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Numa abordagem contemporânea e multidisciplinar, a ópera encomendada ao compositor de 36 anos, surge na sequência e em continuação da obra Inferno, estreada em 2020
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Numa abordagem contemporânea e multidisciplinar, a ópera encomendada ao compositor de 36 anos, surge na sequência e em continuação da obra Inferno, estreada em 2020

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Numa abordagem contemporânea e multidisciplinar, a ópera encomendada ao compositor de 36 anos, surge na sequência e em continuação da obra Inferno, estreada em 2020

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Nuno da Rocha: um compositor entre “a melhor geração de sempre na música contemporânea em Portugal”

A ópera "Paraíso" abre a festa dos 30 anos do CCB, esta sexta-feira. Em entrevista, o compositor Nuno da Rocha explica como esta já não é uma "música para elites" e como o ensino em Portugal evoluiu.

No palco do Grande Auditório do CCB, o negro marca um cenário de proporções dantescas. No meio dessa escuridão inusitada, um barco parece encalhado e a travessia entre Inferno e Paraíso é agora, talvez mais do que nunca, incerta. Não estamos na “Divina Comédia”, de Dante Alighieri (ainda que a sua marca poética ali ressoe), antes mais próximos do mito de Orfeu e Eurídice. Mas a história que se conta é outra, centrada na figura de Caronte, o barqueiro de Hades, que carrega as almas dos recém-mortos. Desaparecido e sem vestígios aparentes de que irá regressar, chegamos ao Paraíso guiados pela voz de Kalis, uma ninfa que nos fala da sua viagem com as Ménades ao fugirem do continente dos fogos, da guerra e do caos. É o início de um rito de passagem, celebrado pela dança e pela música, elementos-chave da ópera Paraíso de Nuno da Rocha, que irá abrir as comemorações do 30.º aniversário do Centro Cultural de Belém, esta sexta-feira, dia 27 de janeiro.

Numa abordagem contemporânea e multidisciplinar, a ópera encomendada ao compositor de 36 anos, surge na sequência e em continuação da obra Inferno, estreada em 2020. Junta no mesmo palco um sexteto de instrumentistas, a voz da soprano Eduarda Melo e cinco bailarinos – Lorena Nogal, Shay Partush, Ester Gonçalves, Emanuel Santos, Margarida Belo Costa – que dão forma e movimento à coreografia de Marcos Morau, o fundador da companhia de dança catalã La Veronal. A condução do conjunto de músicos está a cargo do maestro Pedro Neves e libreto conta com a assinatura de Clément Bondu. A propósito deste importante acontecimento, o Observador esteve à conversa com o compositor sobre as premissas que se conjugaram para dar forma a esta criação, imaginada, desde princípio como uma peça onde música e dança se cruzassem em harmonia.

Entre a escolha de La Veronal, como a companhia ideal para este dispositivo cénico, até à evocação da fadista Amália Rodrigues no libreto da ópera, todos os momentos de criação foram pensados ao detalhe. Para Nuno da Rocha trata-se de um momento significativo para ele próprio, enquanto compositor, por evidenciar a importância de se demonstrar convenções sobre o que pode ser uma obra erudita, nomeadamente uma ópera contemporânea. Por outro lado, diz, acaba por ser reflexo de um bom momento a que se assiste no panorama da música erudita em Portugal. “Esta geração viva – que engloba várias, deve dizer-se – é de longe a melhor de sempre no panorama da música contemporânea em Portugal”, salienta. A melhoria nas condições do ensino da música em Portugal, que, realça, continua a ser exponencial, mas também a forma como certos compositores contemporâneos se têm destacado, parecem antever uma maior abertura deste tipo de expressão artística, que não se faz só para as elites. Está mais próxima das pessoas, salienta, e com uma diversidade que espelha bem os poucos limites que existem no ramo da composição e da música moderna e contemporânea.

O compositor Nuno da Rocha durante um dos ensaios de "Paraíso" no Centro Cultural de Belém

Pedro Sadio

O momento é importante: são os 30 anos do Centro Cultural de Belém. Mas para quem olha para o seu percurso, mesmo tendo apenas 36 anos, parece só mais um evento consequente, numa carreira pontuada de grandes momentos.
Não é mais um, apenas. É um momento muito importante quer para a instituição, mas mesmo para mim artisticamente, por duas coisas: primeiro, porque nunca tinha feito uma peça para dança com esta dimensão e tamanho; e depois, pela oportunidade de estar a trabalhar com esta companhia e com este coreógrafo, o Marcos Morau, que são, para mim, a parte mais importante neste projeto. Estou a trabalhar com uma cantora que conheço muito bem, a peça é longa, mas ter esta companhia a gerir a parte cénica torna a coisa mais especial.

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Como surge este convite e depois a junção com a La Veronal?
O convite foi feito de uma forma muito aberta e deixou-me muito feliz, uma vez que ainda sou relativamente jovem e receber um convite desta importância foi importante, no sentido em que me foi dada uma carta branca para projetar algo multidisciplinar. Portanto, não queriam que fosse uma encomenda só de música ou de orquestra, teria de envolver outras disciplinas. Logo nessa conversa, disse que queria fazer algo com dança e aproveitar esse mote. Entre as pessoas em questão no convite estava o Delfim Sardo e o Rui Horta, que estava na altura como conselheiro de programação. Claro que foi logo ele também a puxar e a ficar contente por essa ligação à dança que me motivava. Isto foi a base, numa altura em que estava tudo em aberto. Quando falamos em companhias, a La Veronal era a minha primeira escolha e, felizmente, quando foi feito o convite eles aceitaram. Foi uma felicidade muito grande. Estilística e esteticamente era a companhia que, para mim, fazia mais sentido a criar com a minha música.

Uma ópera dançada, com libreto que junta várias inspirações. É algo novo no seu percurso.
Sim, muito recentemente estreiI uma peça para a Renova, em que uma das partes da peça para piano juntava dança. Estamos a falar, obviamente, de uma peça pequena. Com esta dimensão, e mesmo com voz e narrativa, esta é a primeira experiência de uma “ópera ballet” que reúne a minha música com parte cénica.

Voltamos a um universo dantesco (embora esta obra não seja sobre Dante Alighieri): depois do Inferno, obra que estreou em 2020, e chegamos ao Paraíso. Quais é que foram os principais desafios para esta composição?
Quando falamos da dramaturgia e da sua narrativa, foi uma coisa imediata. Quanto à parte musical, foi outra coisa: o Inferno é uma peça com uma orquestra e com um coro de 50 pessoas; é um efetivo muito grande. De repente, no Paraíso, temos seis músicos e mais a cantora. É uma redução muito grande. São dois objetos muito diferentes. Em relação à narrativa, são próximos porque, na verdade, o Paraíso é a continuação (ou segunda parte) do Inferno.

"Quando escrevo uma peça para uma orquestra como a da Gulbenkian, estou a fazer música pela música, estou na minha área. Quando estou a escrever música para cena, sinto que sou o segundo compositor e que não sou, sequer, o compositor final."

A ópera começa com um disco de vinil em palco onde se ouve, precisamente, um trecho do Inferno.
Sim, e ambas falam sobre uma personagem secundária do Mito de Orfeu e foi logo uma das coisas que eu e o Clément Bondu, que escreveu o libreto, quisemos incluir. Essa passagem foi por isso fácil; aproveitámos as pontas soltas e a partir daí centrámo-nos na figura de Caronte, que é o barqueiro, que é tão importante na história, mas que nunca chega a ter voz no mito. Ele é quase a personagem principal, mas nunca chegamos a saber o que pensa sobre aquilo. É só um objeto que ali paira.

A pergunta que lança ao Clément é: e se Caronte desaparecesse de facto e deixasse de haver guia para as almas?
Exatamente. Imaginemos que o Caronte não está ali… cria-se a imagem de não haver um barqueiro que nos leve e aquele espaço torna-se num sítio de caos, onde não há distinção entre o bem e o mal, e toda a gente fica nas margens sem poder percorrer o rio e chegar ao paraíso. Há outras camadas, algumas até políticas, como a questão democrática, em que estamos todos no mesmo sítio. Essa foi a primeira imagem de ligação entre o Inferno e o Paraíso, depois o Clément criou esta ficção, de dar voz a uma das ninfas que tiveram de tomar conta daquele espaço e do que se tornou pós-Caronte. Ele vai buscar a Kalis, uma ninfa, que vai contar na primeira pessoa o porquê do fim do Caronte, como é que ficou aquele espaço e o que tiveram de fazer com as outras ninfas.

Para contextualizar: Kalis, uma ninfa, fala-nos da sua viagem com as Ménades que fugiram do continente, dos fogos, da guerra e do caos. À deriva, através do mar, Kalis e as Ménades acabaram por chegar à ilha, onde criaram uma sociedade de partilha e convívio. Há um lado distópico, mas também de utopia.
Sim, e na verdade quem mais fala comigo sobre isso é a própria cantora que lha dá voz, a Eduarda, que diz que sente que a Kalis até pode estar a sonhar, na sua própria utopia… essa ilha é um lugar de distopia. Enquanto a metáfora no Inferno é que nós vemos Caronte como alguém que leva as almas e é o responsável, aqui é o contrário. É sobre quem toma o controlo e quem tem de assumir essa tarefa; vemo-nos a nós próprios na figura da Kalis, uma vez que perante o caos, há que decidir o que fazer e, geralmente, os contextos de caos tornam-nos outras pessoas. Acontece a todos, quer seja alguém que esteja agora a fugir de Kiev e da Ucrânia, quer seja alguém que está fechado em casa com Covid-19 e de repente escolhe não ir à casa dos seus familiares para não os colocar em perigo. Todas as nossas escolhas podem mudar consoante o contexto. Por vezes, optamos por ser mais inertes e deixar Caronte decidir, por vezes temos de ser Kalis e temos de nos tornar mais fortes. É essa a dualidade.

Passa de uma obra sinfónica e de coro para uma ópera. Como compositor, foi, neste caso, uma Kalis, e contruiu uma obra musical que é, em certa medida, mais minimalista. Há um lado de redução na construção?
De facto, esta obra tem momentos mais minimais em termos musicais. Há uma explicação lógica para isso: quando escrevo uma peça para uma orquestra como a da Gulbenkian, estou a fazer música pela música, estou na minha área. Quando estou a escrever música para cena, sinto que sou o segundo compositor e que não sou, sequer, o compositor final. Neste caso, é o Marcos Morau que assume esse papel. De alguma forma, eu não posso fechar a partitura e as imagens sonoras que tenho sobre aquele objeto na própria partitura.

"Trabalhar com esta companhia e com este coreógrafo, o Marcos Morau, é para mim, a parte mais importante neste projeto", diz Nuno da Rocha

Pedro Sadio

Não vive sozinha, sem o lado da coreografia.
Exatamente. Exemplo claro disso: eu não consigo ouvir o Philip Glass nas colunas de casa. É incrivelmente bem feito, mas em termos de forma não consigo ouvir o Einstein on the Beach num sistema de som, nem em concerto. Mas em cena é inacreditável. Portanto, ao escrever música para dança, não quis, nem ser o Philip Glass, mas ao mesmo tempo não podia ser eu completamente, como compositor, a fazer música pela música e a balizar demasiado o trabalho do coreógrafo. Há muito mais repetição, por exemplo. Numa peça minha talvez repetisse duas vezes, aqui tenho de repetir mais para dar espaço ao Marcos para conseguir imaginar movimento e dança com aquela música.

A partitura foi mudando à medida em que estava a ser ensaiada pelo Marcos?
Não foi muito alterada, depois de começarmos a trabalhar com o Marcos. Ele sabia do processo à medida que íamos desenvolvendo o conceito, eu e o Clément, mas ele recebeu a versão final. Claro que há certos momentos em que onde o Marcos tem poder de decisão, como nas suspensões, paragens ou transições de cenas. E ainda há coisas que ficam em abertas até ao dia de estreia.

O piano marca compasso e mesmo o Nuno, que assume a guitarra elétrica, está a criar um ambiente sonoro.
Sim, a música tem os seus momentos, mas o foco está no palco. Claro que gostava que no final, as pessoas achassem que todos os momentos foram musicalmente fortes, mas a musica numa ópera não pode ser, do início ao fim, cheia de gestos musicais complexos e novos, porque isso aniquila o espaço de trabalho cénico. Quando se está a ver uma peça com cena, é a nossa parte sensorial da visão que tem preponderância sobre as outras. O que quero dizer é que se a música fosse muito má ou sem interesse nenhum, mas se houver uma cena ou imagem marcante, as pessoas achariam a peça harmoniosa. O campo de visão é muito importante, daí a importância de escolha da companhia neste projeto. São eles que definem o sucesso da obra.

Falando do libreto, escrito em francês, com uma homenagem à Amália. Foi uma referência acrescentada por si?
Articulei com o Clément, que não conhece tão bem a nossa cultura. A referência surge quando a Kalis está a recordar a figura de Eurídice que no mito, é quase um objeto, que tem de ser salva, pelo Orfeu. Aquele fado, que a Kalis diz que se lembra de Eurídice a cantá-lo, assenta que nem uma luva sobre a condição de ser mulher e pela mensagem, de que quer tenhas nascido mais forte ou mais fraco, não interessa, porque há um fado que te está destinado. É uma imagem muito próxima da figura de Eurídice e fazia sentido evocá-la como referência.

"A minha base musical, desde muito novo, sempre foi a música popular e ligeira. Quando penso em formato canção, não penso em Debussy ou no Schubert. Penso no Tom Jobim, no Chico Buarque, penso no Sérgio Godinho ou no Fausto. Isso é a minha base."

O Mito de Orfeu continua a inspirar diferentes obras.
Completamente, umas mais sobre a figura de Eurídice, outras mais debruçadas sobre Orfeu. Aqui o mito é apenas uma base. O que quisemos fazer foi mesmo uma ficção sobre estas duas personagens (Caronte e Kalis) que, na verdade, são completamente secundárias no mito e nem há muito desenvolvimento artístico sobre elas.

O Nuno já colocou a sua música entre um lugar erudito, mas também popular. Mantém essa conceção?
Sem dúvida. A minha base musical, desde muito novo, sempre foi a música popular e ligeira. Quando penso em formato canção, não penso em Debussy ou no Schubert. Penso no Tom Jobim, no Chico Buarque, penso no Sérgio Godinho ou no Fausto. Isso é a minha base. Tenho uma opinião vincada: acho que os compositores de música popular são mais capazes no domínio horizontal e melódico. No controlo vertical, claro que a música erudita e os grandes compositores são muito mais complexos, no campo harmónico. Eu, no fundo, quando estou no campo melódico, gosto de me sentir como compositor popular. No campo harmónico, gosto de me sentir como erudito. Quem ouve não sei o que sente, mas creio que as pessoas do meu nicho sentem de alguma forma, e mesmo outros compositores como o Eurico Carrapatoso, esse lado. Já na parte harmónica, gosto de ir a fundo na erudição.

A partitura dá pendor à orquestração, mas é interpretada de formas diferentes. Esse entendimento dá-lhe mais espaço de liberdade?
Sim, porque na verdade eu não faço música. Quem faz música são os músicos que a interpretam. O meu papel do compositor é o de fazer com que a partitura seja a mais rigorosa possível, não há espaços em aberto. Mas claro que aquilo não é som nenhum. O som vem da orquestra ou de quem interpreta.

Não são as partituras do Arvo Pärt ou do Xenakis, que lançam um desafio mesmo para quem interpreta?
Quem pega numa partitura minha tem as informações todas lá, agora o que quero dizer é que a música não sou eu que a faço, são os instrumentistas. Acho que isso é uma coisa que se aprende com o tempo. É deixar ir a criança, como costumo dizer, porque nós entretanto aprendemos a deixá-la crescer. A partitura é igual, porque já esta na mão do maestro e da orquestra. Na verdade, quando se decide fazer aquele andamento mais ou menos à frente é porque tem de ser ou porque é interpretado naquele contexto. Só a música eletrónica é que consegue esse rigor, pelo decibéis, mas na verdade é o que lhe tira a graça. Gosto da diferença e de ouvir uma peça minha ser interpretada de forma diferente por conjuntos diferentes de instrumentistas. Antes não gostava, porque tinha aquilo na cabeça estruturada de forma rigorosa, mas lá está, é algo que se aprende com o tempo.

"Lembro-me de um professor meu, que foi produtor do Jimi Hendrix, o Nigel Osborne, me dizer 'um dia as pessoas do popular vão chamar-te erudito e as pessoas do meio erudito vão chamar-te popular'"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Começou no Hot Clube, enquanto frequentava um curso de engenharia no Instituto Superior Técnico. Mas, pelo que já disse noutros momentos, o jazz não é uma influência muito marcada no seu trabalho.
Em mim não. Eu passei pelo Hot Clube, enquanto estive no Técnico. Já tinha tido anos de conservatório onde estudei guitarra clássica. Foi importante para desenvolver algumas coisas no plano auditivo, de conhecer o meio, mas também rapidamente percebi que era um meio muito limitado e por vezes as pessoas confundem música moderna com jazz e acho que são coisas que não tem nada a ver uma com a outra. Isto é, talvez seja controverso, mas acho que o jazz tem muito pouco de moderno. É limitado como género e uma coisa muito morta, na verdade.

Muitos compositores de música moderna falam, atualmente, da improvisação. Diria que a improvisação tem ganho espaço, por esse lado subjetivo na composição e que se associa muito ao jazz.
Mas até isso mostra como o jazz é música do passado. E posso explicar: quando se pensa em improvisação, há quem pense no jazz porque tem música improvisada; mas a verdade é que a música antiga está cheia de improvisação. Os acompanhamentos de baixo contínuo, por exemplo, aquilo é improvisado em tempo real e estamos a falar de período barroco. Portanto, nem nisso foram pioneiros. Isto não é um ataque ao jazz. O que quero dizer é que quando se fala de improvisação, vamos falar de diversas formas musicais e não apenas do jazz. E isso leva-me a outra questão importante sobre o que é improviso. Acho que ninguém consegue improvisar no seu próprio instrumento. Quando se fala em improvisação, era eu dar uma tuba a quem não a sabe tocar para que explorasse naquele momento o instrumento que não conhece de todo. Isso é que seria improvisação. Como é que podem dizer que eu improviso na minha guitarra, que estudei tantos anos. Não é improvisação… aqueles dedos e a memória muscular está cheia de coisas que vêm de trás. São gestos estudados. Improvisação seria eu pegar agora num saxofone e explorar.

Será mais correto abordar o termo experimental?
Sim, o que se pode chamar de experimentalismo. Mas no que eu componho há muito pouco espaço de improvisação. Há poucas coisas em aberto.

Hoje parece existir uma certa linha de compositores de música erudita que têm ganho um lugar mais destacado: falo, por exemplo, do John Adams, Max Richter ou de produtores e multi-instrumentistas como o Ólafur Arnalds. Há mudanças nesse panorama que suscitam reflexão?
Geralmente, a minha preocupação artística é fazer aquilo que quero ouvir. Não estou a pensar no lugar a ocupar. Mesmo a conversa do erudito e popular já vem desde muito cedo. Lembro-me de um professor meu, que foi produtor do Jimi Hendrix, o Nigel Osborne, me dizer “um dia as pessoas do popular vão chamar-te erudito e as pessoas do meio erudito vão chamar-te popular”. Entendo isso e não estou muito interessado em saber qual é o lugar em que me vão colocar. Sobre o que se passa hoje em dia, vemos uma diversidade muito grande, muito mais do que noutros períodos da história, mesmo recentes, onde parece que sobretudo a Europa e os Estado Unidos estavam centrados numa só corrente. Hoje em dia, há pessoas a fazer música ainda com armações de clave e há compositores a continuar os caminhos do Stockhausen. Acho isso fantástico, essa diversidade, mas não temos de os agrupar. A minha música não tem nada a ver com a do John Adams, mas ele não deixa de ser incrível, assim como do Richter ou do Luís Tinoco. Acho importante que não haja essa ditadura estilística e haver muita gente a fazer coisas diferentes. A música contemporânea está a passar um grande momento por causa disso.

"Estou a acabar o doutoramento na Royal Academy, em Londres, e aquela escola tem 200 anos. A Escola Superior de Música, em Portugal, tem 40. A diferença é grande. Por isso é que é exponencial. Vejo cada vez mais miúdos novos a aparecer, a fazer audições e a ganhar prémios. Isto claro que é uma consequência, não nasce por acaso. O ensino da música está e vai continuar a dar frutos, cada vez mais."

O Arvo Pärt permanece, Ryuichi Sakamoto parece despedir-se… O Nuno tem um tema cujo título é precisamente “O que será do rio without John Cage”. É sugestivo desse legado que se vai passando.
Foi alguém muito importante, mesmo não tendo sido um grande compositor. Foi uma das pessoas mais importantes na história da música recente, sobretudo pelo que ajudou a teorizar. E sim, há uma passagem de testemunho.

Mas não quer também dizer que, ao contrário do esperado, a música erudita é um espaço cada vez mais aberto?
Houve alturas em que se fechou ao mundo. Atualmente, é muito aberto, porque como diz o maestro Nuno Coelho, a música clássica ou erudita deixou de ser para a elite. É esse o ponto central. Uma obra de Mozart não tem nada a ver com uma ópera de agora… já não estamos a escrever para a elite. Outra coisa interessante, só muito recentemente é que começámos a chamar “ópera” a esta obra, por causa da sua classificação. As pessoas quando pensam em ópera pensam numa obra de Mozart ou de Puccini, mas o target é completamente diferente.

Também porque há uma estilização e ideia face a certos compositores, como Mozart ou Beethoven, que de repente, são kistch.
Acontece na música e nas outras artes. Há sempre aquela ideia do criador como artistas, mas o criador nunca deixa de ser o artesão. Um compositor contemporâneo está muito mais perto das pessoas do que a Madonna.

Em Portugal vemos uma evolução. O ensino da música tem refletido essa evolução?
Ainda é exponencial e é normal que o seja, porque tivemos uma ditadura que fechou este país. Estou a acabar o doutoramento na Royal Academy, em Londres, e aquela escola tem 200 anos. A Escola Superior de Música, em Portugal, tem 40. A diferença é grande. Por isso é que é exponencial. Vejo cada vez mais miúdos novos a aparecer, a fazer audições e a ganhar prémios. Isto claro que é uma consequência, não nasce por acaso. O ensino da música está e vai continuar a dar frutos, cada vez mais.

"Que este momento sirva para mostrar que somos os melhores que este país teve até hoje e que não há motivo para não termos as oportunidades devidas"

Pedro Sadio

Portugal já deixa de ser um local de passagem para esses jovens que querem prosseguir estudos e carreira?
Completamente. Estou a fazer o doutoramento em Londres para ter outro network, porque para mim já era importante a questão de mercado, que é outra coisa que ninguém nos ensina. Estar lá tem sido importante e ter novamente alguém a olhar para as minhas partituras, que era algo que já não tinha desde o mestrado, com o compositor Pinho Vargas. Mas hoje em dia, qualquer pessoa se consegue formar aqui completamente e está pronto para escrever boa música. Portugal tem hoje três ou quatro universidades com cursos no ramo da composição muito boas. As pessoas que efetivamente passaram os cabos das tormentas, quando tinham a minha idade e que não tinham peças tocadas, de repente estão a ensinar estes jovens muito mais abertos à diferença e à novidade. É reflexo de tudo isso.

Uma instituição como o CCB que, porventura, há 20 anos convidaria um compositor estrangeiro, hoje não tem tanto argumento para o fazer?
Garantidamente. O CCB convidou-me, mas eu podia dar vinte nomes portugueses tão bons ou melhores que estariam cá amanhã, de certeza, prontos a criar. Esta geração viva – que engloba várias, deve dizer-se – é de longe a melhor de sempre no panorama da música contemporânea em Portugal.

Esta ópera também serve para mostrar isso?
Gostava que assim fosse, sim. Até porque ter aqui o meu nome é uma responsabilidade muito grande. Não é só o meu nome que ali está. Sinto que eu e outros colegas, neste ou noutro acontecimento, estamos a carregar o peso da nossa classe e dos nossos pares. Por isso, só espero que a peça corra muito bem. Que sirva para mostrar que somos os melhores que este país teve até hoje e que não há motivo para não termos as oportunidades devidas.

 
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