[artigo originalmente publicado a 19 de dezembro de 2021, atualizado a 11 de setembro de 2022, após a morte de Javier Marías]
Com Javier Marías, já se sabe que a fasquia era alta. O autor nasceu em 1951 e morreu a 11 de setembro de 2022, aos 70 anos. Arrecadou prémios importantes e conquistou leitores com uma obra densa com poderes de encantamento. Os seus livros costumam ser longos, os cenários estão em constante debate e o autor nunca desce o nível. Em cada nova obra, o mesmo esmero, a mesma exigência de calibrar as histórias.
Marías é inteligência pura e brilho. Escrevia calhamaços e não se esgotava, lê-lo implica mergulhar sem vir à tona. Com uma prosa explicativa, maximalista, que vai ao detalhe, parece ter o intuito de dar tudo ao leitor, mesmo que manipulasse o tempo de forma a não lhe dar as cartas todas a priori.
O que parece transversal na obra de Marías é o apreço pelo desconcerto. Já em Não mais amores, livro de contos publicado em Portugal no fim de 2020, pudemos ver um mosaico a la Marías, com histórias que primeiro implicavam estranheza e depois familiarizavam o leitor. Nesta manipulação, o escritor espanhol era exímio: dava tempo ao leitor para se ambientar e de novo surge o desconcerto.
Nos contos, temos sempre um cenário idílico que leva com a ameaça da efemeridade. A acção faz-se por um conjunto de personagens formidáveis, como amores literalmente loucos, a sombra de um fantasma, uma atriz porno prestes a conhecer o seu parceiro de filmagens, um assassino por encomenda que tenta dissuadir quem o quer contratar, um escritor que aparenta ser pouco talentoso e que é tão viciado na própria dor que abandona a medicação que a atenua para investigar o seu efeito na existência, um homem que encontra o seu duplo e se apavora perante a semelhança. Em tudo, a vida existe em múltiplas camadas, e Javier Marías parecia gostar de explorar os cenários até às últimas consequências.
É isso que vemos em Tomás Nevinson, publicado pela Alfaguara no final de 2021, com tradução de Vasco Gato. Os leitores de Berta Isla (Alfaguara, 2018) estarão familiarizados com este nome. Berta Isla sucedeu a livros como Amanhã na batalha pensa em mim (1994) ou O teu rosto amanhã (2002-2007) e mesmo assim impressionou. Como um cão que fareja os cantos, Marías explorou a história de um casal, cujos membros dão o nome às duas obras, entre 1969 e 1990: Berta, que fica, professora de Filologia Inglesa; Tomás, que parte, agente dos Serviços Secretos.
Com os dois romances, temos perspetivas diferentes da mesma história, mas também o tempo difere, já que esta versão de Tomás vem depois dos eventos narrados em Berta Isla (o primeiro até 1990, o segundo a partir de 1997). No fim deste romance, parecia que a história estava contada, mas aqui Marías deu a voz a Tomás e vemos o que aí vem e o que houve entretanto.
Em nova empreitada, voltámos ao mundo conhecido, e neste volume vemos a ausência de Tomás a partir de dentro. Estamos sempre com ele, mas, no que nos é dado, não há como chutar para canto que o espião faça falta noutro lado e que tantas vezes impulsione o seu teatro e aceite viver à margem da sua vida. Cria personagens, vive-as, resolve os seus assuntos. Lá ao longe, tem Berta, e o pacto entre os dois é que as ausências são interlúdios. Não dão explicações ao outro e vivem apesar de, sendo um casal que não é casal mas cujo casamento parece inabalável.
As duas versões fazem-se quase à margem uma da outra. O tempo de distância obrigou os dois a fazerem a vida em separado. Para mais, sendo a de Tomás proibida, obrigatoriamente oculta, cabia a Berta também não dar detalhes sobre a sua. Pode ler-se em Berta Isla:
“Berta Isla sabia que vivia parcialmente com um desconhecido. E alguém que está proibido de dar explicações acerca de meses inteiros da sua existência acaba por sentir-se autorizado a não as dar sobre qualquer aspecto.” (p. 15)
Tomás fora recrutado pelos Serviços Secretos britânicos para cumprir funções de infiltrado e a narrativa é feita da sua ausência na vida de Berta. A sua espera é de tal forma atroz que, para o leitor, parece apenas desperdício. É que nada indica não apenas quando é que Tomás vem, mas principalmente que venha. Aliás, numa grande parte da narrativa, Berta parece esperar mesmo que tudo indique que o fará em vão. Assim, Marías enfrenta os despojos que a vida de alguém deixa quando já não se faz presente, os espaços maculados pela sua ausência, o desespero que é a irrevogável passagem do tempo (até do leitor, que vê Berta desperdiçar décadas).
Assim, ao ler-se Berta Isla, deparamo-nos com uma mulher que aceita não saber com quem está casada. A faceta desconhecida do marido ia ficar para sempre na escuridão e ela poderia apenas imaginar o que seria, sempre sem certezas. Como as dúvidas estão sempre lá, o desconhecimento também está e, assim, a própria presença de Tomás, quando volta, já vem regada da sua ausência, e a sua aproximação sublinha o afastamento. Com as décadas, separam-se em tempo e em lugar e parece sobrar mais a imagem ou a expectativa de um casal do que um casal. Ainda desconhecidos um para o outro, tornam-se, mais do que isso, fantasmas um do outro.
Com tão pouca vida concreta a uni-los, um testemunho e a evidência das condições, há uma altura em que Berta acaba por ser convencida da morte do marido, mas a vida não muda muito porque já se fazia de ausências. O tempo, que talvez não cure tudo, servia para atordoar e “a ausência perde a sua prolongada sensação de provisoriedade e assume-se como definitiva e irreversível” (p. 334). Assim, para a esposa, “Tomás Nevinson passou a ser um morto na estrita acepção da lei, em Espanha e em Inglaterra” (p. 339).
A ausência torna-se final, perene, e Nevinson fina-se para Berta. A partir daqui, a sua existência cai num buraco negro e assistimos ao conflito da interiorização de uma ideia, ao mesmo tempo que vemos o desperdício de uma vida. Finda a leitura de Berta Isla, a história parece estar contada.
Contudo, depois de se explorar a vida de quem sente a ausência, entramos no mundo de quem parte, podendo ver o mundo a partir dos olhos de Tomás. Assistimos à espera e ao sofrimento de Berta, mas chegamos a 1997, a palavra é do marido e mostra-se que ainda há passos a dar, findo o caminho. Após o afastamento das missões, Bertram Tupra, ex-chefe de Nevinson, desafia-o a levar a cabo uma nova missão: deslocar-se a uma cidade para identificar uma mulher de ascendência espanhola e norte-irlandesa que, dez anos antes, participara em atentados do IRA e da ETA, em Barcelona e Saragoça. Assistimos às dúvidas de Tomás, mas também percebemos o impulso. Afinal, parece que “é insuportável estar fora depois de se ter estado dentro”. E aqui cogita-se uma reacção por parte de Berta, que já tinha vivido décadas de ausências, mas afinal a ausência amansou, tornou-se quotidiano, e Tomás parte em missão, sendo outra vez outro que não ele. Ele, que durante tão pouco tempo pôde ser Nevinson.
Aqui, a experiência de leitura é particular: estamos e não estamos com Tomás. Dadas as condições dos trabalhos dos Serviços Secretos, temos várias ausências em simultâneo, dado que ele mesmo parece uma ausência de si mesmo, tal é a quantidade de tempo que dedica a ser outros. Tomás tem de fazer a sua vida, mas em pano de fundo existe o mundo que deixou à espera. Imagina-o cristalizado, mas sabe que tem de avançar nos interlúdios.
Temos o agente no centro da acção, mas Tomás Nevinson estará longe de ser um romance sobre espionagem. Como tudo em que Marías tocava, é um romance sobre o alcance e as implicações morais dos actos, muitas vezes vistas pelo prisma das suas consequências, como já acontecera em Os Enamoramentos. Com isto, vemos acções em que as personagens se debatem com a própria moral, como pesar a pertinência de um crime, como um assassinato, para uma mais-valia para a humanidade. Aqui, dá-se o exemplo do que teria sido um acto que resultasse na morte de Hitler, poupando a de milhões. E não é que as divagações tenham resposta, mas valem pelas perguntas que colocam e pela forma como forçam a criação de uma perspectiva.
Em todo o lado, há um confronto moral. Ao lado de Tomás, sente-se a angústia da decisão, e as convulsões de Espanha na segunda metade do século passado não existem à margem do drama. Não são instrumentalizadas para os compor, mas justificam também as personagens. Outrora o radicalismo justificou tudo, mas o tempo impõe a calma, os agentes ficam mais piedosos. E, mais do que isso, também eles entendem que nada tem importância permanente. As vinganças implacáveis começam a sucumbir à ideia de que o tempo leva tudo e que até o ódio perece.
Nevinson é, como habitual em Marías, altamente introspectivo. O autor gostava de ir aos cantos, de pôr em causa, de explorar cenários. No que escrevia, tudo era hipótese. Assim, a narrativa avança devagar, mas o leitor cai lá dentro, perdendo-se na lonjura. Interessa tanto acompanhar as dúvidas, as considerações e as hesitações quanto os traços gerais da história, até porque as dúvidas também são a história. Cada romance de Marías parece um tratado contra a superficialidade, já que cada dilema moral é uma hipótese de se mergulhar num abismo interior.
Mais uma vez, as frases são longas, as explicações urgem e são dadas, levantam-se mais questões e vêm mais hipóteses, e ler é sempre o caminho para entender. As personagens, também em movimento, parecem ter muito a explicar, e em simultâneo parecem justificar-se e assumir um pacto, como quem não deixará nada por contar. Ainda assim, as arestas parecem limadas e, mesmo que não haja uma utilização instrumental da prosa, de forma a que cada bloco de texto seja funcional na acção, a verdade é que o é na constituição psicológica e emocional das personagens, mais do que na linha narrativa. Como poucos, Marías enfeitiça, e fá-lo explorando situações até às últimas consequências com personagens que sabem a gente.
Os romances e os contos de Marías nunca são apenas o fio de história e os capítulos traçados de forma instrumental para compôr os passos. No que o autor nos dá, há muito mais do que arquitectura. Marías preencheu sempre os espaços com hesitações e julgamentos, e também o fez com os vazios. Numa literatura altamente intelectualizada e voltada para o interior do indivíduo e para as condições em que este se encontra, manteve sempre um cuidado extremo com a fluência e a cadência que obrigam o leitor a imergir.