar sozinho” com “estar bem”. É o que me lembro melhor do filme.

[o trailer de “Zona J”:]

Que memória.
É verdade. O “Zona J” era um “Romeu & Julieta” versão Chelas, o argumento era linear, assim uma coisa boy meets girl, com pessoas de etnias diferentes, de extratos sociais diferentes, e depois são eles a tentar concretizar o amor dele e a sociedade a cair-lhes em cima.

Também fez o Joca, do “Fura-Vidas”.
Sim, foi uma experiência bastante iniciática, foi ainda antes de ir para Nova Iorque, foi o que me expôs mais mediaticamente e não estava propriamente preparado para isso.

[Ivo Canelas a contracenar com Miguel Guilherme em “Fura Vidas”:]

Aconteceu alguma coisa?
Não, era só não estar preparado, menor liberdade, estar um bocado mais exposto na rua, por aí. Ao mesmo tempo isso também me interessava, mas não sabia bem lidar com a situação. Divertimo-nos muito fazer aquilo.

Fez ainda “Os Filhos do Rock”. Portanto há uma ligação forte à música.
Sim, essa experiência foi engraçada porque revi o boom do rock em português e sou da geração que se habituou a ouvir música em português e já é um facto assente que qualquer um assume isso sem qualquer preconceito. Recentemente descobri, por exemplo, o Conan Osiris. Surpreendeu-me verdadeiramente, nunca tinha ouvido nada assim. Já tinha ouvido partes daquilo em vários sítios, mas nunca assim, tudo junto, acho que tem uma linguagem literalmente nova. A sensação que tenho quando ouço um artista assim, inovador, é quase como se sintetizasse não sei quantas experiências de não sei quantos anos numa só pessoa. É raro ver isso. A última vez foi com Bright Eyes, depois fico com um espírito de groupie muito grande, fico muito entusiasmado, quero mesmo conhecer estas pessoas, sonho com elas, temos conversas.

Já lhe aconteceu o contrário?
Musicalmente não.

E enquanto ator?
Sim, acho que sim.

Assim quase como uma espécie de stalking?
Não, isso não. Infelizmente, se calhar.

Recorda-se do seu primeiro trabalho?
Deve ter sido qualquer coisa como segurar uma lança num programa de televisão, fazer de guerreiro num programa qualquer, ou então a fazer de onda num espectáculo musical.

"Fiz de preservativo roto, num desfile do Filipe La Féria a celebrar o princípio do século ou o novo século. Guardei o diploma, ganhei cinco contos a fazer de preservativo. Também trabalhei em casas de hambúrgueres, depois fiz leilões."

Como é que se faz de onda?
Deitado no chão e a rodar para a frente e para trás.

Mas estava com um figurino azul?
Acho que não, isso era o meu sonho, acho que estava com um figurino preto. Também fiz de preservativo roto, num desfile do Filipe La Féria a celebrar o princípio do século ou o novo século. Os anos 70 vinham mesmo atrás de mim, que eram só motards, e eu ia à frente, tive a sorte de ser um preservativo e depois tinha um buraquinho para espreitar. Ia morrendo, na altura fumava e tínhamos que descer a Avenida da Liberdade toda até ao Rossio, só que com as motas atrás a fazerem barulho… porra. Guardei o diploma, ganhei cinco contos a fazer de preservativo.

Teve outros trabalhos, fora desta área?
Sim, tantos. Trabalhei em casas de hambúrgueres, depois fiz leilões.

Leilões?
Sim, em Nova Iorque há muito essa coisa, eles chamam-lhe landlocked blues, que são terrenos que não têm acesso, estão todos fechados, então vende-se barato e nunca se sabe onde é que é, é aquele sistema de “ir lá arriscar e pode ser que saia alguma coisa de jeito”. E quem compra, no bom estilo americano, é imediatamente rodeado de alguém que o leva para assinar o contrato, não vá ele mudar de ideias nestes dois minutos. Vendi também malas de senhora, muitos brinquedos, nos mercados, em Nova Iorque. Fiz aquelas coisas de time sharing, adorava aquelas aulas que eles me davam: “Toda a gente tem um cifrão na testa”. Adorava. E lembro-me de um casal que me aturou durante duas horas.

Isso onde?
Talvez no Algarve. Coitados, eles não queriam comprar nada, mas se eu conseguisse levá-los até ao stand de vendas, só aí é que ganhávamos qualquer coisa, então eles fizeram-me esse favor. Uns queridos.

Obrigado.
Não, obrigado eu.

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