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Matou o marido com oito facadas. Diz que foi "o mau-olhado"

Em janeiro, Elsa Raimundo foi condenada a pena suspensa, por agressão a polícias depois de atacar o marido. No Carnaval, esfaqueou-o até à morte. Começou a ser julgada esta terça-feira.

“Estava casada com o homem a quem fiz o mal”. A juíza queria apenas saber o estado civil da arguida, como acontece no início de todos os julgamentos (entre outras perguntas sobre a identidade de quem está ser julgado), mas Elsa Raimundo confessava logo assim, sem prever ou sem se aperceber, a morte do marido. Carrapito desarranjado na cabeça, olhar perdido e meias a vincar-lhe os tornozelos, a mulher, de 48 anos, que está em prisão preventiva, chegou ao julgamento, no Tribunal de Loures, curvada, mas de olhos erguidos. Olhava para as paredes da sala de audiências do Tribunal de Loures como se de um museu se tratasse. Permaneceu imóvel enquanto a juíza lia os factos que lhe eram imputados. Nem a descrição das facadas no marido ou das bofetadas em agentes da polícia lhe arrancaram qualquer reação. Elsa só se exaltou quando percebeu que estava a ser acusada de ter ido ver o corso de Carnaval depois de ter esfaqueado Rui Purificação até à morte.

Debateu consigo própria se prestava ou não declarações e atropelou-se em palavras: ora dizia que sim, ora dizia que não. As indecisões de Elsa eram de tal ordem incompreensíveis que levaram até o coletivo de juízes a abandonar a sala de audiências para que a arguida pudesse aconselhar-se com a advogada. “Eu não gosto de Carnaval. Eu detesto o Carnaval. Não fui ver. Isso é mentira”, disparou, revoltada, mal se viu sozinha com a advogada. “Isso” podia ser mentira, mas o resto, sabia, era verdade. Por isso, retomada a sessão, Elsa Raimundo contou como matou o marido — “coitadinho” — de 83 anos, na última terça-feira de Carnaval, na casa de ambos, em Torres Vedras. 

— Acalma-te!

— Rui, cala-te e não me enerves. Cala-te ordinário!

— Não gosto que me chames ordinário.

— Não fales mais se não vou fazer algo de mal. Vou fazer uma asneira.

A tal “asneira” terá sido o culminar de uma discussão entre o casal. “No dia que aconteceu o mal que eu fiz, eu não estava bem de mim. Estava muito enervada”, começa por relatar. Elsa não se lembra ao certo se o marido lhe terá pedido para não lhe chamar “ordinário”, como descreve a acusação do Ministério Público. Mas lembra-se que a discussão terá começado depois de lhe pedir que fosse comprar os medicamentos que costumava tomar. “Nos dias antes”, recorda, tinha tomado a medicação certa, mas os comprimidos tinham acabado e Elsa sabia que, “ficando sem o medicamento, a pessoa fica mal”. “Ele não quis ir à farmácia e desejou-me a morte. Começou a dizer palavras obscenas e eu aborreci-me. Por isso, cometi o erro”, admitiu.

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"Ele não quis ir à farmácia e desejou-me a morte. Começou a dizer palavras obscenas e eu aborreci-me. Por isso, cometi o erro"
Elsa Raimundo, arguida

A arguida começou, então, por morder a face do marido. Causou-lhe “lacerações dos tecidos do nariz, do lábio e do sobrolho”, segundo refere a acusação. Depois, com uma faca de cozinha de 30 centímetros — com mais de 17 de lâmina — “desferiu, pelo menos, oito golpes no corpo” de Rui. Elsa, porém, contrariou a acusação: foram “só duas facadas na barriga” e não oito. “Eu avisei-o. Se não me desse o medicamento, ia acontecer alguma coisa de mal”, contou durante o julgamento desta quarta-feira.

Essa “coisa de mal”, viria então a acontecer. Rui Purificação, com 83 anos e problemas de mobilidade, tentou ainda defender-se: colocou as mãos à frente do peito — que acabariam também elas por serem atingidas com a faca —  e fugiu para uma segunda habitação que o casal usava para arrumações, separada apenas por um corredor da casa onde viviam. Acabaria por cair, morto, nesse outro local, não se sabe bem em que sítio exato: Elsa diz que caiu no quarto, a Polícia Judiciária (PJ) acredita que caiu na entrada e que a mulher o arrastou até ao quarto. “Havia marcas de arrastamento. O corpo teria caído à porta da entrada da segunda habitação onde havia o maior depósito de sangue. Não havia dúvida de que foi uma tentativa de esconder o corpo“, referiu o inspetor da PJ Duarte Nuno Martins, ouvido na qualidade de testemunha.

"Havia marcas de arrastamento. Não havia dúvida que foi uma tentativa de esconder o corpo"
Duarte Nuno Martins, inspetor da PJ

“Pensava que ia só fazer doer e depois ele ficava curado”

A viúva diz, agora, que está “arrependida”. Conta até que, quando o marido, alegadamente, lhe desejou a morte, no calor da discussão, lhe disse: “Isso não se pode fazer. Deus não quer morte por ninguém”. Nem Deus, nem Elsa Raimundo, que alegou que não tinha consciência que estava a matar o marido. “Pensava que ia só fazer ferida e não fazer o mal”, explicou.

Com um relatório psiquiátrico de 2013 nas mãos, a juíza que preside ao coletivo (dos três magistrados que conduzem o julgamento) perguntou a Elsa se os problemas de saúde que ali lia —  debilidade mental de grau ligeiro, perturbação da personalidade, fragilidades estruturais e mecanismos de defesa primários — a impediam de distinguir o bem do mal e entender as consequências dos seus atos. “Há vezes que sei e há outros dias que não sei. Nesse dia, não estava lá muito bem. Pensava que ia só fazer doer e depois ele ficava curado”, garantiu.

Elsa Raimundo está a ser julgada por homicídio no Tribunal de Loures. O julgamento continua no dia 28 de novembro (Gustavo Bom / Global Imagens)

Gustavo Bom / Global Imagens

O coletivo de juízes não pareceu muito convencido com a explicação. De acordo com a acusação, Elsa Raimundo era seguida há muitos anos em consultas de psiquiatria e neurologia e “apenas conseguia desempenhar tarefas de vida diárias básicas”, mas não há, pelo menos para já, nenhum dado que indique que a arguida não tem, de facto, a capacidade de distinguir o mal do bem, condição essencial para a determinação de inimputabilidade — que em nenhum momento foi referida durante o primeiro dia de julgamento.

A mulher acredita que, se o marido estivesse vivo, iria compreender que “nesse dia não estava lá muito bem”. “Uma vez, dei-lhe uma estalada na cara. Foi com a crise. Ele, depois, perdoou isso porque percebeu que era da doença”, recorda a viúva. Elsa e Rui conheceram-se em 2010 e casaram três anos depois, em dezembro. “A gente dava-se bem. Íamos ao café todos os dias beber o cafézinho e comprar tabaco para fumar. Ele fumava comigo”, contou à juíza.

"Uma vez dei-lhe uma estalada na cara. Foi com a crise. Ele, depois, perdoou isso, porque percebeu que era da doença"
Elsa Raimundo, arguida

O próprio vizinho a quem pediu ajuda naquela terça-feira de Carnaval não terá acreditado na mulher: “Pensou que eu estava a brincar e não acreditou, porque estava sempre tudo bem com a gente, noutras alturas”. Depois de ver o marido a sangrar, e “a pensar que ele ainda podia ser salvo”, a arguida gritou pelo vizinho e pediu-lhe que chamasse uma ambulância. Mas o vizinho, conta a viúva, não o fez: além de pensar que a mulher de Rui Purificação estava a brincar, nem tinha dinheiro no telemóvel para fazer a chamada.

“Não tínhamos discussões. Estávamos sempre contentes”, voltou a insistir a arguida, durante o julgamento. Naquela terça-feira de Carnaval, encontra outra razão para ter sido levada a esfaquear o marido até à morte: “Era mau-olhado. Havia pessoas que estavam sempre a perguntar: ‘Está tudo bem com vocês?’. Queriam sempre saber da nossa vida”.

“Vou matar-te porque estás com o demónio”. Há dois anos, Elsa também quis matar o marido

Vanda, sobrinha por afinidade de Rui, não acredita que a relação do casal era como Elsa Raimundo a acabava de pintar na sala de audiências. Ouvida na qualidade de testemunha, a mulher contou que, se o relacionamento de ambos era, numa fase inicial, normal, a arguida tornou-se “bastante agressiva verbalmente” com o marido, com o passar dos anos. A razão? “A Elsa pedia-lhe sempre muito dinheiro e ele chegava a alguma altura não tinha mais dinheiro”, apontou. Vanda chegou a ver o tio com marcas de agressão: nódoas negras nos braços. “Ele disse que não era nada”, recordou.

"A Elsa pedia-lhe sempre muito dinheiro e ele chegava a alguma altura não tinha mais dinheiro"
Vanda, sobrinha de Rui

Não são só as declarações de Vanda que levantam dúvidas sobre o casamento feliz que Elsa descreve. Pouco mais de um mês antes de ter cometido o crime, a mulher tinha sido condenada a uma pena suspensa de 14 meses de prisão por agressões físicas e verbais contra polícias, que a tentaram impedir de arrastar o marido para o meio do trânsito.

Aconteceu no dia 8 de fevereiro de 2016. Elsa Raimundo andava por uma estação de serviço em Torres Vedras a abordar clientes, pedindo dinheiro e tabaco. Insultava depois os mesmos quando não lhe davam o que pedia. O marido, numa tentativa de acalmar a mulher, aproximou-se dela. Elsa aproveitou um momento em que a vítima estava de costas para lhe dar um empurrão. O homem, na altura com 81 anos, ficou caído no chão — o que não a impediu de continuar as agressões: deu-lhe pancadas com um chapéu de chuva e arrastou-o para o meio do trânsito, obrigando os condutores a desviarem-se, para não os atropelarem. “Vou-te matar porque tu estás com o demónio”, disse. Acabaria a agredir os agentes da PSP que lá chegaram, para controlar a situação.

E não foi a única vez que aconteceu. Esta quarta-feira, a arguida respondeu também pela acusação de um crime de ofensa à integridade física qualificada. No dia anterior ao homicídio, dirigiu-se à esquadra da PSP de Torres Vedras — não se sabe bem porquê. “Estávamos a montar uma operação para o Carnaval e estávamos com muito movimento”, recorda um agente da PSP, ouvido na qualidade de testemunha, por videoconferência. Eram nove da noite, mais minutos, menos minuto. O agente, que andava fora e dentro, lembra-se de a ver sentada no interior do edifício: “Devia lá estar há 20 minutos”. Num dos momentos em que o agente abriu a porta, foi surpreendido: “Quando me volto, ouço a senhora a dizer: ‘Já disse que a porta é para estar fechada’. E desferiu-me uma bofetada”. Depois de ser detida, recorda o agente da PSP agredido pela arguida, “não tinha um discurso coerente”. “Dizia que ia lá por causa do Carnaval”, contou.

“Era notório que tinha bebido álcool”. Sobrinha admite problemas com bebida

Também esta história é confirmada pela viúva, que garante, porém, que foi só no dia seguinte. Na sua versão, terá dado uma bofetada ao agente no dia do homicídio, quando, segundo diz, se foi entregar na esquadra — e não no dia anterior, como ele conta. “Eu pedi para eles fecharem a porta para não apanhar frio e eles não quiseram. E dei um estalo ao polícia. Só isso. Mais nada”, relata, reforçando que agrediu o agente da PSP no “próprio dia, no dia em que me fui entregar”. “Fui me entregar por causa do erro que cometi”, explicou ainda.

"Eu pedi para eles fecharem a porta para não apanhar frio e eles não quiseram. E dei um estalo ao polícia. Só isso. Mais nada"
Elsa Raimundo, arguida

O “erro” terá sido cometido por volta das 14h00 daquela terça-feira de Carnaval. Depois de ter esfaqueado o marido e de ter alertado o vizinho, Elsa Raimundo terá voltado para casa. “Mudei de roupa, fui buscar o dinheiro que tinha, pus na carteira e fui à policia me entregar”, relatou. A roupa ensanguentada, umas calças de pijama azul, foi deixada na banheira. Os sapatos foram colocados por baixo de uma mesinha. Lavou a faca e deixou-a dentro de uma cesta na sala de estar, “onde estava antes”. E terá caminhado até à esquadra da PSP.

“Fui a pé”, responde à juíza, explicando que o caminho se fazia em 15 a 30 minutos. Elsa Raimundo, porém, nunca se entregou — segundo a acusação “dirigiu-se ao centro da cidade de Torres Vedras, assistindo ao corso de Carnaval”. A PSP foi chamada ao local por volta das 19h10 de 13 de fevereiro. Quando lá chegaram, encontraram o cadáver de Rui Purificação e a mulher “aparentemente normal” e sem sinais de “nervosismo”. “Mais tarde, começou a apresentar algum estado de instabilidade e a ficar nervosa”, recorda um dos agentes da PSP. Ouvido na qualidade de testemunha, recordou que Elsa Raimundo explicou logo que tinha sido a autora do crime e começou a “apresentar alguma instabilidade”. “Como já havia antecedentes, algemámos a senhora”, adiantou.

Já na esquadra, foi interrogada pela PJ.  “Não dizia coisa com coisa. Chamava-nos uma quantidade de nomes, que não eram ofensivos sequer. Chamava-nos Deus e Pai do Céu. Não se lembrava de nada, não falava do que tinha acontecido”, esclareceu Duarte Nuno Martins, inspetor da PJ, para quem “era notório que tinha bebido álcool”. A própria sobrinha da vítima admitiu nas suas declarações que o casal “tinha um problema com álcool”. “Houve duas vezes que o tio ligou a pedido da Elsa para me pedir dinheiro. Ouvi a voz dela por trás. O dinheiro seria para comprar álcool”, contou Vanda. A própria arguida admite apenas que bebiam vinho tinto, “só um copinho cada um, na hora de almoço e ao jantar”, embora não se lembre se bebeu no dia em que assassinou o marido.

O tribunal tentará, agora, determinar o que esteve por detrás do homicídio: se foram os problemas mentais, descritos no relatório psiquiátrico de 2013; se apenas o consumo de álcool poderá explicar o comportamento agressivo e confuso, descrito pelas testemunhas — ou, ainda, nenhum dos dois.

Outra dúvida dificilmente será respondida: Rui Purificação recusou sempre apresentar queixa pelas agressões de 2016, mas poderia aquela morte ter sido evitada, se o caso tivesse sido acompanhado logo a seguir ao episódio de fevereiro de 2016 — e a vítima, eventualmente, protegida?

O julgamento continua no dia 28 de novembro, com a audição de mais testemunhas.

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