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O "Árabe do Futuro" e a monumental vida desenhada de (e por) Riad Sattouf

Transformou-se numa missão ambiciosa que vai no quinto livro. A história de um autor de BD dividido entre a Síria e França é uma lição de criatividade, talento e sensibilidade cultural.

É um monumento em banda desenhada. Neste momento, em Portugal, contamos com cinco dos seis volumes da série, estando a publicação da tradução do último planeada para o próximo ano. O projecto inicial não fora tão ambicioso, mas, à medida que Riad Sattouf contava, percebia que havia mais detalhe para contar. Riad foi ainda colaborador do semanário Charlie Hebdo, publicou vários livros de banda desenhada e dirigiu no cinema dois filmes, “Les beaux gosses” (2009) e “Jacky au royaume des filles” (2014).

Nascido em Paris, em 1978, numa família com pai sírio de origem sunita e mãe francesa, Sattouf usou o seu material biográfico para fazer uma série em que mostra o choque de culturas pelo olhar de uma criança. A ideia para os livros terá surgido em 2011, altura em que se iniciava a guerra civil na Síria. Com o material que tinha da sua vida, Riad Sattouf compôs uma narrativa que dá mundo ao leitor: partindo do núcleo de uma família, quem lê tem acesso às grandes questões políticas que definem a vida de um país – ou de vários – ao mesmo tempo que vê de que forma movimentos da História determinam a vida que existe dentro de uma casa. Assim, à medida que a narrativa se desfia, tudo existe em duplo plano: há a narrativa pessoal e há a contextualização histórico-política.

Mas já lá vamos. Abdel-Razak, o pai de Riad, que estava em Paris a fazer um mestrado em História Contemporânea, fruto de uma bolsa oferecida pelo governo francês, recebeu um convite para dar aulas na Líbia tinha o filho três anos. Esta mudança foi o pontapé de partida para esta série, ainda que esta se inicie no ano do seu nascimento, acompanhando todo o período da infância e da adolescência. Como, a partir daí, a família vai saltando entre países, estando o movimento constante na narrativa, o leitor vai tendo acesso à Líbia de Kadafi, à Síria de Hafez Al-Assad, à Bretanha, à França de Miterrand, à Arábia Saudita dominada pela família real. Os lugares também têm um cunho gráfico, uma vez que marcam a cor das pranchas nos livros: a Síria fica com cor-de-rosa, a França com azul, a Líbia com amarelo, Jersey com verde, e o amarelo marca a ficção dentro da narrativa, que, regra geral, passa pela imaginação de cenários violentos.

A capa do mais recente volume da colecção "Árabe do Futuro", o quinto, publicado pela Teorema

A chegada à Líbia encontra logo um choque: não havendo propriedade privada, a casa que a família ocupa não tem sequer chave. Assim, é fácil a outra família ocupá-la caso não esteja ninguém em casa, o que vai criando uma certa domesticação por parte da mãe de Riad, que fica em casa só para que ninguém assuma que o lugar está livre. Abdel-Razak, contudo, ainda está um tanto maravilhado: tendo passado muitos anos em França, vai encontrando ali elementos da sua infância, como a vegetação e a fruta. Ao mesmo tempo, vai começando a dar-se corpo à ideia do que é “ser árabe”, e de como esta identidade se contrapõe às outras. Para Abdel-Razak, o epíteto “árabe” marcará não apenas um lugar no mundo, mas também uma forma de acção, não raras vezes aliada ao Islão, que terá que ver com noções de honra e, por vezes, suspensão da lei e da moral ocidentais.

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Aliás, foi esta identificação que derivou na chegada à Líbia, tendo Abdel-Razak recusado um convite para ensinar em Oxford. Parte do seu intuito era instrumentalizar a formação que recebera para contribuir para a formação do povo árabe – ou do árabe do futuro. Isto implicaria, de início, educar para o fim da superstição, educar para o progresso, educar para a democracia. Ao longo dos anos, ver-se-á de que forma o meio envolvente tem mais poder do que a sua vontade de o mudar – ou seja, parece que, contra o mundo, o indivíduo que quer mudar o mundo pode pouco. Em vez disso, o mundo em geral tem uma maior capacidade de condicionar e endrominar.

= pai de Riad acaba por estar em permanente contraponto com a cultura ocidental, querendo à força toda singrar no que considera a sua cultura. Para isso, há uma insistência na ideia de que a França é racista, dizendo ele que, apesar dos estudos e do doutoramento, ali nunca poderá ser alguém de destaque.

Percebe-se, com isto, que o pai considera que o povo árabe está atrasado, precisando da sua formação e da sua ajuda para alcançar algum progresso. Por outro lado, o regresso marca uma re-aproximação e o elogio constante à Síria contrasta com a visão que a família tem do país. Ainda assim, o pai quer condicionar o filho: insiste que é árabe, quer que aprenda árabe, quer que seja árabe, quer que aja como um sírio muçulmano, o que implica esperar do mundo o mesmo que um sírio muçulmano. Por exemplo, submissão por parte das mulheres. Claro, isto contrastará com a ideia inicial de povo atrasado, embora na narrativa esta evolução esteja bem casada, uma vez que Abdel-Razak vai regressando à tradição em que nasceu. À medida que os anos passam, o muçulmano não-praticante leva com a pressão social que lhe faz ter a crença – ou fingir a crença, o que não diz menos sobre a capacidade de influência social e criação de sensação de manada.

Depois da Líbia, o retorno à França é breve. Há alguma desilusão com a realidade do país árabe, mas o pai de Riad acaba por estar em permanente contraponto com a cultura ocidental, querendo à força toda singrar no que considera a sua cultura. Para isso, há uma insistência na ideia de que a França é racista, dizendo ele que, apesar dos estudos e do doutoramento, ali nunca poderá ser alguém de destaque. Os países árabes, por sua vez, poderão garantir-lhe uma posição na sociedade que lhe renda prestígio e admiração. Ao receber uma proposta de emprego na Síria, é para lá que se muda com a família, para a sua aldeia-natal, Ter Maaleh.

Os capítulos passados na Síria serão os mais fortes da narrativa. O governo ditatorial parece impedir não só a liberdade de expressão, mas também a de pensamento, e o fanatismo religioso está presente em cada interacção. O povo é obrigado a adorar ou fingir adorar o ditador, e o mesmo se passa com o Al-Corão: mesmo que as crianças não o percebam, repetem a ladainha, de que a coisa um dia se vai entranhar. Nas crianças, convém dizer, há ainda vários elementos violentos, que se vêem tanto nas relações que estabelecem umas com as outras como nas relações com os pais e os professores. O convívio com a violência acontece de forma relativamente pacífica, não sendo questionado.

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O olhar de Riad vai dando ao leitor o mesmo espanto, havendo um cunho de primeira vez em tudo o que é apresentado. E, ao mesmo tempo, há a presença de um mundo quando Riad está noutro

AFP via Getty Images

Como Riad é loiro, surge aqui logo uma questão racista ou xenófoba, com as outras crianças a chamarem-lhe judeu e a baterem-lhe por isso. Confuso, o miúdo nem sabe o que é um judeu, assim como não entende os rituais religiosos que não só marcam os dias (as horas para rezar) como marcam as relações entre os indivíduos (com as mulheres num estatuto de menoridade), a relação com a comida (sendo porco totalmente proibido) ou várias outras interacções em que as crianças da Síria se chocam por Riad não saber o que é “proibido pelo Sagrado”.

Nisto, vai surgindo outro dos aspectos mais interessantes da narrativa, que é a relação de Riad com o pai. Em França, Abdel-Razak agia como um francês, e só isso lhe possibilitou o casamento com uma francesa. À medida que passam mais tempo na Síria, as diferenças culturais vão atingindo um abismo tal que só a ideia de terem casado já parece desfasada. Partindo de Paris para uma aldeia, a família teve de se amanhar com problemas no seu dia-a-dia, como a falta de electricidade, uma casa com buracos, uma parca alimentação. E, além disso, com outra forma de ver o mundo. O Al-Corão é imposto e ele, que não é religioso, a início distancia-se, mas depois a coisa entranha-se. A sua ideia do que “deve ser uma mulher” também vai ficando permeável ao que existe à volta, e tudo isto vai enformando a relação não só com a esposa, mas também com os filhos.

Riad Sattouf vai fazendo ilustrações que, com traços simples, mostram a devastação: ao mostrar um edifício, eis o traço vertical a dizer que há uma brecha. Como, aqui e ali, se vai mostrando a vida luxuosa, por exemplo, de um parente general, o leitor, mesmo sem precisar de explicação, vai vendo a disparidade entre quem manda e quem obedece.

Da sua parte, a clivagem com o que existe à volta é a menor, e percebe-se que lhe é mais fácil aceitar o que para o resto da família é um escândalo, como o momento em que um pai mata uma filha com a ajuda de outro filho devido a uma gravidez fora de um casamento. Não é que ele não condene, mas põe de imediato as leis daquela cultura, quase como quem diz “Aqui é assim”. Escandalizada, a mãe de Riad quer uma denúncia à polícia, e tal culmina numa prisão durante três meses. Da parte de Abdel-Razak, nunca há grande dor, embora o tempo passado em França lhe permita ter mais distanciamento – ainda que este não sirva para questionar ou agir sobre as coisas.

Na Síria, o olhar da criança mostra o impacto da violência. Na escola, os alunos temem a pancada – e levam-na com a frequência. Andar pela rua também dá medo, já que pequenos grupos violentam e saem impunes. Pelo meio, o miúdo, que vai aprendendo o árabe, vai ficando mais próximo da família do pai, vai explorando as ruínas áridas de Palmira. Riad Sattouf vai fazendo ilustrações que, com traços simples, mostram a devastação: ao mostrar um edifício, eis o traço vertical a dizer que há uma brecha. Como, aqui e ali, se vai mostrando a vida luxuosa, por exemplo, de um parente general, o leitor, mesmo sem precisar de explicação, vai vendo a disparidade entre quem manda e quem obedece.

Os regressos a França, sejam para férias ou para períodos de vida mais longa, são momentos em que Riad finalmente põe a cabeça à tona. É mais fácil alimentar-se de forma saudável, claro, e, acima disso, não há um controlo absoluto de acções, ou cogitações morais sobre o subjectivo, ou uma modelagem de acções ou crenças feita a partir de fora. Para o leitor, também esses capítulos são mais calmos, uma vez que se atenua a importância do contexto político – não porque a vida democrática seja coisa de somenos, mas porque o poder centralizado e militar da Síria tem um efeito mais premente na vida dos indivíduos, no sentido de os condicionar permanentemente.

Os grandes movimentos da História aparecem de forma bem casada com os traços das vidas individuais da família retratada. O próximo volume, e último, deverá ser publicado em Portugal no próximo ano

É bom de ver que o relato é individual, daí que o mundo seja visto pelos olhos de Riad: as crianças francesas, por exemplo, parecem estar num sistema educativo mais fácil do que as da Síria; as da Síria costumam ser tratadas como violentas ou apagadas ou sujas ou assustadoras de alguma coisa. O olhar de Riad vai dando ao leitor o mesmo espanto, havendo um cunho de primeira vez em tudo o que é apresentado. E, ao mesmo tempo, há a presença de um mundo quando Riad está noutro. Em França, com os novos amigos, vai-se lembrando dos habitantes da aldeia, em especial dos primos: que diriam eles se vissem dois adolescentes aos beijos?

Em pequenos episódios do quotidiano, fica marcada a diferença, quase a bisturi, de formas de vida diferentes: de um lado, um Estado em que a presença da religião não molda os actos e os adolescentes se entretêm com música; no outro, crianças que desejam morrer em Meca e que usam a guerra como entretenimento. E, por todo o lado da narrativa, vai sobejando esta sensação de contraponto: o pai e a mãe vão marcando, de forma cada vez mais evidente, a cultura de cada um, num movimento que os afasta forçosamente, quebrando-lhes as pontes de diálogo, estando o cansaço da mãe em relação à Síria cada vez mais indisfarçável; os conflitos entre sunitas e xiitas vão aparecendo aqui e ali; o Ocidente e Israel existem em guerra permanente, e chega a surpreender ver como isto aparece para marcar insultos entre crianças pequenas; de um crente a um não-crente vai um abismo, seja pela incompreensão da crença num lado ou pela ideia de que a não-crença significa ser-se o grau zero da Humanidade noutro.

Tudo isto Riad Sattouf teceu neste monumento. Os grandes movimentos da História aparecem de forma bem casada com os traços das vidas individuais da família retratada. O próximo volume, e último, deverá ser publicado em Portugal no próximo ano.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

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