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"O teatro foi uma necessidade de libertação. Gostei muito de ser ator, ganhei prémios e tudo. Mas isso não é importante e agora digo que não vou representar mais", João Mota
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"O teatro foi uma necessidade de libertação. Gostei muito de ser ator, ganhei prémios e tudo. Mas isso não é importante e agora digo que não vou representar mais", João Mota

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

"O teatro foi uma necessidade de libertação. Gostei muito de ser ator, ganhei prémios e tudo. Mas isso não é importante e agora digo que não vou representar mais", João Mota

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

João Mota no adeus à representação, aos 78 anos: “Estamos no fim de uma civilização, só não vê quem estiver distraído"

Vai continuar a encenar, mas como ator confirmou a despedida dos palcos. Está preocupado porque "as pessoas têm medo de viver agora". Entrevista com o fundador do Teatro da Comuna.

Ao fim de mais de seis décadas de trabalho, João Mota prepara-se para sair de cena, mas não parece desgostoso ou saudosista, até porque vai continuar como encenador. A peça da despedida chama-se Freud e o Visitante (Le Visiteur), texto de Eric-Emmanuel Schmitt que deverá ir a cena em fins de abril — esteve para ser em fevereiro, depois 27 de março, Dia Mundial do Teatro, mas as regras da pandemia não têm permitido avançar.

Esta semana, à conversa com o Observador, João Mota falou do ponto final, contou-nos o que aprendeu como ator, encenador e professor, lamentou o que considera ser o fim da civilização tal como a conhecemos, defendeu que o teatro serve para inquietar. “A criação artística não está longe de uma verdade que é a vida”, sublinhou, e por isso anda preocupado com os efeitos da pandemia no comportamento das pessoas. Voz colocada, timbre jovem, insistiu: “Cada um anda sozinho, contente com o seu telemóvel na mão, e isso é contra a vida.”

Por vezes descrito como anarquista sem partido, chegou a diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II em 2011, por três anos, nomeado pelo então secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, e por isso lhe pedimos agora que comentasse as políticas culturais dos últimos anos. Sem apontar nomes, referiu-se aos apoios do Governo durante a pandemia como “esmolas” dadas aos artistas.

Recebeu-nos na companhia de teatro que ajudou a fundar em 1972 na Praça de Espanha, A Comuna – Teatro de Pesquisa, um velho casarão que pertence à Câmara de Lisboa (antigo Colégio Alemão e Lar de Mães Solteiras), nestes dias cercado pelo pelas longas obras de remodelação daquela zona da cidade. Carlos Paulo, Manuela de Freitas, Melim Teixeira e Francisco Pestana estiveram com ele no arranque, depois do efémero grupo Os Bonecreiros.

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“Estamos vivos e sabemos que viver é muito perigoso”, dizia o manifesto da companhia — maio de 1972. “Que nos perdoem os que nos queriam assustados e envelhecidos, arrastando o cadáver dos nossos sonhos por haver.” E de repente passaram-se quase 50 anos ou uma centena de espetáculos com textos de Sófocles, António Ferreira, Brecht, García Lorca, Tenessee Williams, Harold Pinter, Natália Correia, Hélia Correia e tantas criações coletivas.

Filho de um comerciante e de uma modista, João Manuel da Mota Rodrigues nasceu em Tomar a 22 de outubro de 1942 e passou a viver em Lisboa aos três anos. Quando lhe perguntámos quantos anos tem de carreira, hesitou em marcar o início em 1957 — quando entrou para o teatro Nacional D. Maria II, então dirigido pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro e onde fez a estreia absoluta na peça O Processo de Jesus, de Diego Fabbri — ou antes até, quando aos 10 anos participou nos programas infantis de Maria Madalena Patacho na Emissora Nacional ou quando aos 13, nos inícios da RTP, fez a peça O Mar, de Miguel Torga, ao lado de Germana Tânger com direção de Rui Ferrão.

Em todo o caso, conta pelo menos 64 anos de representação. Fez um breve estágio no Festival de Avignon, em 1959, através de um bolsa do então Instituto Francês. Foi militar na Guerra Colonial entre 1966 e 1968, em Angola, e regressou a Portugal por pouco tempo, onde chegou a ter aulas com o ator e encenador argentino Adolfo Gutkin. Uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian levou-o a Paris em 1970 para dois anos no Centro Internacional de Pesquisa Teatral do célebre Peter Brook, que considera um dos seus mestres (Grotowski será outro).

Deu aulas durante 35 anos do Conservatório, que ajudou a integrar na Escola Superior de Teatro e Cinema em 1987 e de onde se reformou como presidente do conselho diretivo. Gerações e gerações de intérpretes aprenderam com ele. “Não pertence a nenhuma escola no sentido técnico do termo”, escreveu a investigadora Eugénia Vasques em João Mota, O Pedagogo Teatral (2006). “Intuitivo e criativo, pertence informal e empiricamente a uma aristocracia de pedagogos como João de Barros, António Sérgio, Agostinho da Silva.”

João Mota diz que nunca pertenceu a lóbis e só chegou a diretor do Teatro Nacional D. Maria II porque tinha obra feita

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O que é que aprendeu em mais de 60 anos como ator?
Sabe o que me preocupa? Hoje toda a gente diz que é ator. Gosto de telenovelas, não sou contra, mas há quem se diga ator só porque se fez uma telenovela, sem ter tido uma formação para dar liberdade à espontaneidade e ao talento.

Mas costuma dizer que o artista não pode viver só da técnica.
Com certeza, mal seria. Já viu a Maria João Pires a tocar? Há muita gente a tocar Chopin, mas ela toca melhor que os outros. Há qualquer coisa do eu interior, ela fica dentro do piano, é genial naquela entrega. Tem de se ter uma grande técnica, mas a técnica não se vê, porque a gente não pode passar por cima das emoções, dos sentimentos, das nossas vivências, em louvor de uma técnica.

A técnica deve ser impercetível porque há um esforço nesse sentido ou desaparece sem o artista se aperceber?
Vamos ver o que é a técnica. No ator, é uma questão de colocação de voz e do trabalho com o corpo. Articulações, músculos, extensões, o grande exercício do corpo. Não é fazer musculação, é deixá-lo livre, conhecê-lo bem. Tem de estar livre, para acabar com as tensões. Depois, o grande segredo é a respiração, antes da colocação de voz. Sem respiração, não há vida. Quando uma criança nasce tem de ser ver logo se respira. É a vida. Respiro e renasço. Se me preparo para dormir, mesmo com muitos problemas na cabeça, tenho de relaxar, ficar. No dia seguinte, tenho de acordar muito contente e alegre, porque é mais um dia de vida, mais uma oportunidade de crescimento, de aprender e de dar.

Acorda contente todos os dias?
Mal de mim. Deixei uma das pessoas com quem vivi porque acordava sempre maldisposta. Para mim, é impossível. Então tenho mais um dia de vida, mais uma oportunidade, e vou acordar aborrecido porque está mau tempo ou porque me dói o corpo? Claro que dói, basta ter nascido para doer, sabemos que a morte habita em nós desde que nascemos. Aí está a criação: fugir exatamente ao fantasma da morte.

Pode-se dizer que essa foi uma das coisas que aprendeu como ator?
Claro! Sabendo, no entanto, que a morte existe. Não é fugir à morte, é saber que ela está lá, mas criar energia, olhar para os outros, aprender com eles, dar-lhes alguma coisa. Essa relação entre o novo e o velho… Acabou porquê? Porque estão uns para um lado e outros para o outro, já não há mistura. Essa charneira entre o velho e o novo é essencial para estarmos vivos.

Está a falar de criação artística?
Não só. A criação artística não está longe de uma verdade que é a vida. A criação artística não é independente do quotidiano. A gente vive, vai ao supermercado, tem vizinhos em cima e em baixo, tem o bairro, vai aqui e ali. Essa ligação é essencial.

"Passaram-se duas, três horas, a minha irmã desistiu e foi para cima. Eu continuei na porta da rua a precisar que ele viesse. Eu tinha a necessidade de ter um pai. Por isso é que fui muito católico, refugiei-me no Cristo."

O teatro não é evasão?
Não é, é inquietar e alertar, e para isso temos de estar vivos no quotidiano. Quando eu for um militante do quotidiano, e se tiver talento para ser um criador, o que eu não posso fazer! A manifestação artística e a cultura em geral foram sempre mal-vistas pelos governos ditatoriais, como na União Soviética, por Hitler, Mussolini, Franco, Salazar. Porque a verdade absoluta é a deles. Ora, a função do criador é inquietar e alertar para que cada um depois escolha em liberdade. O criador não passa uma receita a dizer como é que se toma o comprimido. Sou contra as receitas. Sou muito religioso, fui católico, hoje sou um católico que acha que os padres devem casar e que as mulheres devem poder dar missa, por isso é que gosto muito deste Papa e das encíclicas do João XXIII. Fui-me afastando porque a Igreja tem de ir ao princípio e perceber que se baseia na liberdade e no amor, como qualquer religião deveria fazer. O Homem hoje anda cada vez mais divorciado da fé. O que é a frase “com fé, moves montanhas”? É o acreditar, o ser essa energia, o crescimento da pessoa na sociedade e com a sociedade, mas não contra ninguém. Ou seja, é preciso um sentido muito grande de amor e de liberdade. Não faço teatro para ser reconhecido. Claro, quando faço, estou-me a exibir e as pessoas pagam para me ir ver exibir, mas não faço por exibição.

Faz porquê?
Ah! Encontro-me comigo próprio. É um exercício maravilhoso para a alma. O Pessoa escrevia para quê? Para se exibir? Não. É uma necessidade de se revelar.

Diz que as pessoas andam sem fé…
Pior: as pessoas perderam a noção dos valores, por isso é que digo que o ator deve ser um militante do quotidiano. Não estou a falar de política quando digo “militante”. O ator deve exercer, deve ir à mercearia, ao cinema, aos sítios, conhecer as pessoas como elas são. Não é exercer-se como doutor ou como funcionário ou como ator ou músico. Não. É um ser humano que ali está em cada situação da vida comum. Esse lado de humanidade, de humanismo, foi-se perdendo. Parece que vivemos numa jangada e salve-se quem puder. Isso assusta-me muito.

Nesse sentido, o teatro falhou.
Não. O Homem é que falhou e o teatro falha quando o Homem falha. Cuidado. O teatro é uma coisa abstrata, vive do Homem. Se o Homem está em crise, o teatro está em crise. O teatro sempre esteve em crise. Com certeza que também sou um teórico, mas toda a teoria que tenho é a partir de uma prática. Só posso fazer teoria a partir de uma prática e depois volto à prática. O Peter Brook dizia-me muitas vezes: “O método é não ter método”. Quem diz isto tem de ter um grande método. De outra forma, ficamos com palas, como os burros. Passei por várias situações, em vários países, e o teatro estava sempre em crise, sempre se disse que estava para acabar. A crise está no Homem. Bendito o dia em que o teatro não esteja em crise, porque aí já não preciso de nada e cada um é um criador. Mas, atenção, ao contrário daquilo em que cheguei a acreditar, o teatro não faz revoluções. Percebi isso durante o serviço militar em Angola. Tinha essa mania. O teatro ajuda, mas não faz revoluções.

Parece que a internet faz revoluções, como na Primavera Árabe. Diz-se que as redes sociais e as mensagens é que mobilizaram milhões de jovens.
Se é assim, tenho de aceitar. Não sou contra nem a favor. Terá sido a maneira de mobilizar a sociedade nesses países.

Como é que está o teatro em Portugal? Ligado à vida?
Estamos todos em luta e a trabalhar muito. Depois há uns que têm mais talento, outro menos, como em todas as artes e em todas as profissões. Cuidado: o ator, como o músico ou outro artista, tem de ter sorte. Depois a que famílias pertence, a que lóbis, é outra coisa. Não sou contra a televisão ou as telenovelas, mas a verdade é que os atores são escolhidos como se fossem para um matadouro. “A menina tem olhos azuis, faz esta personagem; é corcunda, faz aquela; é baixo, faz o outro.” As pessoas são objetos.

Talvez porque na indústria televisiva não haja muito tempo para a criação.
São objetos. O teatro é uma arte artesanal e estou lá com o corpo todo, o resto é uma arte mecânica.

Ambas são válidas?
Tudo é válido. Mas os jovens são chamados como objetos para os papéis na televisão. Têm formação, mas depois fazem uma novela e já são atores.

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Mas como é que está o teatro em Portugal? Não é o teatro afetado pela pandemia, é o teatro. Está muito cerebral ou perto da vida?
Não posso falar do teatro assim, há grupos que estão mais e outros que estão menos. Estamos a falar de pessoas, que fazem teatro. Depende de como estão na vida, como são, que anseios têm. Estão a fazer teatro por fazer, só para responderem a subsídios ou ganhar dinheiro? Ou vivem seriamente esta doença de alma que é ser ator e ser encenador? Se é uma necessidade interior, tem de ser acompanhada por formação, se não, é só exibição. Por isso é que gosto muito de dar aulas, porque aprendo muito. Aprendo mais com eles do que com o atores. Ou podem ser atores a fazer workshops. Estão mais disponíveis, porque não estão a ter que demonstrar o que sabem. Quando se despem, são maravilhosos. Criação sem disponibilidade é uma arte mecânica.

"Não sou contra a televisão ou as telenovelas, mas a verdade é que os atores são escolhidos como se fossem para um matadouro. A menina tem olhos azuis, faz esta personagem; é corcunda, faz aquela; é baixo, faz o outro. As pessoas são objetos."

Que diferenças nota entre os alunos de há 30 anos e os de agora?
Às vezes, culturais. Antes do 25 de Abril, como tudo era proibido, tínhamos necessidade de ler sobre o estrangeiro, de saber o que se passava lá fora. Íamos ver o Antonioni ou o Fellini e o Visconti, no fim reuníamo-nos e discutíamos o que tínhamos visto. Havia tertúlias, que eram essenciais. Hoje cada um vê para si, masturba-se intelectualmente e isso é um susto. Perdeu-se a noção de família, coletivo, comunidade, comuna.

É uma visão de esquerda?
Não. A relação afetiva, de estar com os outros, já vem do Shakespeare, que escrevia em função dos atores que iam interpretar. Não misturo a ideologia com isto, porque senão parece que não houve um antes. Porque é que se passa da Idade Média para o Renascimento? Porque houve uma grande peste em todo o mundo. As coisas não podiam ser iguais, como agora não será igual. Não é já de imediato, mas daqui a 10 anos será tudo diferente e não apenas o que seria com a normal passagem do tempo. Isto da pandemia foi muito marcante em todo o mundo.

E como será daqui a 10 anos?
Não sei, nem estou interessado em saber. Estou interessado no que faço hoje para amanhã. Saudades, só do futuro. Para isso, tenho de estar em dia com o hoje.

Sendo assim, podemos falar do futuro imediato que é a sua despedida dos palcos.
Mas vou continuar a dar aulas, a encenar peças. Já cheguei a estar três ou quatro anos sem representar, porque não tenho tempo. Fui professor durante 35 anos, fiz a Comuna, que vai fazer 50, tenho um filho, com que fiquei tinha ele dois anos e meio, e que tem hoje 43 — é o Carlos Bernardo [produtor na Comuna].

Porquê sair agora de cena?
Já estava para acontecer há bastante tempo. Não tenho tempo para tudo. Gosto muito de dar aulas, não vou deixar, até estou a meio de um curso. Todos os anos dou um curso de três ou quatro meses, todos os dias, das 6 às 9 da noite. São alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema, alguns já com o mestrado, que vêm perceber outras maneiras de estar no teatro, o que é a investigação e a pesquisa. Isso parte de nós individualmente. O campo onde se mexem eles todos tem de ser de uma grande abertura, têm de saber muito bem a disciplina, os exercícios físicos, de voz, etc., para ficarem libertos para fazerem investigação. O Platão dizia que a criança, antes de aprender a ler e a escrever, deve viajar. Viajar para sentir o outro, em acordo ou em contraste com ele, mas também a viagem interior. O Leonardo Coimbra, ministro da Instrução na I República, dizia que a primeira educação deve ser artística. 1917, ministro da Instrução, porque naquela altura a escola era para instruir e a família era para educar. Hoje temos Ministério da Educação e tiramos responsabilidade ao núcleo familiar. Tive uma família muito forte, vivia com a minha mãe, a minha tia, a minha avó e a minha irmã. No dia em que nasci, a minha mãe deixou o meu pai.

E quando o João tinha três anos vieram para Lisboa.
Exatamente, porque o meu pai podia aborrecê-la, metia-se em negócios. Ele morreu com cancro aos 48 anos, mas sempre o fui vendo. O meu pai pregou-me a maior partida que se pode fazer. A mim e à minha irmã, que a partir daí nunca mais quis saber dele. Tinha os meus sete anos, nunca mais me esqueço. A minha mãe disse-me “hoje vem cá o vosso pai, para irem juntos à Feira Popular”, que era aqui onde hoje fica a Gulbenkian. Eu morava na Elias Garcia. A minha mãe veste-nos muito bem e vamos para a porta da rua esperar o meu pai, para ele não ter de subir. Passaram-se duas, três horas, a minha irmã desistiu e foi para cima. Eu continuei na porta da rua a precisar que ele viesse. Eu tinha a necessidade de ter um pai. Por isso é que fui muito católico, refugiei-me no Cristo.

"Gostei muito de ser ator, ganhei prémios e tudo. Mas isso não é importante e agora digo que não vou representar mais."

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Portanto, o sentimento religioso foi um amparo.
Sim. E daí vem também a vontade de me encontrar muito comigo. Com oito anos, ficava sentado numa arca e chegava a estar uma hora comigo mesmo. A minha irmã tinha as amigas, a minha mãe era modista e tinha 20 aprendizas, a minha avó tomava conta de nós e fazia a comida, a minha tia tomava conta das aprendizas e a minha mãe cortava os fatos e provava às freguesas. Eu jogava à bola, tinha amigos, isso tudo, mas habituei-me muito a estar sozinho. Até me chamavam nomes: “Lá está ele sozinho, parece um bicho-do-mato”.

Ainda hoje é assim?
Bastante. Não tenho problemas em estar sozinho durante vários dias, quanto mais não seja, tenho sempre o silêncio. No silêncio, fazemos viagens. Já viu as viagens que os poetas fazem?

Ir para o teatro…
Aí é onde deito tudo fora, é um encontro. Temos essa necessidade. Porque é que as pessoas vão ao psiquiatra? Precisam do encontro. Dantes, confessavam-se. O teatro foi também uma necessidade de libertação. Gostei muito de ser ator, ganhei prémios e tudo [Prémio de Melhor Ator em 1980, da Associação Portuguesa de Críticos, por exemplo]. Mas isso não é importante e agora digo que não vou representar mais. Ultimamente, também fiz pouca coisa. Da última vez tive um papel pequenino, eu próprio escrevi, foi há dois anos.

"Até há muito boa gente que é paternalista e isso é uma forma de racismo, mesmo que inconsciente. O ser paternalista e a falsa caridade também podem ser manifestações de racismo. Também acontece na minha profissão, claro."

A pandemia teve alguma coisa a ver com a decisão?
Não. Esta peça que vamos fazer, Freud e o Visitante, ganhou o Prémio Molière [1994]. Conheci a peça porque a minha irmã, que vive em França, fazia parte do júri. Estive para fazer a peça na Comuna, mas depois não fiz. O João Lourenço apresentou a peça há 20 anos no Teatro Aberto [A Visita, 2001], o [João] Perry fazia muito bem. O tema é muito interessante a resume coisas de que estamos aqui a falar.

A Comuna irá estrear, “Freud e o visitante”,do dramaturgo franco-belga Eric-Emmanuel Schmitt, com encenação de João…

Posted by Teatro da Comuna on Thursday, January 14, 2021

É um simbolismo forte: querer terminar a carreira como ator no papel de Freud, o pai da psicanálise.
Não é por acaso que é esta peça. Diz coisas muito importantes, levanta grandes problemas sobre o querer ou não querer, se há qualquer coisa superior a nós, nem que seja o cosmos ou o superar-me a mim próprio. Só há sagrado porque há profano. As pessoas pensam que uma coisa exclui a outra, mas não, temos tudo em nós. Isso está tudo na peça. É maravilhoso. Os dias tenebrosos, os lençóis da angústia, como se diz na peça, não têm de nos revoltar. Essa continuidade de nos querermos encontrar é essencial. Neste momento, as pessoas não procuram, é uma época de pouca procura, a procura de sermos melhores. Choca-me. Isso e as guerras políticas. Já viu, um miúdo de sete anos que vai para a escola depois de o pai ter sido ofendido em público por causa da política? Deve ser horrível. Andam todos à porrada na política e depois vão almoçar juntos. Como é? Querem que acredite? Não. Queria os mais qualificados, os melhores, para a governação, como me dizia o [antigo presidente da Gulbenkian] Azeredo Perdigão, que vinha muito aqui à Comuna e ficava horas a conversar comigo.

A sua descrição é a de uma sociedade em decadência.
Claro, estamos no fim de uma civilização, só não vê quem estiver distraído. Os gregos, os egípcios, os maias, foram civilizações que duraram dois mil anos. O Homem não acaba, claro, vai-se transformando.

Essa visão desencantada é de agora ou sempre a teve?
Não é uma visão desencantada, é encantada, estou a pensar no valor da transformação.

"Somos um país pequeno, as pessoas adoram a pequena intriga, a conversa, a traiçãozinha. Ponho tudo em causa, gosto de ser subversivo, já me chamaram isso várias vezes, mas tenho a minha individualidade, não pertenço a grupos."

Quais foram as peças de que mais gostou até hoje?
Gostei muito de trabalhar com atores, muito, muito.

E como ator?
Tive grandes encenadores antes da Comuna. O Ribeirinho, a Amélia Rey Colaço, a Laura Alves, a Palmira Bastos, trabalhei na televisão com o Vasco Santana e o António Silva. Quer dizer, venho de outro sítio. Como fui muito cedo para o teatro, como o João Lourenço ou o João Perry, percebo a evolução que foi dada à representação. Nisso, sou orgulhoso: fui um dos grandes transformadores, por via do que aprendi com o Peter Brook, porque antes não se sabia o que era improvisação, não se fazia nada disso em Portugal. Lia-se o texto e marcava-se à direita e à esquerda, até se comprava às vezes as encenações com as marcações francesas e o ensaiador é que era português. Depois havia também o dramaturgista. Hoje, mal do encenador que não saiba também fazer a dramaturgia. Qualquer pessoa deveria saber ler um texto e fazer a respetiva análise, é uma coisa que tem de se aprender no liceu. Agora, no 12º ano, que é o antigo 7º ano, mal sabem fazer a análise de um texto. Leram Gil Vicente por um acaso e de Teixeira de Pascoaes mal ouviram falar, não conhecem A Castro, O Judeu… Ora, o francês conhece os seus autores e não precisa de ter andado na faculdade. Os alemães também, os ingleses também, o português não.

Alguns dos autores que refere são de leitura obrigatória no ensino secundário.
É de cruz, leem os resumos. Olhe, na Escola Superior de Teatro e Cinema os alunos compravam a banda desenhada do Horácio e do Homero e eram assim que liam as obras.

Ainda não disse qual é a peça mais marcante em quase 70 anos de teatro.
Tanta coisa… A peça que mais me apaixona será a próxima, que não é esta do Freud, será a seguinte. Há anos que ando com o Fausto na cabeça, pode ser que seja. O dinheiro que temos condiciona as peças que podemos fazer. Há peças do Shakespaeare que não posso fazer porque levam 20 atores.

Que atores o marcaram?
Manuela de Freitas, Carlos Paulo. E os outros que me fizeram crescer por quererem aprender e perder-se. Eu tenho de me perder para poder ganhar.

Há antigos alunos seus que o definem como um professor muito exigente e um ótimo pedagogo.
Pois, eu até para mim próprio sou muito exigente.

Mas considera-se autoritário?
Sou contra as ditaduras. É uma autoridade consentida, que parte dos dois lados. Não é por serem mais novos e estarem a aprender. Também dei aulas a colegas mais velhos que eu. Vou aprendendo com eles, mas há coisas que vou sabendo também.

"Os ciganos têm culpa ou nós é que fomos deixando? A pior coisa que há para uma sociedade é a criação de guetos, sejam eles intelectuais ou ao nível social, económico e político."

Porque é que em 1972 não ficou em França com Peter Brook?
Ele perguntou-me se eu queria voltar para Portugal e eu disse que queria. Não era só um problema de saudades. Havia coisas a fazer aqui. O teatro universitário em Portugal teve uma importância extrema antes do 25 de Abril, houve coisas espantosas. Investigavam, faziam tudo o que podiam. Eu sabia que podia ser útil, havia coisas a fazer em Portugal. Começámos a criação coletiva, fizemos A Ceia [1974, Prémio Casa da Imprensa], textos do Alcorão, Brecht, Pessoa, Goethe, Pedro Homem de Mello, tudo no mesmo espetáculo. O que importava era o que queríamos dizer. No fascismo há uma grande aliança entre o Estado e a Igreja, eu era contra essa aliança. Fiz a guerra em Angola, sabia muito bem que essa aliança estava toda errada. Estive lá, vi como os negros eram tratados. Houve um que era o Manuel, prisioneiro, nunca mais me vou esquecer. Fizemos-lhe o interrogatório no meio do mato e depois tivemos de o mandar para Luanda. Vem o helicóptero para o buscar. Mas ele não chegou a Luanda. Foi atirado. Não pode ser, não pode ser. E os outros a quem mandavam cavar uma cova e depois eram regados com gasolina. Como é?

Tem acompanhado a polémica sobre o colonialismo português? A ideia de reinterpretar o que aconteceu e até de destruir estátuas e monumentos que possam simbolizar a colonização.
Os portugueses foram piratas, claro. Os ingleses e os holandeses fizeram o mesmo.

Mas há quem se queixe de que a mentalidade colonialista continua e está na base de comportamentos racistas hoje.
Infelizmente, permanece. Até há muito boa gente que é paternalista e isso é uma forma de racismo, mesmo que inconsciente. O ser paternalista e a falsa caridade também podem ser manifestações de racismo. “Coitadinho, é tão bonzinho, até representa bem.” Também acontece na minha profissão, claro.

Deve-se deitar abaixo um monumento que represente o colonialismo?
Não, porque faz parte da nossa história. Então também temos de deitar abaixo o Mosteiro dos Jerónimos. Na minha terra, que sou de Tomar, temos de nos desfazer da estátua de Gualdim Pais, o chefe dos Templários. Por favor! Cada um teve o seu tempo e a sua época, de acordo com a história da humanidade. O que não tem razão de existir são aqueles que hoje continuam a ser racistas, como aqueles que são contra os ciganos. Os ciganos têm culpa ou nós é que fomos deixando? A pior coisa que há para uma sociedade é a criação de guetos, sejam eles intelectuais ou ao nível social, económico e político.

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Quer falar de política?
Mas como? Tenho de dizer mal de quem ou bem de quem?

Isso é consigo.
Não é a minha maneira de ser. Por isso é que dirigi o Teatro Nacional D. Maria II quando Passos Coelho era primeiro-ministro e por isso é que tenho o feitio que tenho, o viver sozinho, no bom sentido da palavra, de estar à margem de certos ambientes. Somos um país pequeno, as pessoas adoram a pequena intriga, a conversa, a traiçãozinha. Ponho tudo em causa, gosto de ser subversivo, já me chamaram isso várias vezes, mas tenho a minha individualidade, não pertenço a grupos.

Quem se mantém à margem acaba ostracizado.
Pois, mas isso é problema deles. Nunca estive em grupo nenhum. Nos jornais chegaram a dizer que aqui na Comuna fazíamos sexo com crianças. Inventaram tudo. Já passei por isso.

Sente-se ostracizado?
Sinto, até ao nível dos subsídios, mas não tenho paciência para regatear.

Então como é que chegou a diretor de um Teatro Nacional?
Fiz uma escola: a Escola Superior de Teatro e Cinema.

Convidaram-no porque tinha obra feito, é isso?
Claro.

Como é que vê as ajudas do Governo aos artistas durante a pandemia?
É como tem sido com tudo: são esmolas. Se o teatro já era o parente pobre, na pandemia voltou a ser. Mas cuidado: há muita gente que se aproveita das crises para aparecer. Há uns que aparecem de repente, pedem tudo e mais alguma coisa, nem sabemos quem são. No cinema também há bons e maus realizadores, pois agora todos aproveitam para pedir. Quem é que vê os critérios, quem é que analisa? É como nos subsídios. Não há critérios. Há quem escreva muito bem e saiba apresentar uma boa proposta para um subsídio.

Isso é uma crítica ao Governo, que não manda fiscalizar.
Não me interessa se é PS ou PSD, é-me igual. Porque é que o ministro há-de saber tudo? Tem de saber dialogar, reunir, conversar e entender o que não sabe, para ir refazendo sempre, a pensar o futuro. A mediocridade existe muito, muito. As necessidades estão desfasadas. Para falar de política cultural tenho de pensar no para quem: é para todos, para todas as pessoas, não é só para a classe intelectual, mal intelectual, que hoje tem um mestrado quando os mestrados são menos importantes agora do que as licenciaturas há uns anos.

Não é fácil compreender esse ponto de vista…
Esta tudo desfasado. É isto. O ministro pode dar mais dinheiro, mas vai dar mais dinheiro a quem e para quê? E os que pedem o dinheiro, querem dinheiro para quê? Para haver política cultural, tem de haver os dois lados.

Em 2017 disse numa entrevista que gostava muito do presidente Marcelo Rebelo de Sousa e da governação da “geringonça”. Mantém?
Tive dois bons presidentes: Eanes e Sampaio. E um péssimo, que foi Cavaco Silva. O Soares vinha aqui ver as peças com a mulher, sempre próximo, mas aí é outra coisa. Sempre tive amigos de todos os partidos, qual é o problema? Atenção que muitas vezes conhecemos mal as pessoas e não admitimos que elas possam mudar, crescer, evoluir. Hoje votaria Marcelo, tem conseguido unir os portugueses socialmente, não digo partidariamente. “Ah, mas ele dá muitos beijinhos, aquilo não faz sentido.” Ainda bem que dá, não são beijos populistas. Há uns anos, não me encaixava, de tal maneira que fui pelo [Sampaio da] Nóvoa [nas presidenciais de 2016]. O Nóvoa foi meu aluno. Estudou na Suíça, mas já levava daqui um bacharelato da Escola Superior de Teatro e Cinema. O António Costa também foi meu aluno, na [Escola Secundária] Francisco de Arruda.

Qual disciplina?
Expressão dramática. Havia uma secção da Francisco de Arruda que funcionava no Conservatório.

António Costa era bom aluno?
Já não me lembro. Ele é que me disse um dia: “Sabe que foi meu professor?”. Já não me lembrava. Ele era amigo do Salvador, filho da Helena Vaz da Silva e do Alberto. Desse lembro-me, porque continuei a vê-lo ao longo dos anos.

Concorda com quem diz que os políticos são bons atores?
Não acho graça nenhuma a essa frase. O Pessoa diz que “o poeta é um fingidor” que “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Quer dizer que não mente, porque é a dor que sente de verdade. Não podemos fugir das emoções e dos sentimentos. Isso é uma mania intelectual sem sentido. Quando a gente perder o lado humano, o nosso instinto que está ligado ao lado animal, e o outro instinto, que está ligado às artes, o que é que resta? As pessoas têm medo de viver agora. Com a pandemia, então, fecharam-se e ficaram cheias de medo. Não pode ser. Ficaram preguiçosas, passaram a estar mais tempo na cama, ficaram mais preguiçosas com a vida. Começa a preocupar-me tudo isto. Não temos o direito de ser preguiçosos com a vida. A disciplina é das coisas mais importantes na vida. O professor, o pai, a mãe, o encarregado de educação, têm uma grande responsabilidade e parece que essa responsabilidade está a desaparecer. Cada um anda sozinho, contente com o seu telemóvel na mão, e isso é contra a vida.

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