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“Não temos mais nada a ensinar-lhe”: a vanguarda perpétua de Aurélia de Sousa

Quase despercebida no seu tempo, esquecida durante um século, é agora, cem anos após a morte, elogiada, reconhecida e valorizada no mercado da arte. Quem foi Aurélia de Sousa e que obra deixou?

Já não passa ao lado de nenhum historiador de arte e o seu “Autorretrato” com casaco vermelho faz parte de um imaginário quase pop, o nome ainda soa um pouco desconhecido, mas a visibilidade que lhe deu a exposição “Tudo O Que Eu Quero: Artistas Portuguesas de 1900 a 2020”, atualmente patente ao público em Tours, França, não deixa que seja ignorada. A condição feminina, no entanto, fez com que a sua história e o seu trabalho tardassem e muito a serem celebrados e não permitiu que em vida tivesse o êxito merecido. Soube viver, no entanto; viveu pouco, porém.

Aurélia de Sousa nasceu a 13 de junho de 1866 e morreu a 26 de maio de 1922, a poucos dias de completar 56 anos. Uma tuberculose, como dizem os estudiosos, ou um envenenamento pelos pigmentos químicos das tintas, creem os familiares, não a deixaram sobreviver. Para trás ficava uma obra prolífera, fruto de uma produção exaustiva e de um talento fora do normal.

Natural de Valeparaíso, cidade perdida no extremo sul do Chile, viveu grande parte da sua vida no Porto. O pai, António Martins de Souza, e a mãe, Olinda Perez, emigraram para a América do Sul à procura de melhor ventura. Ele trabalha no caminho de ferro e faz fortuna, ela trata e cuida da descendência. Em 1869 regressam a Portugal e ao Porto, cidade de onde eram naturais. Com o dinheiro ganho no Chile, compram uma quinta na zona oriental da cidade, a Quinta da China, propriedade encimada por uma maravilhosa casa setecentista, hoje pertencente à Mota-Engil, e com direito a parque, jardim e vistas soberbas sobre o Douro. É lá que Aurélia e as irmãs — cinco — crescem e descobrem a vida. Família conservadora, da média-alta burguesia, educa-as com grande decoro e ensina-lhes as disciplinas domésticas das senhoras de bem, piano, desenho, pintura… Mestres de renome para a época frisam as capacidades artísticas da jovem, a quarta de sete irmãos, dos quais cinco raparigas. “Não temos mais nada a ensinar-lhe”, terá mesmo sido o elogio maior, conta-nos Maria João Lello Ortigão de Oliveira, historiadora de arte e autora de uma das primeiras teses de doutoramento sobre Aurélia de Sousa.

O famoso “Autorretrato” com casaco vermelho, provavelmente a obra mais conhecida de Aurélia de Sousa

A Academia de Belas-Artes do Porto foi, pois, o primeiro passo a dar, ou o passo natural para seguir os seus dotes. Entrou tarde, porém, já caminhava nos 27 anos, com o desagrado da mãe, verdadeira matriarca desde a morte precoce do pai, em 1874. Foi preciso a sua teimosia e persistência para que os estudos de pintura seguissem o seu rumo e, mais do que isso, a companhia da irmã Sofia, também prendada nessa coisa das artes. Orientada por professores como Marques de Oliveira, Aurélia soma aplausos e sente que esse é o seu caminho ainda antes de terminar o curso de Pintura Histórica. Com o patrocínio de um dos cunhados, um dos homens mais ricos do Porto, José Augusto Dias, segue em 1898 para Paris, onde frequenta a célebre e prestigiada Academie Julian, escola com um programa de aulas “muito interessante”, sobretudo assente no domínio do retrato e do autorretrato e não só nas disciplinas normalmente facultadas a mulheres, como os registos florais e as naturezas-mortas. Segue-a, um ano depois, a irmã Sofia, apoiada financeiramente pelo outro cunhado — só duas das irmãs casam, a mais velha, Maria Helena, e a mais nova, Estela.

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Na cidade Luz, a “aluna brilhante” da Academia do Porto, como a classifica a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, coordenadora do Catálogo Raisonné dedicado à artista com data prevista de saída no mercado dos e-Books para abril do próximo ano, continua um percurso notável. Ela e a irmã, “as Souzettes”, como eram conhecidas entre colegas e professores, conta Maria João Ortigão, dão nas vistas por uma capacidade invulgar de composição. São destacadas por mestres como Jean-Paul Laurens e Jean-Joseph Benjamin-Constant, que também ensinavam na Academia Francesa de Belas-Artes, e que ali lidaram com todos os grandes artistas das primeiras vanguardas, Duchamp, Matisse, ou Bernard e Khnopff e Nolde. Mas é o senhor Julian, ele próprio, quem escreve a Aurélia uma carta de recomendação, já ela tinha ganhado prémios e mais prémios, exposto em França e pintado o agora famoso “Autorretrato” com casaco vermelho. Estas informações, partilhadas connosco pelas duas historiadoras de arte que mais estudaram a vida e a obra da artista, realçam o génio de Aurélia, mas também o seu modo de ser: reservada, calada, e com uma saúde frágil.

Discípula do realismo e naturalismo do seu tempo, é uma mulher que se bate de igual para igual com nomes como Silva Porto, Marques de Oliveira, João Vaz, António Carneiro ou Artur Loureiro, frisa a historiadora Maria João Ortigão.

Aurélia está ainda em Paris quando ocorre a Exposição Universal de 1900 e nem sequer é contactada por Portugal para comparecer, ela “que seria a melhor representante do País”. Sabe quem vai, “umas senhoras de Lisboa”, escreve com alguma mágoa, pois já é notada no seio da Academie Julian, conta Maria João Ortigão. Mas encaixa bem o despejo, porque o meio artístico maioritariamente masculino via o trabalho das mulheres como “uma gracinha, e ela preferia não se relacionar com ele, tinha consciência de que não iria ser levada a sério”, avança Raquel Henriques da Silva.

Antes de regressar a Portugal, Aurélia e Sofia viajaram amplamente pela Europa. Bretanha, Normandia, Veneza, Suíça, Alemanha, Holanda, Bélgica foram alguns dos locais que visitaram e onde percorreram atentamente os seus museus mais importantes. As viagens continuaram depois de voltar a casa, mas com menor intensidade, apesar de acontecerem sempre que possível na companhia das irmãs mais ricas, Maria Helena e Estela, e respetivos maridos.

A casa, na Quinta da China, ali para os lados de Campanhã, era, contudo, o seu mundo predileto. “Um sítio muito especial”, como explica Raquel Henriques da Silva, onde chega com pouco mais de dois anos de idade vinda do Chile. Ali cresce sob a proteção da mãe, a morte do pai não parece afetá-la muito, e entre irmãs, num ambiente feminino que lhe será sempre familiar e querido. “Adotam e criam duas meninas”, conta ainda esta historiadora, crianças que vão colmatar a ausência de filhos, pois nem todas casam. “E a sua pintura manifesta essa comodidade da casa.” Vive bem, a família guarda todos os valores sólidos que a sociedade impõe, e, numa economia autossustentada, como é a da quinta, desenvolve o gosto pela arte. Nos quadros, as tarefas de casa, os trabalhadores, e todo o lado doméstico em que está integrada, tanto nos ambientes interiores como exteriores. Não sai muito, prefere realmente aquele recato do lar que tão bem conhece, e onde as festas também são uma realidade, mas não o faz também por algum desprezo por uma vida social oca de significado, talvez fosse essa a “revolta mansa de uma mulher subtil e contida”, como a classifica Maria João Ortigão. Autónoma, dá aulas de pintura em casa, tal como as recebera em criança, e vende, vende muito no Porto, onde lhe notam o talento desde cedo. Recebe encomendas, bastantes, e pinta de tudo: flores, retratos, naturezas-mortas, paisagens, interiores, símbolos… E pinta para si própria também. “O que mostra esse sentido muito forte da profissão, a necessidade de vender, e o saber que pode vender”, diz Raquel Henriques da Silva.

A historiadora Raquel Henriques da Silva destaca "a consciência de si mesma": “A capacidade de indagar sobre si própria leva ao cume da sua pintura que se materializa no autorretrato”.

A Lisboa, porém, só chega mais para o fim de uma carreira que sempre quis perseguir, de tal forma consciente das suas capacidades e da sua condição de artista. Envia as obras para exposições que decorrem na Sociedade Nacional de Belas-Artes, “não se sabe como, por quem, ou se é ela própria que as leva”, acode Raquel Henriques da Silva, e é numa dessas mostras que Columbano Bordalo Pinheiro a descobre e a aprecia ao ponto de lhe comprar um quadro para o Museu de Arte Contemporânea, do qual à época era diretor. É o célebre “No Atelier”, pintado em 1916 e que ainda hoje está no Museu do Chiado. Oito anos antes, já D. Carlos, lhe adquirira duas obras. O rei pintor escolheu “duas paisagens feitas a partir da Quinta da China, uma bastante negra e outra de uma claridade incrível, duas vistas do Douro que se encontram no Palácio de Vila Viçosa”, precisa Maria João Ortigão. Ou seja, quem é entendido na matéria gosta e compra Aurélia de Sousa. Está lá a qualidade e o virtuosismo e um grande “ecletismo na forma como agarra a pintura”. Discípula do realismo e naturalismo do seu tempo, é uma mulher que se bate de igual para igual com nomes como Silva Porto, Marques de Oliveira, João Vaz, António Carneiro ou Artur Loureiro, frisa esta especialista na sua obra. Já Raquel Henriques da Silva não hesita em colocá-la entre os três ou quatro melhores artistas da sua época: “Considero que Aurélia de Sousa está entre Columbano e António Carneiro no âmbito dos mais importantes pintores de 1900”. Influências terão sido muitas, dos portugueses Artur Loureiro, António Carneiro e Marques de Oliveira aos franceses Jules Breton, Jean-François Millet e Bastien-Lepage, como nos diz Maria João Ortigão, sublinhando o seu gosto pessoal por artistas como Whistler, fala-se mesmo da proximidade com o artista no retrato que Aurélia faz da mãe, por Dürer, cuja assinatura quase imita, e por todos os grandes holandeses do século XVII, de Rembrandt a Vermeer.

As exposições no Porto acontecem com frequência, são na Misericórdia, no Ateneu, na Academia de Belas-Artes e o seu colecionismo é uma realidade que convém até à produção intensa que desenvolve. Mas a morte, em 1922, deixa cair uma evolução promissora no panorama artístico nacional. Aurélia estava a começar a fazer-se notar na capital. É que, apesar de tudo, a Invicta não passava ainda de uma cidade provinciana, explica Maria João Ortigão. No entanto, é lá que, em 1936, tem lugar a primeira grande mostra em sua homenagem no Palácio de Cristal. Em 1966, outra exposição volta a pô-la no mapa dos artistas mais interessantes, mas o fenómeno não deixa de ser muito portuense. Na verdade, é quando José-Augusto França a distingue na sua história da pintura do século XIX que Aurélia de Sousa começa a ser considerada alguém. A condição feminina a ser chamada como handicap à difusão e análise crítica do talento artístico, fez com que mal dessem por ela antes disso e mesmo assim a historiografia ainda se portou mal para com as mulheres durante muitos anos. Seja como for, na História da Arte de França, das quatro ou cinco obras com direito a reprodução a cores, o “Autorretrato” com casaco vermelho foi uma delas. O historiador dá-lhe grande destaque, mas não elabora muito à volta do seu trabalho. É já em finais dos anos 80 do século passado que Raquel Henriques da Silva e Maria João Lello Ortigão de Oliveira coincidem no gosto por Aurélia, estão ambas a reorganizar o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado após o incêndio de Lisboa de 1988.

“Inovadora”, sem dúvida, Aurélia mostra hoje, ainda e sobretudo, como o seu trabalho se consubstanciou de uma matéria duradoura de tão enraizado nessa capacitação da autora enquanto artista.

Depois disso, é dos Estados Unidos que vem o maior elogio à pintora. Na exposição “1900, Art and the Crossroads”, dedicada a obras de artistas europeus, o seu “Autorretrato”, outra vez, “é distinguido como uma das 100 melhores pinturas de 1900”, recorda a organizadora do seu Catálogo Raisonné. “Esta mulher”, continua, “profundamente inovadora, é uma espécie de constelação na cultura portuense”. E é ela que, já hoje, e, claro está, já beneficiando da questão do género, dá a cara pelas mulheres artistas portuguesas na mostra “Tudo O Que Eu Quero. Artistas Portuguesas de 1900 a 2020”, que inaugurou há sensivelmente um ano na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. De resto, de há 30 anos a esta parte, a sua obra tem valorizado muito no mercado da arte, afiança a historiadora de arte, de tal forma que até “há falsos”. A circulação tem sido de grande intensidade, nomeadamente em leilões, tendo muitos quadros mudado de mãos.

Do seu tempo, ou à frente dele, mais uma vez, Aurélia estende a sua genialidade também à fotografia e até à ilustração. Usa a arte de Niépce para “melhor pintar”, na interpretação de Maria João Ortigão. Era um método comum, todos o faziam, fotografavam e pintavam a partir da fotografia, conta a historiadora que faz assim referência a muita da minúcia e do trabalho virtuoso conseguidos através desta prática. “Escondiam porque a fotografia era considerada uma arte menor. Usavam esta metodologia sem a confessarem para apurar determinadas interpretações do naturalismo e do realismo. A fotografia ajudava-os a pintar melhor, lá está, a interpretar o real tão exato quanto possível, mas com o seu estilo.” O famoso retrato de Aurélia de Sousa vestida de Santo António, pintado, crê-se, em 1902, foi feito assim. A fotografia existe e mostra bem as faculdades da técnica, tal a verosimilhança entre pintura e fotografia. Na imagem, pertença de José Caiado de Sousa, a artista pousa exatamente na mesma posição com que aparece no retrato a óleo, este guardado na Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, no Porto.

Um dos caminhos de Aurélia de Sousa é o simbolismo, quer saber “o que é que a pintura quer dizer” e mantém sempre uma ligação a outras artes: a literatura, a filosofia, a religião

Aurélia não escondia o método, a sua paixão pela fotografia, com a qual fixava todos os encontros familiares, completando extraordinários álbuns, levou-a mesmo a montar uma câmara-escura na casa da Quinta da China e a fazer belas composições fotográficas cujo registo guardou religiosamente, e o guarda hoje ainda um colecionador que não quer ser identificado. É um espólio feito de imagens em papel, mas também de negativos e até fotografia sobre vidro. Mais cética, Raquel Henriques da Silva questiona a autoria de muitas das fotografias e põe em cima da mesa a hipótese de ser a irmã a disparar a máquina, ou mesmo o seu vizinho, Aurélio Paz dos Reis, quem, sabe-se, lhe tirou a última fotografia que tem em vida, imagem de uma beleza extraordinária. Curiosamente, ou não, diz a historiadora, o fotógrafo amador, mas sobretudo homem da sétima arte, considerado o pioneiro do cinema em Portugal, vivia ao lado da artista que tanto gosto tinha em se autorrepresentar. A consciência de si mesma, ou melhor, “a capacidade de indagar sobre si própria leva ao cume da sua pintura que se materializa no autorretrato”.

“As vanguardas não são o único motor da modernidade”, diz a historiadora, “ela tem muitos caminhos”. Aurélia perfaz decididamente um deles através do simbolismo. A artista quer saber “o que é que a pintura quer dizer” e mantém sempre uma ligação a outras artes, das quais em grande destaque figuram a literatura, a filosofia e a religião. E é, desse ponto de vista mais amplo, como explica a coordenadora do Catálogo Raisonné, que a artista se enquadra dentro das linhas da modernidade. “Inovadora”, sem dúvida, Aurélia mostra hoje, ainda e sobretudo, como o seu trabalho se consubstanciou de uma matéria duradoura de tão enraizado nessa capacitação da autora enquanto artista. Estudá-la vai ser preciso também e ainda mais. Este ano, em que se celebra o centenário da sua morte, além da feitura do catálogo, que conta já com 400 obras, “um salto incrível no conhecimento de Aurélia”, um congresso internacional dedicado a ela e às mulheres pintoras de 1900, bem como uma grande exposição com curadoria de Maria João Ortigão, a inaugurar em novembro, no Museu Nacional Soares dos Reis, sinalizam e divulgam um trabalho que tem todas as condições para sair do país e ganhar terreno mundo fora.

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