Intervenção de Catarina Martins

No encerramento da XII Convenção do Bloco de Esquerda

A esta convenção apresentaram-se cinco moções e quatro listas para a direção, que foi constituída na proporção dos votos recebidos por cada uma. Trabalharemos juntos no desafio imenso de fazer crescer esta esquerda de confiança. Sabemos que não há nenhum outro partido que cumpra regras de debate plural como o nosso e assim continuaremos. Não temos unanimismo e não o lamentamos; não temos um pensamento único e não o desejamos; não temos devoção a um ritual porque é a política que nos une. 

Uma das novidades desta convenção é que a direção de Catarina Martins, que junta a corrente que lidera (e que integra nomes como Mariana Mortágua, Jorge Costa e Francisco Louçã) à outra corrente maioritária, encabeçada por Pedro Filipe Soares, terá agora de lidar com um número maior de críticos no seu elenco. A moção E, do grupo de críticos Convergência, conseguiu 20,3% dos votos e ocupa assim uma parte relevante da direção alargada do Bloco, a Mesa Nacional — é difícil dizer quanto cresceu, uma vez que não se apresentou a votos na última convenção, mas o histórico Mário Tomé, por exemplo, não fazia parte da direção e passou a integrá-la agora. Catarina Martins promete não desvalorizar os críticos e manter um diálogo próximo com eles, uma promessa relevante dado que uma das principais queixas que une os vários grupos de críticos internos é uma suposta falta de democracia e debate interno no BE.

Desde que o Bloco é o terceiro partido e que afastámos o PSD e o CDS do governo, e não foi ontem, a direita só tem um objetivo: criar uma fronda que lhe permita voltar ao poder, e isso exige nada menos do que aniquilar a força popular da esquerda. (…) Agora a direita está mais afoita, porque a sua política está a mudar, os ventos de Trump e Bolsonaro, primeiro, ou de Ayuso em Madrid, mais recentemente, entusiasmam os imitadores, que soltaram os animais ferozes da violência política e do lixo comunicacional. Nesse mundo novo, o PSD não hesita em caminhar para uma aliança com a extrema-direita, que aliás é um braço laranja que se destacou mas cujo futuro só depende de influenciar o seu antigo partido. (…) Respondemos como sempre, com a força da liberdade e da democracia. Por isso, o Bloco é e será a barreira contra a direita e a extrema direita.

Esta é uma das mensagens-chave desta convenção: o Bloco quer apresentar-se como a força política que vai fazer frente à direita, especialmente do Chega, e acredita que a mensagem passará de forma eficaz não só para o eleitorado de esquerda como também para o dito eleitorado “esquecido” pelos políticos para quem André Ventura fala. O anúncio é claro: o BE “é e será a barreira contra a direita e a extrema-direita”. Há poucas horas, o dirigente José Manuel Pureza fazia um dos discursos mais aplaudidos da convenção, garantindo que “se a extrema-direita quer exterminar o Bloco”, numa referência às declarações da candidata do PSD à Amadora, Suzana Garcia, “é porque é a força que mais lhe faz frente e que a vai derrotar”. Quanto mais a direita e o Chega atacam, mais o BE aproveita.

Já se percebeu que, ao fazer esta escolha vertiginosa, Rui Rio quer levar a extrema-direita para o governo e, por isso, perdeu capacidade de disputar o centro ao PS. O PSD já não sabe fazer de outra forma e não se atreve sequer a pensar nisso. O PSD é um fantasma que só vibra quando alguém grita “morte ao socialismo”. À esquerda, essa desistência da direita coloca ainda maiores responsabilidades: toda a política nacional será determinada pela força da esquerda para conseguir as soluções para o país. Só há portanto uma forma de continuar a vencer esta direita tingida de extrema-direita: que a esquerda lute pela maioria, que nunca se desvie da obrigação de ser a voz e a força do povo que vai para o trabalho apertado nos comboios, que não sabe se a filha que concluiu o curso consegue sair da empresa de trabalho temporário, que se entristece com o interior que se despovoa, que vê as doenças e o clima a correrem contra nós, que sobrevive com uma pensão contada ao cêntimo – e este povo não aceita a continuação do marasmo.

Cá está a referência ao tal povo esquecido, mas mais importante do que isso, o desenho do xadrez político que o BE quer jogar nos próximos anos. Como diz Catarina Martins, para o partido é um dado adquirido que Rui Rio “perdeu a capacidade de disputar o centro ao PS” pela recusa em afastar claramente acordos com o Chega, pelo que cabe à esquerda fortalecer-se para oferecer uma alternativa à “desistência da direita”, “lutando pela maioria”. A estratégia foi desenhada de forma ainda mais específica um pouco antes. Voltando ao discurso de José Manuel Pureza: “O PS pode até pensar que o idílico entre PSD e Chega lhe dará o centro de mão beijada e que isso se confirma com políticas centristas. Puro engano e perigoso”. Se o BE já tinha avisado, na moção apresentada pela maioria da direção, o PS contra tentações de seguir “vias centristas”, agora concretiza: os bloquistas acreditam que o centro não se conquista com políticas centristas, mas assumindo uma alternativa forte, neste caso de esquerda, que assuma essa polarização e lute pela maioria. Curiosamente, uma estratégia que o socialista Pedro Nuno Santos defende e que defendeu antes das eleições presidenciais, quase ponto por ponto.

E se alguém nos pergunta como o faremos, que relevância tem a nossa proposta, com que força lutaremos pela saúde e pelo emprego, pelo salário e pela pensão, a resposta é clara: com a força do nosso mandato popular, com a força das ideias com que nos apresentamos ao país e com a clareza e consistência do nosso compromisso.

A referência à “relevância” do partido não é inocente: uma das questões que o partido enfrentou quando decidiu votar contra o último Orçamento deste Governo foi, por um lado, se seria prejudicado a nível eleitoral — e acredita que não será, encarando as presidenciais como um tropeção em circunstâncias muito concretas — e se a ideia transmitida seria que o BE é irrelevante na definição de políticas fundamentais para o país, tendo-se afastado do diálogo com o PS. A coordenadora do partido garante que não e na cabeça dos bloquistas está precisamente a ideia contrária: a irrelevância chegará se o partido se comprometer com medidas que são, sobretudo, do PS sem mostrar que é um negociador exigente e que pode mesmo esticar a corda até partir quando é preciso.

O Governo não quer aceitar nada que reorganize a defesa do emprego ou o combate à pobreza. Pelo nosso lado, mantivemos a força e determinámos as disputas fundamentais destes dias – do sistema financeiro, ao trabalho, dos apoios sociais às carreiras do SNS – e só vemos motivos para insistir. Com mais de meio milhão de desempregados e depois de subsídios massivos a grandes empresas, acha o governo que se deve manter a facilidade de despedir? Depois de se saber como foram feitos calotes monumentais no BES e no Novo Banco, e depois de o Tribunal de Contas ter afirmado que estão a ser pagos indevidamente prejuízos do banco, acha o governo que as contas não devem ser verificadas ou que o contrato não pode ser alterado? (…) Já sabem a resposta.

Catarina Martins até podia ter continuado a declaração e rematado com um “tínhamos razão”, porque é essa uma das grandes linhas narrativas do Bloco nesta altura e em particular nesta convenção. As prioridades que o BE levou à última negociação orçamental — em que não houve acordo — são aquelas em que vai insistir no próximo, com uma confiança renovada por acreditar que o caso do Novo Banco ou o impacto da pandemia (e não só) no SNS lhe dão força, junto do eleitorado, para dizer que as propostas do BE eram justas.

E, assim, volto à prioridade das prioridades: o emprego. O que existe e o que tem de ser criado. E que exige leis laborais fortes, para que o investimento se traduza em mais salário. Sem mexer nas leis laborais, o esforço de recuperação pode bem ir parar aos bolsos dos mesmos que se esquecem de tudo nas comissões de inquérito, mas que se unem sempre para reclamar contra leis do trabalho fortes. (…) Começamos já esta semana, no Parlamento, com legislação forte para responsabilizar os donos das explorações agrícolas ou das obras, bem como os donos das terras, pelos crimes contra os trabalhadores. E é só o começo: repor os direitos contra o despedimento, combater o trabalho temporário, garantir contrato efetivo contra a precariedade, recuperar carreiras no público como no privado.

Depois de enumerar prioridades do BE como clima e habitação, a coordenadora do partido volta “à prioridade das prioridades”: o emprego. É uma das chaves desta convenção: se o emprego é a grande prioridade e se, tal como no ano passado, o BE, ao contrário do PCP, faz depender aprovações de Orçamentos de alterações às leis laborais e da revogação das leis da troika, passa a ser muito provável um desentendimento com o PS — é que este é o tema em que a esquerda nunca se conseguiu entender durante a geringonça e que foi usado como argumento pelos socialistas para rejeitar uma renovação do acordo com o BE, em 2019.

Em Portugal, é mais fácil encontrar uma agulha no palheiro de um grande devedor do que um milionário que pague todos os seus impostos. Justiça fiscal, a começar pela medida tão radical de igualdade de tratamento de todos os tipos de rendimento, é a condição para o nosso país aliviar rendimentos médios enquanto financia um plano de habitação, a transição climática no tempo certo e uma transição social para o pleno emprego. Essas são as prioridades.

Outra das prioridades é a justiça fiscal, aqui com uma nuance: o Bloco aposta tudo neste tema não só porque é um dos que são tradicionalmente seus — e Francisco Louçã defendia ainda no sábado uma aposta maior nessa bandeira — mas porque o contexto atual encaixa nisto. Com a auditoria do Tribunal de Contas sobre o Novo Banco ainda fresca e as audições aos devedores a decorrer no Parlamento, e Mariana Mortágua a renovar o seu protagonismo nessa comissão de inquérito, o timing pode ser certeiro para apostar em medidas que o Bloco acredita serem populares, especialmente com este contexto.

A quem duvidar da importância do Bloco nas autárquicas, peço apenas um exercício: veja o que fizemos com 7% na Câmara Municipal de Lisboa. (…) Difícil, mas estamos a fazer; nós já mudámos a política autárquica. Esta campanha começa com novos patamares de exigência, graças a esse trabalho; ao trabalho dos autarcas do Bloco em todo o país.

A líder bloquista fala em “novos patamares de exigência” para as autárquicas, mas ainda sem estabelecer fasquias que possam ajudar a determinar o que será uma vitória ou uma derrota para o BE nas eleições deste ano. Não se espera umas autárquicas especialmente determinantes, porque se Catarina Martins refere que há quem “duvide da importância do BE nas autárquicas” é porque o partido tem mesmo pouca implantação local, pelo menos ao nível dos presidentes das autarquias (não lidera nenhuma). Mesmo assim, há referências a ter em conta: a líder fala da experiência de acordo com o PS em Lisboa, que considera positiva — depois da polémica Robles — pela influência do BE no executivo de Fernando Medina; o BE quer manter esse lugar de vereação e idealmente ter uma percentagem suficiente para manter a influência. A chave para medir os resultados do BE deverá ser olhar para os resultados do partido nas áreas metropolitanas e perceber se haverá acordos pós-eleitorais nomeadamente com o PS.