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João de Almeida Dias / Observador

João de Almeida Dias / Observador

Martina: imigrante ilegal por obrigação, depois por escolha e agora "pela graça de Deus"

Martina entrou ilegalmente nos EUA depois de o filho ser preso em El Paso. É mesmo ao lado de Ciudad Juárez, mas é um sítio seguro. Há quem exija um muro — mostrando o quão fácil é passar a fronteira.

Reportagem em El Paso e Hudspeth, Texas (EUA)

Quando soube que o seu filho ia para a prisão, Martina Gómez virou costas a Ciudad Juárez, no México, e atravessou de vez a fronteira até El Paso. Não foi a correr, não se escondeu, não teve medo. Martina tinha um visto de turista feito há quase 10 anos que ainda era válido para entrar nos EUA por quatro meses. Assim, atravessou uma das três pontes que ligam as duas cidades irmãs, mostrou os seus documentos ao guardas americanos, e passou a fronteira calmamente naquela manhã de fevereiro de 2011.

Martina tinha outra escolha, mas não quis arriscar. “O meu visto já só tinha quatro meses de validade e só não fui renová-lo porque tinha receio que mo negassem”, explica. Quando Martina obteve o visto, em junho de 2001, a passagem pela fronteira era mais facilitada. Porém, com os atentados de 11 de setembro desse ano e com o pico da violência entre os vários cartéis de droga que tentavam controlar Ciudad Juárez, a passagem tornou-se cada vez mais complicada. “Se eles me negassem um visto, eu não ia poder ver o meu filho à prisão”, diz. “E não ver o meu filho estava fora de questão.”

Dos três filhos que deu ao mundo, o mais novo é o seu preferido. “Ele nunca me faltou”, assegura, emocionada. “Mas cometeu um erro e teve de pagar por ele.” José tinha 17 anos quando foi atravessou ilegalmente a fronteira para os EUA, juntando-se aos seus dois outros irmãos. Antes de deixá-lo partir, pediu aos filhos mais velhos que tomariam conta do mais novo. Mas isso não aconteceu, como agora recorda Martina, e José começou a andar por caminhos que não conhecia. “Ele começou a andar com más companhias, conheceu umas pessoas que não tinham nada a ver com ele mas que lhe convenceram de que a vida era fácil, que viver não custava”, suspira. “Os jovens acham sempre isso.”

José foi condenado a dois anos de prisão por ter roubado um rádio de um carro. Durante esse período, Martina visitava-o sempre que podia. Viam-se através de um vidro e falavam um com o outro por telefones. Não houve uma única vez em que Martina não saísse da prisão lavada em lágrimas — mas também tinha a certeza de que não se arrependia das escolhas que tinha feito.

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Em Ciudad Juárez, Martina fazia peças de automóvel numa fábrica — ali conhecidas como as maquiladoras —, onde trabalhava uma média de 10 horas por dia para ganhar apenas 900 pesos (42 euros) por semana. “Passava o tempo a trabalhar e o dinheiro quase nunca me chegava”, queixa-se. Martina insiste que foi a prisão do filho que a levou aos EUA e não o trabalho. Ainda assim, reconhece, está “muito melhor” neste lado da fronteira. Assim que assentou malas em El Paso, Martina foi à procura de empregos na internet com ajuda do filho do meio. Quando viu que uma empresa de limpezas estava à procura de pessoas, ligou-lhes. A entrevista ficou marcada para o dia seguinte.

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Martina Gómez vive ilegalmente nos EUA desde 2011 (João de Almeida Dias / Observador)

“Eu não tenho documentos.” Foram essas as primeiras palavras que Martina disse na entrevista de emprego, mas o responsável pela empresa não fez caso. “Isso não vai ser problema”, respondeu-lhe. A proposta veio a seguir: Martina trabalharia nove horas por dia, sendo que receberia por cada uma delas 7,25 dólares, ou seja, o salário mínimo federal. Sem contrato, sem benefícios, por debaixo da mesa. Martina ficou radiante com a proposta e aceitou-a. Os quatro meses do seu visto passaram e ela passou a fazer parte dos cerca de 12 milhões de imigrantes ilegais que vivem nos EUA. Trabalha seis dias por semana, das 02h00 às 11h00, divindo-se entre limpezas a uma pizzaria e a uma clínica.

Martina nunca se candidatou a qualquer visto. “No dia em que eu fizer isso eles põem-me nas listas deles e mandam-me diretamente para o México”, assegura. “Assim é que nunca mais consigo voltar.”

Quando chegou o dia da libertação do seu filho mais novo, não sabia bem o que pensar. É verdade que o rapaz ia poder retomar a sua vida. Mas também era certo que isso só poderia acontecer no México. Assim que saiu detrás das grades, José foi deportado para Ciudad Juárez, engrossando as fileiras dos 2,4 milhões de imigrantes ilegais deportados de 2009 a 2014, um milhão dos quais condenados por crimes. Em 2015, os números do Immigration and Customs Enforcement (ICE, equivalente ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras português) indicam que as deportações desceram: 235 mil pessoas foram retiradas do país por aquela agência. Porém, estes números não têm conta outras deportações, como as que são feitas pelo Department of Homeland Security.

"É muito triste quando as pessoas cometem estes erros. Custou-me muito ver o meu filho partir para longe de mim outra vez. Mas há que ser realista. Se ele fez mal, é normal que o mandem para fora do país.”
Martina Gómez, 51 anos, imigrante ilegal nos EUA, sobre o seu filho que foi deportado para o México

Seja como for, há uma certeza: Barack Obama é o Presidente dos EUA que mais deportou imigrantes ilegais na História dos EUA. Daí ter merecido a alcunha deporter-in-chief (deportador-em-chefe) entre aqueles que estão à sua esquerda.

“A maioria dos mexicanos não vêm para aqui fazer mal a ninguém”, assegura Martina. “E é muito triste quando as pessoas cometem estes erros. Custou-me muito ver o meu filho partir para longe de mim outra vez. Mas há que ser realista. Se ele fez mal, é normal que o mandem para fora do país.”

Cinco anos depois de ter chegado e três depois de o filho ter sido deportado, diz que não tem outra opção senão ficar em El Paso. “Se eu for para lá arrisco-me a perder tudo o que conquistei aqui e eu não me posso dar a esse luxo”, diz. Com o dinheiro que ganha nas limpezas, Martina ajuda o filho José, que trabalha numa maquiladora; e também os pais, ambos acamados. Há já um ano que, com a ajuda de um irmão que também vive nos EUA, paga um salário ligeiramente acima do que se ganha nas fábricas a uma muchacha de Ciudad Juárez que toma conta dos dois idosos.

“Se estivesse no México, não tinha tempo para tratar deles, nem dinheiro para ajudá-los”, sublinha. Assim, tomou a decisão de estar longe dos pais e auxiliá-los em vez de estar perto e assistir impotente ao avançar das suas idades. Tomou a decisão de cabeça fria, mas por vezes ela aquece e fá-la chorar. “O meu pai já está muito mal, já não responde quando lhe falo ao telefone, já não sabe quem está à volta dele”, diz, a limpar as lágrimas. “Ele vai morrer ali daquele lado da fronteira e eu não vou estar lá para enterrá-lo.”

Poderá El Paso ser a cidade mais segura dos EUA?

Apesar de ambas as cidades estarem separadas por uma vedação de cerca de cinco metros de altura e que se estende ao longo de mais de 200 quilómetros, é impossível perder Ciudad Juárez da vista quando se está em El Paso. Mesmo quando o vento desce das montanhas em volta e levanta consigo as areias do deserto de Chihuahua, as maquiladoras, os seus armazéns e algumas casas do outro lado são bem visíveis.

Até há pouco tempo, Ciudad Juárez era a cidade mais perigosa do mundo. De 2008 a 2011, mais de 9 mil pessoas foram assassinadas enquanto vários cartéis de droga tentavam conseguir o controlo total da cidade. O pico foi em 2010, quando foram mortas mais de 3600 pessoas — fazendo uma média de 10 mortos por dia. Por ser junto à fronteira com os EUA, aquele é muitas vezes um ponto estratégico para passar a droga produzida na América do Sul e na América Central para traficantes e consumidores norte-americanos. Em 2011, o número de mortes desceu consideravelmente, para 797. Desde então, o número tem descido gradualmente, para 312 em 2015. Por detrás desta queda estarão vários factores, nem todos unânimes, como o aperto do cerco da polícia e do exército mexicano aos gangues ou a vitória do cartel de Sinaloa, de El Chapo Guzmán, sobre os seus rivais.

CIUDAD JUAREZ, CHIHUAHUA - JUNE 29: A man walks along the border fence between the U.S. and Mexico on June 29, 2007 in the Anapra area of Ciudad Juarez, Mexico. This area is a popular crossing spot for immigrants to ilegally cross into the United States because houses are close to the border on the south side and the highway is close to the north side. (Photo by Chip Somodevilla/Getty Images)

El Paso (EUA) e Ciudad Juarez (México estão divididos por uma vedação de mais de 200 quilómetros (Chip Somodevilla/Getty Images)

“Esses anos foram duros”, recorda Robert Cerecerez, de 46 anos, paramédico e chefe do quartel de bombeiros de Socorro, em El Paso. “Todos os dias havia gente que era baleada e depois deixada ao pé do controlo fronteiriço nas pontes.” Nessas ocasiões, as autoridades de norte-americanas eram obrigadas a chamar uma ambulância e os feridos iam para um hospital em El Paso. “Muitos deles faziam isso de propósito, porque tinham receio de ir para um hospital de lá que fosse controlado pelo gangue rival”, explica.

Robert fala no pretérito perfeito porque, insiste várias vezes, é do passado que se trata. “Isso já passou tudo, agora as coisas estão muito mais calmas”, assegura. Ao lado de Robert, o bombeiro Jason Swahlen abana a cabeça e ri-se. “As pessoas de fora acham que El Paso é uma zona de guerra, mas isto aqui sempre foi muito calmo”, explica. E diz que a ajudar esta imagem esteve Donald Trump, quando no seu discurso de anúncio de candidatura traçou um perfil da imigração mexicana. “Eles estão a mandar pessoas que têm muitos problemas e que estão a trazer esses problemas até nós”, disse o republicano em junho de 2015. “Eles estão a trazer drogas. Eles são violadores. E, alguns, vou assumir que são boas pessoas.”

Um mês depois de Donald Trump ter dito aquelas palavras, o American Immigration Council publicava um relatório onde dizia que “os imigrantes têm uma menor probabilidade de serem criminosos do que quem nasce no país”, chegando inclusive a dizer que “uma maior imigração está associada com menores taxas de crime”. Para sustentar essa tese, o American Immigration Council refere que entre 1990 e 2013 a população de estrangeiros a viver nos EUA passou de 7,9% para 13,1%, ao passo que o número de imigrantes ilegais disparou dos 3,5 milhões para 11,2 milhões. “Durante esse período, os dados do FBI demonstram que a taxa de crimes violentos caiu em 48% — o que inclui a queda das taxas de agressão, assaltos, violação e homicídio. Da mesma forma, o crime contra a propriedade decaiu 41%, incluindo a queda de taxas de roubo de automóveis, roubos e assaltos”, lê-se naquele relatório.

“As pessoas de fora acham que El Paso é uma zona de guerra, mas isto aqui sempre foi muito calmo.”
Jason Swahlen, bombeiro em El Paso

Pelo menos em El Paso, as estatísticas dão razão ao bombeiro Jason Swahlen e ao American Immigration Council e não confirmam a tese do candidato presidencial Donald Trump — desde há alguns anos, começando até nos anos em que Ciudad Juárez era o palco de uma violência sem precedentes. De acordo com a Congressional Quartely, que todos os anos analisa a taxa de crime nas cidades dos EUA, El Paso é até recordista: entre 2009 e 2014, foi a cidade com mais de 500 mil habitantes mais segura do país. Para 2015, os números ainda estão indisponíveis, mas sabe-se que o número de homicídios no ano passado foi de 17. Em Chicago, foram 468.

Adolpho Telles, líder do Partido Republicano de El Paso — apoiante de trump, embora com algumas diferenças — reconhece estes números. “Se houver um homicídio aqui, a polícia chega muito depressa e em força”, diz, com uma ponta de orgulho. “Além disso, temos uma enorme concentração de guarda fronteiriça, há uma vigilância constante da fronteira entre El Paso e Ciudad Juárez.” Por cima de tudo isto, El Paso é a casa da segunda maior base militar em solo norte-americano, o Fort Bliss. “É preciso ser muito estúpido para querer vir diretamente a El Paso para causar problemas”, refere.

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Adolpho Telles, líder do Partido Republicano em El Paso, reconhece que a cidade é segura mas está preocupado com a economia local (João de Almeida Dias / Observador)

Ainda assim, Adolpho diz que a cidade texana é que mais sai a sofrer com a relação de proximidade com Ciudad Juárez. “Tudo o que nós temos aqui para responder a estes problemas é pago com o dinheiro dos nossos impostos”, queixa-se. Adolpho, que tem 67 anos, já está reformado. Atualmente, além de fazer dinheiro com um rancho onde em tempos já criou gado e onde agora vende águas subterrâneas que são usadas na produção de petróleo, é dono de um bar-restaurante em El Paso. É a Rosa’s Cantina, imortalizada pela canção de 1959 de Marty Robbins. Esta conta a história de um pistoleiro que se apaixonou por uma mexicana chamada Felina, que “rodopiava” na Rosa’s Cantina. Quando descobriu que ela já tinha par, desafiou-o para um duelo. Matou-o e fugiu pelas traseiras do restaurante a galope num cavalo que só parou nas “más terras” do México. Tempos mais tarde, quando achava que era seguro voltar para El Paso, foi alvejado por “cinco cowboys montados a cavalo”. Acabou por morrer nos braços de Felina. Ainda hoje, há forasteiros perguntam pela música quando chegam ao restaurante, que é gerido pela filha e pelo genro de Adolpho.

Mas, verdadeiramente, a vida profissional de Adolpho — que se descreve como “culturalmente hispânico” e que tem ascendência mexicana, espanhola, irlandesa, alemã e nativo-americana — foi feita a trabalhar como contabilista para a consultora internacional KPMG. Por defeito profissional, Adolpho começa a imaginar os gastos que há deste lado da fronteira por causa do outro.

Começa pelas escolas. “Muitas vezes, os imigrantes ilegais vêm para aqui e trazem os filhos deles para estudarem nas nossas escolas. Além disso, há crianças que todos os dias atravessam as pontes de lá para cá só para irem às nossas escolas”, explica. Em 2013, o condado de El Paso gastava quase 1,8 mil milhões de dólares com as suas escolas: entre 3123 condados era o 63º com maiores despesas educacionais. Depois, Adolpho passa para os hospitais, recorrendo ao que ouve dizer. “Há mulheres grávidas que, quando estão quase a dar à luz, são deixadas mesmo em frente à nossa guarda fronteiriços. Eles reparam no estado delas e por razões humanitárias têm de levá-las aos nossos hospitais”, conta. “E depois quem é que paga a conta do hospital? Elas têm o filho, vão-se embora e deixam um monte de dívida para nós pagarmos com os nossos impostos.”

Por fim, fala da economia local. “Se há pessoas dispostas a pagar o salário mínimo de 7,25 dólares à hora a um assentador de tijolos que ganha sem declarar, isso são más notícias para o tipo que esteve cá a vida toda e que devia ganhar 14 dólares à hora com esse trabalho”, diz. Em 2014, o rendimento mediano por agregado familiar nos EUA era de 53 482 mil dólares anuais. Em El Paso, o número descia então para os 40 782 dólares por ano. Como empresário, Adolpho recusa-se a dar emprego a quem não tem documentos. “No nosso restaurante tínhamos uma senhora mexicana há vários anos connosco, trabalhava muito bem, gostávamos muito dela”, conta. “Um dia, ela teve um problema por causa do filho, que tinha entrado aqui ilegalmente. Ela teve de ir tratar de tudo ao México e foi aí, durante esse processo, que percebemos que ela não estava cá legalmente”, recorda. Segundo Adolpho, aquela funcionária tinha usado um cartão de identidade norte-americano que pertencia à sua irmã gémea, que vive legalmente em El Paso. “Custou-nos, mas tivemos de cortar relações com ela.”

Em El Paso, há pressa para votar contra Trump

Melissa Lopez, advogada e diretora do Diocesan Migrant and Refugee Services, recebe todos os dias pessoas à sua porta que lhe contam histórias como esta e tantas outras. Melissa, ela própria filha de imigrantes mexicanos, é especializada no sistema de imigração norte-americana e diariamente ajuda e aconselha aqueles que estão sem documentos nos EUA e que querem regularizar as suas situações.

Nem sempre a resposta agrada a quem está do outro lado da secretária. Por exemplo, pegando no caso de Martina, acima referido, esta teria de voltar para o México e estar fora dos EUA durante 10 anos para poder depois poder entrar nas longas listas de espera para conseguir um visto de residência e autorização para trabalhar. Outra solução seria Martina pedir ao irmão, que está nos EUA legalmente, para fazer um pedido em seu nome. “Mas aí tinha de esperar 20 anos”, acrescenta Melissa.

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Melissa López diz que Donald Trump motivou os imigrantes latinos em El Paso a obterem a cidadania para poderem votar (João de Almeida Dias / Observador)

Apesar de o serviço de Melissa ter sempre bastante procura, o último ano tem sido excecionalmente movimentado. À medida que Donald Trump ia avançando na corrida à Casa Branca e ganhando terreno de uma forma que poucos pensavam ser possível, foram bater-lhe à porta muitos imigrantes, na maioria mexicanos com vista de residência, para saberem o que era preciso para serem cidadãos dos EUA. “Há pessoas que estão naturalmente muito preocupadas com a possibilidade de Donald Trump ganhar as eleições e que apesar de nunca terem ligado a política nas suas vidas agora acham que têm de votar”, explica. “É irónico, mas ele motivou a participação eleitoral junto daqueles que ele mais quer ver fora do país.”

Donald Trump diz no seu programa que quer “remover logo desde o início os imigrantes ilegais que cometeram crimes”, onde poderão estar desde os crimes mais graves, como homicídio e tráfico de droga, até à travessia ilegal da fronteira. Adolpho não acredita que este plano seja sequer possível. “É impossível retirar 12 milhões de pessoas, porque nós nem sabemos se os outros países vão aceitá-los de volta”, refere, propondo antes outra solução: a abertura de um programa de vistos de trabalhador para estrangeiros. “Os que já cá estão, mas que vieram ilegalmente, podiam beneficiar disto, se pagassem um multa”, sugere.

“É impossível retirar 12 milhões de pessoas, porque nós nem sabemos se os outros países vão aceitá-los de volta.”
Adolpho Telles, líder do Partido Republicano em El Paso

Em El Paso, o número de eleitores que optaram pelo voto antecipado disparou. O anterior recorde foi estabelecido em 2008, quando 115 mil eleitores votaram antes do tempo. Já este ano, neste condado onde 81,3% da população são latinos e onde as eleições presidenciais se tornaram num autêntico referendo a Donald Trump e às suas propostas para a imigração, um total de 151 mil pessoas anteciparam-se à votação de 8 de novembro e já foram às urnas — mais 32% do que em 2008. Tradicionalmente, e ao contrário da grande maioria do estado do Texas, este condado vota maioritariamente no Partido Democrata.

“Um muro grande, bonito” ou uma ponte pedonal?

Além de querer aumentar o número de deportações, Donald Trump também quer construir um muro na fronteira com o México. “Um muro grande, bonito e poderoso”, como costuma dizer, geralmente acrescentando em seguida que “o México vai pagá-lo”.

Em El Paso, alguns riem-se desta proposta. “Nós já temos um muro, portanto não sei para que é que se fala tanto disso”, ri-se o paramédico Robert Cerecerez, que ainda assim votou em Donald Trump por achar que “o país deve ser gerido como uma empresa”. Já Adolpho acredita que o muro é uma solução “razoável” para uma situação que diz estar “fora de controlo”. “Toda a gente tranca a porta de casa à noite, mas não é porque não gostam das pessoas que estão lá fora”, diz, para depois completar: “É porque gostam das pessoas que estão lá dentro”. Ainda assim, reconhece que se há um muro, haverá sempre quem passe por cima dele. “O muro seria apenas um elemento dissuasor”, explica. “Se não houver vigilância, basta as pessoas usarem uma escada para passarem. E os mais novos são tão ágeis!”

“Toda a gente tranca a porta de casa à noite, mas não é porque não gostam das pessoas que estão lá fora. É porque gostam das pessoas que estão lá dentro.”
Adolpho Telles, líder do Partido Republicano em El Paso (Texas)

A vedação entre a zona de El Paso e Ciudad Juárez estende-se ao longo de pouco mais de 200 quilómetros, sempre ao largo do Rio Grande, que em tempos servia de única fronteira às duas cidades. Depois, apenas o Rio Grande separa os dois países. Por ter sido dragado para os canais destinados à irrigação agrícola, nas alturas de pouca chuva o rio pode ser facilmente atravessado a pé. Nalguns casos, os migrantes não chegam sequer a molharem-se: em várias zonas, o rio chega a estar completamente seco.

Mas há ainda um outro caminho. Lupe Dempsey só lá vai de pistola e com o marido, Bill Dempsey, igualmente armado. A cerca de 100 quilómetros a este de El Paso, já no condado vizinho de Hudspeth, basta sair da auto-estrada I-10 e percorrer um caminho de terra batida durante cerca de um quarto de hora para ver uma ponte pedonal, de ferro, entre os dois países. Sem muro, sem vedação, sem arame farpado, sem guarda no local. Basta atravessar. “Isto é uma auto-estrada para qualquer assassino em fuga ou qualquer traficante de droga”, aponta Lupe, líder do Partido Republicano no condado de Hudspeth. Antes de assumir essas funções, foi agente especial no ICE durante 20 anos. Atualmente, também trabalha em part-time como intérprete de espanhol e inglês em sessões de tribunal.

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Lupe Dempsey, com uma pistola na mão, em cima de uma ponte pedonal entre os EUA e o México. Por segurança, só lá vai com o marido e armada (João de Almeida Dias / Observador)

“Se isto não fosse tão sério, seria motivo de chacota”, queixa-se. A verdade é que já foi motivo de piada, quando em 2014 o ativista conservador James O’Keefe, mascarado de Osama Bin Laden, atravessou o rio a pé. “Tornou-se óbvio que a fronteira não estava segura. Ninguém está sob vigilância, nem sequer Osama Bin Laden”, disse à altura.

A verdade é que, cerca de cinco minutos depois de o Observador chegar àquele lugar com Lupe e Bill Dempsey, um guarda da patrulha fronteiriça apareceu a bordo de um carrinha. Quando ele chega, Lupe explica-lhe porque tem uma pistola na mão. “Não a censuro, senhora”, devolve-lhe o agente. Perguntamos-lhe se costumam passar muitas pessoas por aquela ponte pedonal em trânsito do México para os EUA. A resposta sai-lhe irónica: “Então não! Não está a ver agora? Estão todos a correr cá para dentro, até se atropelam uns aos outros”. Depois disto, faz marcha atrás e vai-se embora.

O Observador chegou a ter uma entrevista marcada com um representante em El Paso do maior sindicato de guardas fronteiriços, o National Border Patrol Council, mas foi desmarcada pelo mesmo à última hora por “ordens superiores”. Também contactámos o departamento de comunicação de El Paso da Customs and Border Patrol, a agência federal responsável pela vigilância e segurança das fronteiras norte-americanas, que escolheu não ceder nenhuma entrevista.

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Bill Dempsey quer que todos os imigrantes sejam deportados. “Eu não quero saber se são 12 milhões, até podem ser 25 milhões!”, assegura (João de Almeida Dias / Observador)

Lupe e Bill Dempsey vivem a apenas meio quilómetro da fronteira. Em duas ocasiões, conta Lupe, já lhe apareceram pessoas na sua propriedade à procura de comida e água. “Eles chegam muito cansados, estão completamente esgotados”, conta. “Muitos deles dizem logo ‘quero voltar já para o México!'”, refere, a rir.

Lupe é filha de dois imigrantes mexicanos, que chegaram aos EUA no final da década de 1940 ao abrigo do programa bracero, que permitiu a vários mexicanos um visto de trabalho para a agricultura nos EUA. “Hoje a situação é muito diferente, porque nós não temos necessidade de ter mais imigrantes, nós temos é de ter menos”, sublinha.

Nos últimos tempos, quando não está a fazer de intérprete de espanhol e inglês numa sessão de tribunal, quase todo o tempo livre de Lupe tem sido preenchido para fazer campanha para a eleição dos candidatos do Partido Republicano, desde aqueles que concorrem a postos no condado de Hudspeth até a Donald Trump. Ainda assim, sobra-lhe sempre algum tempo para visitar a mãe, que está internada num lar em El Paso. “Quando vou lá, sento-me ao lado dela e vemos um bocado de televisão mexicana”, conta. “Ficou tão ofendida com as coisas que se dizem na televisão mexicana. É inaceitável para mim, enquanto cidadã americana, ver gente de outro país a dizer-me em quem é que devo votar“, queixa-se.

"Eu ficou tão ofendida com as coisas que se dizem na televisão mexicana. É inaceitável para mim, enquanto cidadã americana, ver gente de outro país a dizer-me em quem é que devo votar."
Lupe Dempsey, líder do Partido Republicano no condado de Hudspeth (Texas) e agente especial reformada

Sobre Donald Trump, diz que “nem sempre ele escolhe as melhores palavras” quando o tema é a imigração do México e de outros países do continente americano — sobretudo para um político que precisará sempre de alguma parte do eleitorado latino. Mas, quando Donald Trump disse que entre os imigrantes do México havia violadores e traficantes de droga, Lupe concordou a 100 por cento. “Isso é verdade! Isso é verdade e toda a gente sabe isso, toda a gente sabe como as coisas são lá e toda a gente sabe o que eles fazem aqui”, queixa-se. Quanto aos números que apontam para um índice de crime consideravelmente baixo em El Paso, Lupe acredita que eles são “manipulados”.

Tal como Adolpho, o líder do Partido Republicano de El Paso, também Lupe acredita que “deportar 12 milhões de pessoa não é prático”. Já o seu marido Bill, dono de uma pequena empresa de camionagem e apoiante de Donald Trump desde o primeiro dia (Lupe preferia o texano Ted Cruz), os imigrantes ilegais devem ser todos deportados. “Se estão ilegais, então têm de sair. É tão simples quanto isso”, refere. “Eu não quero saber se são 12 milhões, até podem ser 25 milhões! Se não vieram para cá como deve ser, então têm de sair.”

Abraços sim, muros não

Desde aquela manhã de fevereiro de 2011 em que atravessou aquela ponte em direção a El Paso, Martina foram poucas as palavras de inglês que Martina aprendeu. “O inglês não me entra”, diz, algo envergonhada. “Mas agora que estou cá há este tempo todo sinto que o inglês me faz muita falta.”

Ainda assim, está mais ou menos a par do que se fala nas eleições. Embora tenha dificuldades em recordar-se do nome de Hillary Clinton, o nome de Donald Trump é o primeiro que lhe vem à cabeça. “Todos os políticos mandam gente para o México, nós já estamos à espera disso”, aponta. “Mas este homem não quer só mandar-nos para trás, este homem quer seguir-nos o rastro, este homem quer caçar-nos.”

"Todos os políticos mandam gente para o México, nós já estamos à espera disso. Mas este homem não quer só mandar-nos para trás, este homem quer seguir-nos o rastro, este homem quer caçar-nos."
Martina Gómez, imigrante ilegal mexicana de 51 anos, sobre Donald Trump

Martina diz repetidamente que quer voltar para o México, mas que a vida não lho permite. Em tempos, na igreja onde costuma ir todos os domingos, confessou a outros fiéis o seu desejo de voltar. Eles disseram-lhe que não, que o seu lugar era nos EUA. “Se estás aqui, é pela graça de Deus, então Ele tem os seus motivos”, disseram-lhe. Ainda assim, custa-lhe aceitar a ideia de nunca mais ver os pais.

Além disso, as saudades que tem do filho José são difíceis de batalhar. Todos os dias, falam pelo chat Facebook (“claro!”) e quando arranjam tempo fazem videochamadas. “É conversa normal, conversa igualzinha à de todas as mães e todos os filhos do mundo”, diz.

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Uma ONG de El Paso criou um evento que permitiu a imigrantes ilegais nos EUA verem e abraçarem durante poucos minutos os seus familiares do outro lado da fronteira (Facebook da Border Network for Human Rights)

No dia 31 de outubro, tiveram um outro tipo de encontro. Com a ajuda da guarda fronteiriça, a ONG pró-imigração de El Paso Border Network For Human Rights organizou um evento a que chamou de Hugs Not Walls — qualquer coisa como Abraços sim, muros não. Naquela tarde, à vez e apenas durante três minutos, vários imigrantes mexicanos nos EUA e os seus familiares tiveram a oportunidade de estarem juntos. O ponto de encontro foi o meio do Rio Grande, que ali estava completamente seco.

Quase uma semana depois, Martina ainda chora quando se lembra daquele momento. “Vi o meu netinho, que só tem sete meses”, diz. E mais. Finalmente, cinco anos depois de ter atravessado a fronteira para poder ver José através de um vidro na prisão e três anos depois de ele ter sido deportado, Martina voltou a poder beijar o seu filho preferido.

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