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Verónica Paulo

Verónica Paulo

O Bons Sons é o país numa aldeia: "Ajudámos a mudar a perspetiva sobre a música portuguesa"

Em 2006 um grupo de aldeões criou um festival diferente das habituais festas de aldeia. Hoje, o Bons Sons é uma referência. Miguel Atalaia explica este "rasgo de loucura saudável" em entrevista.

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Uma vez mais, Cem Soldos está quase a deixar de ter os seus “apenas” 650 a 700 moradores habituais. Durante quatro dias, entre esta sexta-feira, 12 de agosto, e a próxima segunda-feira, 15, a aldeia de Tomar e do interior vai voltar a apinhar-se de gente: no limite, o número de pessoas pode multiplicar-se por 50 e os 650 que ali habitam podem passar a 35 mil, caso o festival esgote.

O motivo para este fenómeno de povoação momentânea é o regresso do festival Bons Sons, a grande festa descentralizada da música portuguesa, uma espécie de utopia e impossibilidade geográfica impulsionada por uma aldeia que há anos se agiganta para confundir ideias feitas sobre o que é na realidade uma aldeia, o que é o interior e o que é a música portuguesa do presente.

Numericamente, as contas são mais complexas do que o habitual: está quase a arrancar a 11ª edição em 17 anos. Talvez possamos descontar dois anos pandémicos (porque não subtrair os malditos 2020 e 2021 à idade?) e temos o número mais redondo de 15 anos sem Covid-19, de um festival que começou por acontecer de dois em dois anos, de 2006 em diante, até se tornar anual após o sucesso da quinta edição, em 2014.

O que vai acontecer já a partir de esta sexta-feira em Cem Soldos é também um paradoxo, uma contradição poética. Durante quatro dias, a aldeia de Tomar fecha-se ao exterior — impedindo a entrada de visitantes sem um bilhete na carteira — para se abrir a milhares, que trocam as suas cidades, vilas e aldeias por este recanto que um festival ajudou a destacar no mapa.

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Em entrevista ao Observador, o atual diretor artístico, Miguel Atalaia, faz uma viagem pelo passado do Bons Sons e antecipa o futuro do festival. Uma entrevista coerente com um evento que, na sua programação, alia cantares, ritmos e tradições do passado com a experimentação e a procura de um futuro para a canção pop portuguesa, que põe no mesmo cartaz o histórico Grupo de Gaitas da Golegã e o futuro da melancolia pop lusitana que se ouve na voz de Rita Vian.

“O Bons Sons é uma aldeia inteira — de 650 pessoas — a criar um festival”

Como explicaria o Bons Sons a alguém que nunca tenha ido ao festival? Como o descreveria?
Diria assim: imaginem o que é uma aldeia de 650 pessoas “cercada”, que é fechada [a visitantes sem bilhete] para acontecer a música. São instalados sete palcos onde a programação é exclusivamente música portuguesa, de todos os estilos. No fundo é uma aldeia inteira a criar um festival. As pessoas voluntariam-se, trabalham e organizam-se para que as coisas aconteçam. Há ainda uma série de atividades paralelas que fogem um bocadinho à música, que têm muito a ver com programação para famílias, para artes performativas, para conversas. No fundo, é recriar uma vivência de aldeia — que de repente já não é na aldeia de 650 pessoas mas que recebe 35 mil pessoas durante quatro dias.

Para quem conhecer o festival de edições anteriores, pré-pandemia, quais serão as principais novidades este ano em termos de espaço e de linhas programáticas?
O Bons Sons tem sempre um fator de renovação muito grande. Mudamos sempre uma série de coisas porque achamos que estar parado não faz sentido. A novidade mais evidente é a existência de um palco rua que não é palco físico, são concertos programados para o meio da rua em jeito de arruadas, com uma proximidade entre artista e público que se espera que seja muito mais acentuada. Isso vai acontecer todos os dias, com programação do Bons Sons e também do [projeto] A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria.

No Bons Sons ninguém quer “que o público venha brincar à aldeia”

Há alguns artistas no cartaz deste ano que gostasse de destacar? Podemos pensar primeiro no leque de projetos mais ligados ao formato canção, que vão tocando em rádios mesmo que em rádios mais alternativas. Há alguns que esteja especialmente curioso por ver, seja porque se estreiam no festival, seja porque editaram um disco recente de que gostou?
Para nós, programadores, é sempre difícil. E sabemos que o público vem às vezes sem conhecer 70% do cartaz — e está tudo bem com isso porque, na verdade, vem muito à descoberta do que está a surgir e do que é novo. Há nomes que se destacam, claro: poderia mencionar a Marta Ren, a Rita Vian, os GROGNation, André Henriques (ligado aos Linda Martini) e José Pinhal Post-Mortem Experience, que é um revivalismo incrível do trabalho de José Pinhal. E outros nomes: Cassete Pirata, Pluto, David Bruno, Aldina Duarte na ótica do fado, Bia Maria, Sebastião Antunes e Quadrilha, Rui Reininho, Criatura & Coro dos Anjos que vai ser uma festa incrível… Depois temos Fado Bicha, com um trabalho muito recente, e [também com um disco recente] A Garota Não. Temos a Lena d’Água, que regressa. Bateu Matou é garantia de uma grande festa no palco Variações. E B Fachada, André Gil Turquesa, Maria Reis…

Mas há dois ou três projetos que conseguia referir com algum destaque. Por exemplo, a banda Cancro, que vai estar num palco em que eventualmente não seria expectável estar. É uma espécie de punk, algo com uma energia muito especial para aquele palco, que é mais pequeno. Acreditamos que a festa vai ser especial ali. Depois, o projeto Omiri, do Vasco Ribeiro Casais, que é uma recolha etnográfica dos cantares, das lengalengas e das cançonetas das populações e que desta vez foi feito com a população de Cem Soldos. Ele regista em vídeo, projetamos na fachada da igreja e ele dá uma roupagem folk-eletrónica a tudo aquilo. Também poderia falar de Emanuel & Toy Matos, projeto de música cigana que para nós faz muito sentido. Porbatuka, uma espécie de orquestra de tambores, também vai ser uma grande festa na rua. E se calhar para terminar falaria de um projeto chamado 5ª Punkada, ligado à Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, que vai ser incrível. Musicalmente é muito interessante, na área do punk que se calhar não é tão habitual para a maioria das pessoas — mas no palco em que é vai ser uma grande festa. Tentamos sempre pensar a relação entre a música e o palco. E nenhum dos concertos se sobrepõe, das 50 bandas que trazemos ao Bons Sons. Desde o início que é assim, nunca sobrepomos horários de concertos para permitir que as pessoas consigam viver tudo aquilo que vamos programar.

Os muitos concertos marcantes em 17 anos de Bons Sons (15 sem pandemia)

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Não é fácil destacar apenas algumas entre centenas de atuações, ao longo de 17 anos (dois dos quais pandémicos) com edições que começaram por acontecer de dois em dois anos. Mas o Bons Sons teve alguns concertos que, por um motivo ou por outro, ficam na história do festival. Desde logo, os de “históricos” e pesos pesados da música portuguesa e lusófona que foram à aldeia partilhar a festa: Fausto e Princezito (2010), Vitorino (2012), Sérgio Godinho (2014), Clã, Ana Moura, Carlão e Camané (2015); Jorge Palma e Carminho (2016), Orelha Negra (2017) e Sara Tavares (2018), entre vários outros.

Houve concertos “especiais” de revisitação do passado — em 2017, Mão Morta a celebrar os 25 anos do disco Mutantes S.21 e José Cid a tocar o OVNI 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte — e acontecimentos únicos, como as colaborações promovidas na edição de 2019 (First Breath After Coma com Noiserv, Glockenwise com JP Simões e Sopa da Pedra com Joana Gama, entre outras) e o concerto que terminou já de dia dos Kumpania Algazarra, em 2008.

Também existiram atuações que, pelo momento em que aconteceram, têm de ser consideradas especiais pela boa leitura do presente e antecipação do futuro: em 2008 os Deolinda, no ano em que editaram o primeiro álbum Canção ao Lado; em 2012 os Capitão Fausto, um ano depois do primeiro disco Gazela, Márcia, um ano antes de Casulo, e António Zambujo, dois anos antes de Rua da Emenda; em 2014 DJ Marfox e Gisela João (um ano depois do primeiro álbum da fadista); em 2015 Bruno Pernadas (um ano depois do primeiro disco), Benjamim (a apresentar o seu fresquíssimo primeiro álbum de canções em português, Auto-Rádio) e Nídia Minaj; em 2016 Pega Monstro (um ano depois do álbum Alfarroba) e Sensible Soccers (no ano de edição de Villa Soledade); em 2017 Surma (no ano em que editou o disco de estreia) e Filipe Sambado (um ano após Vida Salgada); em 2018 Salvador Sobral — um ano depois de vencer a Eurovisão —, Slow J (um ano após o cometa The Art of Slowing Down), Luís Severo (um ano após o seu disco homónimo, que o afirmou) e Conan Osiris (no ano seguinte venceria o Festival da Canção); e em 2019 os Fogo-Fogo e Dino D’Santiago.

Este ano, há projeção do futuro com Rita Vian e Acácia Maior, apresentações de discos que marcaram 2022 como os de A Garota Não, Fado Bicha e Maria Reis, concertos de David Bruno e de Criatura & Coro dos Anjos que ali, num festival descentralizado, poderão fazer ainda mais sentido e a celebração do passado e presente da pop portuguesa com a refrescada Lena d’Água e o seu recente regresso afirmativo às canções originais.

Já se adiantou a outra pergunta ao apontar também nomes menos conhecidos que podem vir a surpreender o público. Pergunto-lhe antes, então: como se monta e prepara um festival destes em termos logísticos? O que foi preciso fazer, passo a passo, para preparar tudo isto?
Este ano é completamente singular pelas incertezas que envolveram a organização do Bons Sons e de outros festivais. O trabalho de preparação começa em outubro ou novembro do ano anterior. Naquela altura [2021] ainda estávamos com Covid. A incerteza era grande. Isso também obrigou a que houvesse algum pensamento sobre o próprio espaço, com criação de novas áreas de restauração que mantemos e com a supressão de um palco à frente da igreja.

Normalmente o final do ano anterior é de pensamento, de programação. Depois as coisas em janeiro começam a ganhar fôlego, começamos os contratos com aquilo que é a aldeia, que faz parte da organização mas à qual pedimos uma série de “favores”, desde terrenos a quintais e casas para alojar equipas, de modo a permitir que as coisas aconteçam. É preciso depois afinar a relação com as marcas, que apesar de tudo representam apenas 20% do peso [do orçamento] do festival, mas às quais evidentemente agradecemos muito. Trabalhamos para afinar essas parcerias e para trazer a música mantendo o funcionamento normal da aldeia até à véspera do festival. A aldeia continua a trabalhar em pleno, continuam as missas, as lojas, os cafés, a dinâmica habitual até muito, muito perto do festival. E na verdade vamos aprendendo a gerir o facto de as pessoas começarem a chegar, de tudo isso acontecer.

Outra particularidade este ano passou por investimento em recursos humanos, organizámos um ciclo de formações para equipas. Depois iniciou-se em meados de julho um campo de capacitação juvenil, um grupo organizado de jovens aqui da aldeia e dos arredores que começa a preparar os espaços do festival. E esta segunda-feira recebemos cerca de 100 voluntários de todo o país, que nos ajudam depois nos últimos detalhes — que às vezes são bem mais do que isso — para que tudo aconteça.

O festival continua a ser organizado pela Sport Club Operário de Cem Soldos, uma organização local e sem fins lucrativos, certo?
Sim. No fundo, a missão do Bons Sons coincide com a missão do Sport Club Operário Cem Soldos, que lhe dá vida. Costumo dizer que é a entidade que organiza a dinâmica comunitária que cria o Bons Sons, acho que é um bocadinho por aí. É uma associação juvenil e sem fins lucrativos, com 27 elementos nos seus corpos sociais e que lidera a dinâmica Bons Sons mas não só, também tudo aquilo que acontece em Cem Soldos ao longo do ano. São cerca de 40 eventos, para além de outras atividades relacionadas com ATL, ligação com as escolas, desenvolvimento local.

A última edição do Bons Sons foi em 2019 (© Verónica Paulo)

Verónica Paulo

“Ajudámos a mudar a perspetiva sobre o que é a música portuguesa”

Se excluirmos os anos atípicos de pandemia, tem-se vindo a assistir a uma profusão de novos festivais de pequena e média dimensão, descentralizados e fora das maiores cidades do país. Do contacto que vão tendo com outras pessoas do meio, parece-vos que o Bons Sons pode ter ajudado a indicar o caminho a esses festivais que estão a aparecer? E se sim, que caminho é esse?
É assinalável e completamente louvável que a cultura seja levada a diferentes espaços. Tínhamos a tradição em Portugal de apenas os espaços culturais de renome, os grandes teatros e cineteatros, terem dinâmica. É interessante que comece a haver outro tipo de ofertas culturais, às vezes em sítios inusitados, que não têm propriamente um fim comercial mas que ativam as comunidades. Acho isso muito interessante. Mas nós afastamo-nos um bocadinho da ideia de festival porque achamos que de repente tudo se tornou festival, uma festa com alguns pormenores é tornada festival e afastamo-nos um bocadinho desse conceito. Diria que o Bons Sons é mais uma ideia e um manifesto. Isso foi mais estruturado em 2019, quando escrevemos o nosso Manifesto Bons Sons, com dez pontos essenciais sobre a nossa visão sobre o território e sobre a forma como queremos atuar no meio, como queremos estar, como achamos que as comunidades podem ser um fator dinâmico para o desenvolvimento local. Temos essa ótica de comunidade e achamos que o Bons Sons é um pináculo disso, uma amostra muito feliz da construção de uma comunidade que se quer criativa, com relações e que quer que as coisas aconteçam com diversos pontos de encontro.

Sabemos que o Bons Sons é o Bons Sons e recebe 35 mil pessoas todos os anos. Mas em 2006, quando as coisas começaram, aquilo que era considerado música portuguesa estava restrito a alguns projetos, a alguns músicos. Era muito insípida a produção musical. Humildemente, achamos que contribuímos para que hoje exista uma dinâmica musical assinalável, como se calhar não houve noutro momento da nossa história. As coisas surgem de uma forma muito consistente, com músicos que trocam de bandas e se ajudam uns aos outros. Toda essa flexibilidade e generosidade é interessante. Espero que o Bons Sons tenha contribuído diretamente para isso — fê-lo até programando alguns concertos colaborativos, recentemente…

Haveremos de falar desses concertos. Quanto ao resto, foram coisas que se foram alimentando mutuamente, certo? O Bons Sons terá ajudado a estimular essa dinâmica, mas essa dinâmica também imagino que tenha ajudado a fazer do Bons Sons um evento anual, com muitos concertos de músicos portugueses diferentes a cada ano.
Mesmo a própria educação de públicos… ajudámos a mudar a perspetiva sobre o que é a música portuguesa, não tenho dúvidas. Lembro-me de ser jovem e aos 16 anos não ouvir música portuguesa, tinha até um preconceito sobre o que era a música portuguesa. Como se a palavra em português não pudesse ser usada ou como se os projetos criados em Portugal fossem necessariamente de fraca qualidade. Felizmente não é assim, estamos completamente longe disso hoje em dia.

"Fazemos uma avaliação todos os anos e o que estimámos em 2019 de impacto socio-económico e mediático foi uma contribuição para a região do Médio Tejo em 3,5 milhões de euros. Mas não só. As pessoas sentem-se verdadeiramente do lugar onde estão. Há um sentimento de pertença, vão a outro sítio e dizem que são de Cem Soldos, são do Bons Sons. Não deixa de haver um impacto no reconhecimento, na valorização, no respeito próprio."
Miguel Atalaia, diretor artístico do Bons Sons

Em época de festival, o contributo do Bons Sons para Cem Soldos e para Tomar será mais fácil de medir. Mas para lá destes dias, que lastro é que o Bons Sons teve ou já deixou na aldeia de Cem Soldos e em Tomar?
Estas coisas contaminam-se, os projetos vão-se contagiando e diferentes eventos surgem porque existe um reconhecimento de que somos capazes de o fazer. Em Cem Soldos, isso é muito claro. Há associações que nos chegam a dizer algo neste sentido: que foram claramente contagiadas pela nossa dinâmica e pelo modo como nos organizamos. Tomar vai ganhando uma força muito interessante, com uma série de eventos ligados um bocadinho mais à tradição templária. Mas diria que há números concretos. Fazemos uma avaliação todos os anos e o que estimámos em 2019 de impacto socio-económico e mediático foi uma contribuição para a região do Médio Tejo em 3,5 milhões de euros. Isso é muito concreto.

Para a aldeia, que a mim interessa-me sobremaneira, há impactos diretos e claros. Em 2014 tínhamos uma escola com muito poucas crianças, que estava a caminho de um encerramento precoce. Foi a visão sobre a ideia e dinâmica que um coletivo em Cem Soldos é capaz de trazer que trouxe pais de outros concelhos. A associação [que organiza o Bons Sons] trabalhou muito na mensagem, na comunicação e num projeto para que aquelas crianças estivessem verdadeiramente embrenhadas na comunidade. Hoje ultrapassámos esse cenário, tanto a escola primária como o jardim de infância têm duas turmas. Depois, mesmo ao nível do alojamento, cada vez mais pessoas vêm para Cem Soldos. Assim de cor conseguiria identificar sete ou oito casas que estão a ser reconstruídas por filhos da aldeia, que tinham saído mas que agora querem regressar com as suas famílias e crianças. Isso à escala de uma aldeia com 650 pessoas tem muito impacto e é importante.

E quanto ao contributo imaterial?
As pessoas sentem-se verdadeiramente do lugar onde estão. Há um sentimento de pertença, vão a outro sítio e dizem que são de Cem Soldos, são do Bons Sons. Não deixa de haver um impacto no reconhecimento, na valorização, no respeito próprio. E depois, há outra coisa: temos jovens em áreas profissionais que ensaiaram pela primeira vez no Bons Sons. Fizeram-no experimentando diversas coisas, de forma completamente amadora e voluntária — como todos nós somos. Ensaiaram ali algo e perceberam que era aquilo que queriam fazer da vida. Esse retorno também é muito significativo e deixa-nos felizes.

“Há espaço para tudo no Bons Sons, mas queremos projetos que possam surpreender”

O Miguel acompanha de perto a organização do festival desde 2014, tendo-se tornado recentemente diretor artístico ao substituir o Luís Ferreira, que deixou essa função em 2020. Qual foi o seu primeiro contacto com o festival e que relação teve depois com o Bons Sons até assumir estas funções?
Em 2006 quando o festival surge, e um bocadinho em contraciclo com o que existe na aldeia, eu não estava propriamente envolvido nas dinâmicas da comunidade. Mas sou designer gráfico e comecei a pensar em como aplicar as coisas que fui aprendendo, se calhar um bocadinho já contaminado pela ideia de aldeia, de contribuirmos uns para os outros, de fazermos parte de um coletivo. Foi um bocadinho nesse sentido que por 2013-2014, ingressei na direção da associação [que organiza o Bons Sons], inicialmente com funções na área da comunicação. Posteriormente assumi a presidência da associação. Os anos de 2020 e 2021 foram um bocadinho frustrantes, como é óbvio, devido à pandemia. Tivemos de apostar em algumas coisas diferentes. Mas depois, por questões etárias — porque ainda sou um jovem [risos], mas já tenho 33 anos —, já não poderia assumir novamente a presidência da associação, que está muito bem entregue ao Filipe Cartaxo. Fiquei como diretor artístico do festival Bons Sons.

A herança é pesada, pelo crescimento que o festival foi tendo com o Luís Ferreira, ou facilita-lhe o trabalho?
As duas coisas: a herança é pesada mas também é super generosa. O Bons Sons está muito bem desenhado, a equipa que o desenhou e que o Luís integrava foi afinando o modelo do festival ao longo das edições. O Bons Sons era muito diferente em 2006, foi depois ganhando escala e um outro cuidado que hoje em dia tem. Quando digo que é generosa, é também porque estamos todos em contacto. Tanto o Luís como pessoas que estão desde o início do festival mantêm-se ativamente a ajudar. A ligação é muito próxima até porque somos todos da aldeia e estamos todos cá. Há uma passagem de testemunho, sendo certo que a direção artística é apoiada por muita gente que contribui para a programação, para a parte financeira, para todas as estruturas envolvidas na montagem de um festival.

Bons Sons: em Cem Soldos descobri a terra que nunca tive

Se olharmos para a linha programática dos maiores festivais do país, localizados em grandes cidades, boa parte dos cartazes está assente sobretudo em artistas internacionais. Para o Bons Sons e para outros festivais descentralizados, isso pode até ser uma vantagem? Permite uma diferenciação, integrando a música portuguesa de outra forma?
É diferenciador, mas não deixa de ser também mais arriscado. Agora não tanto, mas no início foi absolutamente arriscado. Ainda por cima tendo sido feito, no nosso caso, por uma associação sem fins lucrativos que tentava angariar fundos para projetos comunitários. Era um risco muito significativo, houve um rasgo de loucura saudável das pessoas que naquela altura fizeram o Bons Sons. Os grandes festivais de massas são muito mais seguros, porque sabem que contratando aquela banda e tendo os recintos que têm e os apoios de marcas que têm, de repente o bolo está feito. Pode haver uma catástrofe, mas aqui também. Não deixa de haver um trabalho de programação e curadoria nesses festivais para ali enquadrar projetos que façam sentido, mas apesar de tudo é um trabalho mais confortável e mais fácil.

Perguntava-lhe isto também por algo em que reparei: o Bons Sons acontece de 12 a 15 de agosto. O facto de um outro festival de dimensão relevante no país, o Paredes de Coura, ter programado para dia 16 um dia exclusivamente com música portuguesa, com 20 artistas e grupos nacionais, em algum momento preocupou-o enquanto diretor artístico?
Não, acho que estamos bastante mais preocupados com o nosso trabalho. Parece uma declaração à jogador de futebol mas é verdade. É claro que a proximidade de datas existe mas não é algo que nos preocupe, continuamos a acreditar muitíssimo no cartaz que trazemos e na novidade do cartaz que trazemos, que não deixa de ser completamente inovador mesmo face a esses nomes ou essa iniciativa. Isto porque temos esta aposta clara na produção nacional e naquilo que de mais novo vai surgindo, neste lugar desconfortável que não é só programar aquilo que vai ser aceite de forma generalizada por todos mas também programar projetos que possam surpreender as pessoas. Acho que quem vem ao Bons Sons, também vem muito à procura dessa surpresa e dessa descoberta.

Que lotação terão este ano e quantos bilhetes têm vendidos nesta fase?
Não consigo dizer o número de bilhetes vendidos porque as coisas evoluem muito rapidamente. Sabemos que estamos a vender bastante bem, de forma similar ao que acontecia em 2019 — se calhar um pouco mais. A lotação é 35 mil pessoas. A nossa intenção é sempre que esgote.

Uma edição do Bons Sons dá lucro? Se sim, estamos a falar de valores de que ordem?
Podemos falar das contas porque são públicas. Apresentamo-las num evento chamado Dia Aberto, em que a direção da associação expõe à aldeia tudo o que aconteceu no ano anterior e o que quer fazer no ano seguinte. As contas do Bons Sons são mostradas aí. A variabilidade é grande. A nível de organização o risco é sempre real, por isso não deixamos sempre de apelar a todos os parceiros e instituições que nos apoiem para que nos ajudem a continuar a criar o festival. Já houve lucros de 100 mil euros, já houve lucros de 30 mil euros — vamos gerindo mais ou menos com valores neste intervalo.

"Queremos muito ser um festival inclusivo, tanto nas questões de defesa de igualdade de género como na própria programação. Não temos, como é óbvio, nenhuma doutrina ideológica. Mas existe uma mostra e um respeito pela diversidade absoluta, pela individualidade. Como quem não quer a coisa, o cartaz é completamente diverso nos planos do género, das ideias e nas acessibilidades para pessoas com deficiências."
Miguel Atalaia, diretor artístico do Bons Sons

O Bons Sons diferencia-se, musicalmente, do que se associa habitualmente em Portugal a uma festa na aldeia. É inevitável isso provocar uma ou outra resistência na comunidade local?
Fazemos estudos de público todos os anos e a aceitação é de 96% a 97%. Estamos completamente confortáveis, até porque as pessoas [da aldeia] fazem parte da organização, ajudam a organizar. Fazemo-lo até por descargo de consciência. Uma ou outra crítica que surge não tem a ver com a programação musical e com as bandas, porque aí há espaço para tudo no Bons Sons — temos 50 bandas ao longo de quatro dias, com nomes completamente diversos no estilo. A questão tem mais a ver com o impacto da implementação de um festival na aldeia, que tentamos contornar com todas as pinças. Casos como: “aquele gerador não pode estar ali porque faz barulho àquela pessoa, é preciso cuidado com aquela janela, o acesso não pode ser este, esta loja está um bocadinho tapada, vamos deslocar o palco”. Esse cuidado que vamos tendo é diário, resulta do contacto com as pessoas, mas uma ou outra inquietação é inevitável. Mas também são quatro dias, não são 365.

Têm ideia de que percentagem de compradores de bilhete é da região e que percentagem é de outros pontos do país?
Não consigo fazer essa análise. Cem Soldos tem entre 650 e 700 pessoas e é a segunda aldeia com mais população do concelho. Tudo o que é residente tem, até por motivos óbvios, acesso ao festival. O concelho tem 40 mil pessoas, 20 mil na cidade [Tomar] e 20 mil fora. Posso dizer que inicialmente, quando o Bons Sons surge e quando começa a ter impacto, foi mais difícil convencer a determinado momento a população da cidade e da região do que propriamente a população de localidades mais afastadas como Porto, Lisboa, Coimbra, Aveiro ou Viseu. A ideia de uma comunidade a fazer um festival era mais vendável nesses locais. Pouco a pouco as coisas têm-se equilibrado. Não consigo avançar uma percentagem mas as coisas estão bastante equilibradas, a ponto de o sucesso de cada edição já depender muito da bilheteira no local. Dependemos muito, já, da bilheteira diária, da bilheteira física.

“Queremos muito ser um festival inclusivo, que respeita a diversidade e a individualidade”

Existe hoje uma discussão em curso sobre a desigualdade de oportunidades na música consoante o género, que vai desaguar depois numa discussão sobre a paridade ou não dos cartazes dos festivais. No caso do Bons Sons, isso foi uma preocupação? Enquanto diretor artístico, como lida com essa discussão que está a decorrer?
Lidamos muito bem e achamos que faz muito sentido levantar todas essas questões. Achamos que a discussão sobre a paridade e a igualdade de género faz absoluto sentido. Queremos muito ser um festival inclusivo, tanto nas questões de defesa de igualdade de género como na própria programação. Não posso deixar de assinalar dois projetos que vamos acolher e que têm uma mensagem, uma intervenção afirmativa: Fado Bicha e A Garota Não. Não temos, como é óbvio, nenhuma doutrina ideológica. Mas existe uma mostra e um respeito pela diversidade absoluta, pela individualidade e por aquilo que as pessoas querem ter vestido, querem ser, querem criar. Como quem não quer a coisa, o cartaz é completamente diverso nos planos do género ou das ideias. É diverso até na área da inclusão de pessoas com deficiências. Temos um plano de acessibilidades muito vigoroso, eu próprio desloco-me numa cadeira de rodas portanto não poderia ser de outra forma. E tentamos, claro, que esta vivência da aldeia seja para todos, para todas as idades, para todos os géneros e para os mais variados estilos, porque achamos que as comunidades são mais ricas nessa diversidade.

Haverá ainda quem acredite que programar um cartaz mais paritário, com maior igualdade de género nas apostas, pode prejudicar a qualidade artística de um festival. Estava a tentar perceber se concordaria com isso ou se acharia um falso argumento, uma ideia que, pelo menos nos dias de hoje, já não tem adesão à realidade.
Acho que não tem adesão à realidade, nem pensar. Os projetos valem por si e em Cem Soldos, quando escolhemos uma banda, escolhemos pela música. O equilíbrio entre homens e mulheres no cartaz acaba por ser natural.

Falou há pouco de concertos colaborativos. A última edição do Bons Sons, em 2019, teve essa particularidade de juntar artistas diferentes em palco, para espectáculos únicos. Este ano a aposta não foi por aí. É uma ideia que poderá ser repescada de futuro?
Sim, sim, é uma hipótese. Correu muito bem. Dá um trabalho também grande e perante as incertezas que já referi [a pandemia], tivemos de ser um bocadinho mais concretos. Mas correu muito bem, foram projetos artísticos muito bem pensados, que revelaram uma grande curadoria — na altura com o acompanhamento particular do Luís [Ferreira]. É algo que provavelmente retomaremos e é algo que foi até copiado por outros festivais passado pouco tempo. Toda a gente gosta de ver e mostra a tal generosidade entre artistas: é incrível ver dois grandes nomes da música portuguesa em cima do palco a criarem e a tocarem juntos.

Concerto no Bons Sons, em 2019 (© Verónica Paulo)

Verónica Paulo

Percalços e momentos únicos: as histórias de Cem Soldos

Gostava de falar um bocadinho sobre a história e o passado do Bons Sons. Li que na segunda edição, em 2008, houve alguma tensão entre a comunidade local e quem chegou de fora para ir ao festival. Consegue detalhar o que aconteceu nesse ano?
O que acontece é que tinha havido uma primeira edição em 2006 e na altura a aldeia não era “cercada” com bilheteira [o festival tinha entrada livre, sem controlo de entradas na aldeia]. Em 2006 existe esse primeiro impacto, as coisas correm bem para edição de arranque. Quando em 2008 vem muito mais gente, sem bilheteira, sem entradas [controladas], sem restrições, foi um bocadinho complicado: as pessoas subiam aos telhados para ver concertos, sujaram a aldeia… na altura não havia preocupações ambientais, portanto também havia esse impacto. Felizmente houve uma persistência grande em retomar as coisas.

Há um concerto nesse mesmo ano de Kumpania Algazarra que, segundo li, começou de noite e acabou de dia. Quantas horas durou?
Também não sei exatamente quantas horas durou…

Mas foram muitas?
Sim. Hoje em dia estamos, claro, mais rigorosos nisso, por questões de segurança e relacionadas com a quantidade de concertos. Mas esse episódio aconteceu. Houve um ou outro momento particular na história do festival. Houve um concerto em que ocorreu um intervalo na música, o sino tocou, houve uma senhora que saiu à janela no primeiro andar em que vivia — a Dona Lurdes — e de repente o público percebeu que havia um compasso de espera, largou o concerto e começou a cantar a ‘Menina Estás à Janela’ àquela senhora. Foi lindo. Houve um outro momento incrível de uma criança que a determinado momento do festival, talvez ao final da tarde, começou a dançar no meio da praça e as pessoas à volta começaram todas a imitá-lo. De repente estavam 50 ou 60 pessoas a imitar aquela criança. A criança completamente entusiasmada, a fazer os gestos, e toda a gente a imitava. Já tivemos momentos muito felizes.

Houve uma edição marcante e um concerto marcante para o crescimento do festival? Concretizando: as 22 atuações em 2010, o crescimento do festival nesse ano com novos palcos e o início, aí, do Bons Sons como festival de entrada paga, vieram definir um novo caminho para o Bons Sons?
Não sei se consigo sinalizar pessoalmente essa edição de forma particular. Até por estar muito envolvido na organização desde 2014, sei que houve escolhas completamente determinantes ao longo da história — algumas que fazem parte do conhecimento público e outras que nunca passaram pelo conhecimento público, mas que são decisões que vão acontecendo e determinando o crescimento do próprio festival. Tenho a ideia clara de que as coisas foram evoluindo passo a passo. “Fechar” a aldeia [a visitantes sem bilhete] foi determinante, claro que foi. Os copos reutilizáveis vieram dar uma limpeza enorme. As relvas nos principais palcos também foram muito importantes. Houve uma série de iniciativas, ao longo do tempo, que foram sendo determinantes para o que o festival é hoje.

Em 2012 houve um problema bicudo: a continuidade do festival chegou a estar por um fio devido ao prejuízo que essa edição deu. Porque aconteceu esse prejuízo e, já agora, como se ultrapassou isso?
Houve uma série de entradas falsas, uma falsificação de pulseiras. Foi um pouco dramático. Se calhar éramos um bocadinho maçaricos e inexperientes, fomos aprendendo com o tempo. Na altura foi um bocadinho dramático, foi.

Já em 2018 houve uma polémica com um concerto (de Homem em Catarse) que aconteceu na Igreja de São Sebastião. Surpreendeu-o o distanciamento da igreja em relação ao concerto, após o assunto ter chegado aos jornais?
De facto houve um distanciamento, mas foi mais um distanciamento mediático. Conseguimos logo na edição seguinte aproximar-nos. Se calhar era um não assunto até então, porque os concertos aconteciam [ali]. E foi natural que nesse a dado momento o concerto ganhasse um bocadinho mais de vida. Mas do conhecimento que tenho e do que foi visto, não houve propriamente um desrespeito pela igreja: havia umas palmas, havia um bocadinho mais de entusiasmo mas não foi dramático.

De qualquer forma, as relações são para serem construídas ao longo do tempo e essa relação foi trabalhada, foi retomada. Hoje em dia, temos um voto de confiança a cada edição. A tal ponto que… nós usamos sistemas cashless, com carregamento da pulseira. Quem tiver dinheiro na pulseira no fim do festival pode, claro, pedir a devolução. Mas quem quiser pode deixar esse dinheiro em pulseira para nós, enquanto associação, usarmos em diferentes iniciativas. Este ano, o que ficar nas pulseiras irá diretamente para a requalificação do património histórico que é a Capela de São Sebastião, porque é um palco do Bons Sons e porque faz muito sentido para a comunidade. Portanto, estamos completamente de mãos dadas e sintonizadas.

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