É quase milagrosa a força com que, ainda hoje, se sente o embate da leitura de Maquiavel. Aquela energia eletrizante que não esmorece com os séculos, que nos atinge com o vigor entusiasmante das coisas eternamente novas faz da obra de Maquiavel, e sobretudo de O Príncipe, um daqueles mistérios que só as ideias mais acertadas nos trazem: o mistério das ideias em que a profundidade nunca se esgota, de onde é sempre possível retirar um olhar novo que nos parece igualmente certo e arguto.
Não é segredo para ninguém que O Príncipe motivou as teses mais contraditórias e inspirou as ideias mais díspares; será, também, um lugar tão comum quanto o anterior a ideia de que a sua separação entre a política e a moral fundou a política moderna. De facto, e mesmo que não possamos chamar, com segurança, imoral a Maquiavel, podemos encontrar em O Príncipe a potência daquilo que Schmitt tão bem expressou no Conceito do Político: a ideia de que, tal como a moral trata do Bem e do Mal ou a estética do Belo e do Feio, a política tem o seu objeto próprio e as suas regras. As ações dos Reis de França podem não ser moralmente louváveis e serem boas decisões políticas, da mesma forma que a misericórdia cristã pode servir aos Homens e não servir às sociedades.
Quer atribuamos a Maquiavel a paternidade da ciência exclusivamente política, quer façamos dele o primeiro doutrinador da raison d’état, quer o vejamos simplesmente como o libertador da ponderação política, amarrada às peias cristãs, o ponto assente é que Maquiavel é, pelas ideias, pelo estilo, pelo raciocínio desconcertante e pelas conclusões frias, tão pouco mascaradas, uma autêntica novidade política, tanto o princípio como a verdadeira representação daquilo que é uma ideia moderna de política.
Isaiah Berlin, no seu estudo que introduz a edição de O Príncipe agora publicada pela Relógio d’Água, dá exemplo das várias desformalizações modernas do pensamento maquiavélico. É verdade que podemos ver em Maquiavel uma semente do republicanismo e outra do despotismo mais privado de escrúpulos, é também claro que Maquiavel tanto pode ser visto como imoral, no sentido em que não subordina as ações políticas a um quantum minimum de ordem de valores, e também como o recuperador de uma moralidade antiga, romana, em que a glória e a excelência são acima de tudo virtudes cívicas, públicas, e a verdadeiro ordenamento das ações é configurado pelo engrandecimento conseguido para as cidades.
Ao mesmo tempo, porém, é bastante claro que nenhuma destas interpretações consegue ser inteiramente satisfatória. A verdade é que as instruções dadas não se destinam exatamente ao engrandecimento da cidade, mas ao benefício do Príncipe. Nesse sentido, não haverá moral mais individualista, mais contrária ao espírito público, mesmo que esse público não seja entendido como o conjunto dos cidadãos, mas sim como um espírito da cidade, do que aquele que vemos no Príncipe. Também não é exatamente satisfatória a tese de que Maquiavel é o responsável pela descoberta das leis próprias da política. A verdade é que o texto de Maquiavel não tem o nível de abstração suficiente para podermos falar de regras. Este é um texto de exemplos, à maneira do texto de Montesquieu sobre a decadência do Império Romano ou dos Ensaios de Montaigne, e o exemplo está a meio caminho entre a regra e a experiência: admite que é possível encontrar semelhanças entre as situações antigas e as presentes, mas não a ponto de esquecer as suas especificidades, que tornam o exercício político essencialmente interpretativo, não especulativo. Podemos encontrar no passado as causas para as vitórias e para as derrotas, mas não podemos garantir que elas são universais porque a especificidade de cada momento impede que elas se tornem de facto regras.
Esta noção, tão clara no texto de Maquiavel, torna até estranho o âmbito do seu texto. Um tratado político que não tenha regras de conduta, mas que trace um objetivo, que descreva uma cidade de Deus ou uma utopia, é compreensível nos seus propósitos; um espelho de príncipes que disserte sobre as obrigações do governante e traga uma série de regras de conduta é também compreensível. O Príncipe, porém, é mais estranho e mais misterioso. Não tem exatamente uma filosofia, um plano geral sobre o modo de governar que subordine os vários exemplos e mostre como, em certas circunstâncias, pode ser melhor a clemência e noutras a vingança para o Bem dos povos, por exemplo; ao mesmo tempo, os seus exemplos não são suficientemente atomizados para adquirirem o estatuto de leis independentes, de postulados universais que todos os príncipes que querem preservar ou obter o controlo dos Estados devem observar.
Isaiah Berlin, no já referido estudo, explica que a importância de Maquiavel para os Estados contemporâneos está no facto de, ao mostrar que é possível encontrar vários tipos de moralidade e até de moralidade pública, contribuir com isso para a construção do pluralismo. Mesmo esta tese, porém, parece-nos ligeiramente forçada. Maquiavel mostra, de facto, que há morais públicas diferentes, também mostra que estas são incompatíveis: que é impossível levar uma cidade à glória a partir da lógica estóico-cristã da clemência, e que uma cidade voltada para as virtudes públicas exigirá que a moral privada dos cidadãos também valorize a excelência sobre o amor ou a justiça sobre a misericórdia.
A intuição de Isaiah Berlin de que Maquiavel, de certa forma, recupera uma moral romana, pré-cristã, parece-nos não só certeira como frutuosa. De facto, não só o ambiente intelectual da época, o mundo dos Médici, de Niccolò Niccoli e de Poggio, dos grandes caçadores renascentistas de textos romanos perdidos, mas também os interesses de Maquiavel – como o seu comentário à primeira década de Tito Lívio mostra – e a própria configuração política das cidades italianas, tudo isto mostra que há em Maquiavel uma ligação óbvia ao mundo romano. E se, influenciados pelas interpretações de Fichte ou dos grandes admiradores da Revolução Francesa, vários académicos se têm dedicado a ver a costela republicana de Maquiavel como um sinal de modernidade, outros também a têm associado ao seu interesse pelo mundo romano e, mais especificamente, à atmosfera política que o precedeu.
Ora, todos estes elementos permitem pensar também num Maquiavel, mais do que moderno, anti-moderno. Maquiavel já viveu depois de Cosme Médici se ter apoderado da república florentina e parece-nos legítimo pensar que, embora a complicada relação como Lorenço Médici já esteja mais que estudada e não ignoremos a admiração de Maquiavel pelo Magnífico, a sua apreciação da república esteja mais voltada para a restauração da república florentina do que para os peregrinos caminhos da Revolução Francesa.
Que Maquiavel é o grande pensador moderno da política parece-nos inquestionável; por outro lado, é bastante claro que, entre as intenções de Maquiavel não estaria a de se tornar o grande pensador moderno da política. O estatuto de Maquiavel é adquirido, em grande parte, a partir de uma peculiar interpretação do passado que faria dele uma espécie de restaurador, quer da moralidade pública romana, quer da configuração política de Florença a que ele já não assistiu. Não que, na sua interpretação, O Príncipe não pudesse fazer parte da república, tal como César fez; aquilo que está em causa é uma configuração social que afasta o príncipe da cristalização monárquica, fundada sobre um Cristianismo político, para a qual Florença se encaminharia.
A superioridade que Cícero, pela boca de Cipião, encontra na República romana é, precisamente, a ausência de princípio. A República não é, segundo o De Republica de Cícero, nem monárquica nem democrática, mas uma junção dos dois princípios.
Ora, esta é precisamente uma das características mais vivas do pensamento de Maquiavel. Não só na sua configuração mais clássica e no paralelo que, sobretudo nos Discorsi, são feitos entre os estados do seu tempo e a República Romana, mas acima de tudo no modo como esta combinação estrutura todo o pensamento de Maquiavel.
Aquilo que nos parece mais chocante e, ao mesmo tempo, mais forte na prosa de Maquiavel é precisamente aquilo que contraria todo o pensamento político moderno. De Rousseau a Hobbes ou de Bodin e Bossuet a Voltaire há, em toda a teoria política moderna, um elo entre a legitimidade do governo e o bem-estar da população. Isto é, uma ideia de que o princípio importa, de que há uma moral política (mesmo que seja uma moral exclusivamente política) no sentido em que a justiça do modo de governo é, também, legitimada por uma correspondência no modo de agir da população. Se forem libertados da prepotência e do obscurantismo, os Homens perceberão que a liberdade é melhor e viverão mais felizes – há um nexo entre a justiça do governo e a bondade que traz. Ora, o que Maquiavel põe a nu é a completa ausência de princípio na política. Isto não significa exatamente separar a moral da política ou torná-la amoral – é um pouco mais subtil do que isso.
O que nos parece verdadeiramente anti-moderno em Maquiavel é a perceção de que o modo como o povo reage não tem nada que ver com a justiça das ações. Não se trata sequer, simplesmente, da ideia de que cada povo, e em cada circunstância, tem uma conceção de justiça diferente, à maneira de Montesquieu. O que é verdadeiramente anti-moderno em Maquiavel é a perceção de que a reação dos cidadãos pode julgar justo o injusto e bom aquilo que a prejudica. A ideia de que a legitimidade é dada pelo bem dos cidadãos é destruída por Maquiavel e, nesse sentido – como, aliás, Rousseau percebeu bem – O Príncipe não poderia ser um golpe mais forte nas ilusões democráticas. O elo entre o povo e o governo assenta, em toda a modernidade, na ligação entre a justiça e a vontade popular.
Não é preciso irmos aos casos ingénuos, que acreditam que a vontade do povo é sempre boa; mesmo nos casos mais complexos a ligação entre o povo e a justiça é fundamental, porquanto é a opressão que justifica a apresentação de um governo como injusto, ou a felicidade de um povo o argumento para a legitimidade de um governo. Aquilo que, no Príncipe, choca verdadeiramente a nossa mentalidade é a forma como a justiça e a aceitação da coerção estão desligadas. Nesse sentido a Modernidade, por mais que tenha partido de Maquiavel, caminhou em sentido contrário àquele que nos é apresentado no Príncipe. E isso é suficiente para fazer de Maquiavel, a par do grande pensador político moderno, o grande pensador anti-moderno.