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"O Problema dos 3 Corpos". A série de ficção científica que pôs a China a discutir o futuro — mas também o seu passado

Criadores da "Guerra dos Tronos" decidiram adaptar uma obra de ficção científica chinesa e provocaram irritação no país. Mas o governo de Xi Jinping também sabe como tirar proveito do impacto Netflix.

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Tudo começa com um fundo negro e as palavras “Pequim, Universidade de Tsinghua, 1966”, em inglês. As primeiras imagens que surgem depois mostram uma multidão em frente a um palco e a língua que se ouve, desta vez, é mandarim. Estamos numa das “sessões de crítica” da Revolução Cultural chinesa, promovida por Mao Tsé-Tung. Um professor universitário de Física é trazido para o palco e é-lhe exigido que renegue a Teoria da Relatividade e a Teoria do Big-Bang, que ensinou nas suas aulas. O homem recusa-se — é então espancado até à morte, perante o olhar da multidão e da sua própria filha.

Esta é a cena inicial de “O Problema dos 3 Corpos”, uma série de ficção científica criada por David Benioff e D.B. Weiss — autores da adaptação televisiva da “Guerra dos Tronos”. Estreou no final de março na Netflix e é inspirada na obra literária com o mesmo nome, do escritor Liu Cixin — um sucesso de vendas nacional e internacional, que recebeu o Prémio Hugo, o mais importante da literatura de ficção científica.

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A série "O Problema dos 3 Corpos" estreou na Netflix no final de março

Getty Images for Netflix

À primeira vista, uma cena como a da Universidade de Tsinghua parece deslocada num épico de ficção científica, onde a Humanidade se debate com uma invasão provável um grupo alienígena, os Trissolaris. E, no entanto, a cena não só é essencial para explicar parte da trama que se desenvolve a seguir — e que envolve um grupo de físicos, um membro dos serviços secretos britânicos e muitos conceitos científicos —, como ilustra a dimensão política em que está envolta esta adaptação para uma plataforma de streaming ocidental.

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A Netflix não é permitida na República Popular da China. E, no entanto, logo no dia da estreia de “O Problema dos 3 Corpos”, a série foi descarregada de forma ilegal mais de 90 mil vezes dentro do país. Um dia depois da estreia, a hashtag com o nome da série já tinha sido usada mais de um milhão de vezes na rede social mais popular da China, a Weibo.

Num país com mais de 1,4 mil milhões de pessoas, são números limitados. E, no entanto, são muito superiores ao que é habitual para um programa de televisão ocidental — a que se somam todos aqueles que conseguem aceder à Netflix através de uma VPN  (rede privada que permite contornar as proibições de acesso a uma plataforma online em determinados países).

Talvez ainda mais relevante é o facto de a discussão nas redes sociais chinesas ser neste momento acesa, com muitos a discutirem a versão “ocidentalizada” de um clássico da literatura contemporânea chinesa. “A Netflix está só a tentar agradar ao gosto ocidental, especialmente com a cena inicial”, é um dos exemplos dos vários comentários críticos que se encontram na Weibo, segundo o New York Times.

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Uma das campanhas da Revolução Cultural chinesa

Bettmann Archive

Kenny Ng, professor especialista em media culturais da Universidade Baptista de Hong Kong, explica ao Observador de onde vêm as preocupações chinesas: “Sendo este um trabalho originalmente chinês, exige uma embalagem cultural chinesa e há preocupações com uma possível deturpação e redução cultural”. Já Josh Stenberg, especialista em Estudos Chineses da Universidade de Sidney, analisa toda esta atenção de outra forma: “Os produtos culturais da RPC têm dificuldade em ter impacto na cultura popular no Ocidente. É claro que pessoas com agendas internacionalistas ou ultranacionalistas estão a prestar particular atenção a esta adaptação.”

“Acredito que o departamento de propaganda do Partido Comunista Chinês [PCC] e o gabinete cultural prestaram muita atenção a esta adaptação da Netflix e ao seu impacto potencial nas dinâmicas geopolíticas.”
Hua Li, professora de Estudos Chineses na Universidade Estatal do Montana

Uma atenção que vem até das esferas próximas do poder. Como destacou o professor Ng, “o governo [chinês] não demonstra qualquer intenção de reduzir esta atenção”, apesar de este produto ser consumido na China através de uma plataforma ilegal. Hua Li, professora de Estudos Chineses na Universidade do Estado do Montana, diz que Xi Jinping está atento: “Acredito que o departamento de propaganda do Partido Comunista Chinês [PCC] e o gabinete cultural prestaram muita atenção a esta adaptação da Netflix e ao seu impacto potencial nas dinâmicas geopolíticas.”

As críticas nas redes sociais chinesas e as reações dos jornais próximos do Partido Comunista Chinês

As críticas que circulam nas redes sociais chinesas são de vários tipos. Um dos elementos que mais incomodou a maioria foi o facto de os criadores da “Guerra dos Tronos” terem alterado a história inicial e recorrido a um elenco de vários países e etnias. No livro original, todas as personagens são chinesas. Agora, há uma latina, um negro e vários caucasianos (uma das poucas personagens que se mantém chinesa é um vilão). Na obra original, a ação passa-se quase toda em Pequim; na série, o centro é Londres.

Os envolvidos no projeto garantem que o objetivo daquelas mudanças era apenas o de “internacionalizar” a história e torná-la mais apelativa a uma audiência ocidental. “Não temos nenhum elemento com a intenção de manchar a imagem da China”, garantiu o realizador dos dois primeiros episódios, Derek Tsang, ele próprio de Hong Kong.

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O elenco de "O Problema dos 3 Corpos" é composto por atores de diferentes etnias

Getty Images for Netflix

Mas o incómodo não surgiu apenas nas redes sociais. No China Military Online, um site conhecido pela sua proximidade às ideias do Exército Popular de Libertação chinês, um artigo denunciava que o “politicamente correto” estaria a ser usado pelos Estados Unidos para “praticar uma hegemonia cultural”. “Os chamados pluralismo e inclusão não conseguem esconder a sua enraizada discriminação e hostilidade em relação a outras civilizações”, dizia o artigo, citado pelo South China Morning Post.

Kenny Ng explica que a atenção dada ao tema por um órgão próximo do Partido Comunista Chinês (PCC) mostra como o governo de Xi Jinping vê com bons olhos as críticas que têm surgido nas redes sociais do país: “Reforçam a ideia de que o Ocidente não consegue contar de forma rigorosa a História da China e que mantém preconceitos contra o país”. E, por isso, o Partido cavalga o assunto — apesar de algumas das críticas dos internautas serem mais focadas em questões como a fidelidade à obra original e ou o sucesso da adaptação do ponto de vista narrativo e criativo. “As críticas têm sido mais focadas na ‘des-chinezação’ de ‘O Problema dos 3 Corpos’ do que em acusações de que a série tenciona difamar a China”, resume o professor Ng.

O jornal Global Times (diretamente ligado ao partido) publicou um artigo onde se denuncia “a tentativa deliberada de destacar as críticas negativas dos espectadores chineses” por órgãos de comunicação social "como a CNN e a Voice of America".

Precisamente por isso, o PCC tenta recentrar a discussão. No início do mês de abril, o jornal Global Times (diretamente ligado ao partido) publicou um artigo onde se denuncia “a tentativa deliberada de destacar as críticas negativas dos espectadores chineses” por órgãos de comunicação social “como a CNN e a Voice of America”. No dia seguinte, o mesmo jornal volta a abordar o tema num editorial, destacando a pluralidade de opiniões dentro da sociedade chinesa sobre esta adaptação e elogiando o debate.

O professor Steinberg destaca como o Global Times é um bom termómetro para perceber o que se passa dentro do PCC e diz que, neste caso, o jornal revelou uma opinião “bastante equilibrada”. O que pode indicar que a série não está a ser recebida como um completo ataque à República Popular da China — nem sequer pelas mais altas cúpulas do partido.

O tabu da Revolução Cultural, que afetou desde o autor da obra ao Presidente chinês

O que não significa que não haja incómodos. Talvez o tema mais sensível para a audiência chinesa não seja tanto a “des-chinezação” do elenco, mas o facto de uma obra de ficção científica abordar de frente um período tabu como a Revolução Cultural.

Isso foi assumido por alguns dos membros chineses ou com origens chinesas da equipa de “O Problema dos 3 Corpos”. O produtor executivo Alexander Woo quis mostrar a cena inicial da série à sua mãe, para avaliar se era realista. O realizador Derek Tsang declarou que é importante “mostrar a toda a gente o quão ridículo foi aquele período”. E a atriz Rosalind Chao foi ainda mais longe: “Provavelmente vou ser proibida de entrar na China por isto, mas tenho um primo que foi isolado e obrigado a viver no meio dos porcos durante 10 anos”, afirmou, referindo-se a uma das práticas correntes da Revolução Cultural, a de enviar para zonas rurais alguns dos “censurados”. “Ele agora está na América e eu só soube disto na última Ação de Graças, por ele não querer comer fiambre. Eles não falam sobre isto, está entranhado.

“A Revolução Cultural foi um período anormal e a maioria destes livros [de ficção científica] foram banidos. As pessoas tinham medo deste tipo de literatura. Muitas vezes escondiam-na debaixo da cama e eu às vezes encontrava [os livros] e lia-os, como ‘Viagem ao Centro da Terra’ ou ‘Vinte Mil Léguas Submarinas’.”
Liu Cixin, o autor da obra original "O Problema dos 3 Corpos"

A discussão do período da Revolução Cultural é ainda hoje um tópico delicado na China, apesar de o Presidente Xi Jinping ter sido um dos milhares de chineses diretamente afetados. Xi foi declarado um “contra-revolucionário” por uma multidão, onde se incluía a sua própria mãe, quando tinha 13 anos. Em causa estava o facto de o pai, membro do PCC, ser um dos visados numa purga interna.

E, mesmo assim, nem com Xi Jinping o tópico da Revolução Cultural deixou de ser tabu no país. “Isto é evidente no facto de, na internet chinesa, os caracteres chineses wenge 文革 (Revolução Cultural) ainda serem censurados”, nota a professora Hua Li. “Há décadas que o governo chinês desencoraja a investigação académica, os retratos cinematográficos realistas e a reportagem de investigação sobre o tema da Revolução Cultural.” Em 2020, o LA Times contou o caso de uma professora universitária que acabou afastada, por dar algumas aulas focadas na Revolução Cultural — foi denunciada por alguns dos seus alunos.

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O Presidente Xi Jinping tem defendido a importância de projetar a China como um país tecnologicamente desenvolvido

Getty Images

O autor da obra original “O Problema dos 3 Corpos”, Liu Cixin, também já assumiu em público a influência deste período conturbado da História da China na sua vida: “A Revolução Cultural foi um período anormal e a maioria destes livros [de ficção científica] foram banidos. As pessoas tinham medo deste tipo de literatura. Muitas vezes escondiam-na debaixo da cama e eu às vezes encontrava [os livros] e lia-os, como ‘Viagem ao Centro da Terra’ ou ‘Vinte Mil Léguas Submarinas’”, contou há dez anos.

Na mesma entrevista, dada ao Wall Street Journal, Cixin afirmou ter escolhido a cena da “sessão crítica” para funcionar como ferramenta narrativa que explicasse a misantropia de uma das personagens (a filha do físico que vê o pai ser morto): “Em toda a [História da] Humanidade, só duas coisas podiam fazer isto: uma era a Revolução Cultural, a outra era o Holocausto Nazi.”

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Uma multidão de jovens numa ação de promoção do livro de Mao-Tsé Tung durante a Revolução Cultural

XINHUA/AFP via Getty Images

No livro original, contudo, a cena da “sessão crítica” não é a que abre o livro e está antes diluída dentro da narrativa. Não por falta de vontade do autor: quando o tradutor Ken Liu lhe sugeriu usar a cena no início do livro na versão em inglês, Cixin respondeu “Era assim que eu queria originalmente”. Não o fez por temer a censura. Diluir a “sessão crítica” dentro do livro já lhe foi permitido porque, nota a professora Hua Li, “os livros chineses têm sido alvo de uma censura menos dura do que os filmes ou as séries de televisão”, por terem menos público.

Mas agora, com a adaptação da Netflix, esse impacto chega através de um meio audiovisual. Uma decisão que o académico Josh Stenberg classifica de “vigorosa”, por captar de imediato a atenção da audiência no Ocidente. Mas qual o seu impacto dentro da China? Possivelmente misto, diz o professor. “É claro que isto pode provocar os nacionalistas. Mas é importante lembrar que muitos dos espectadores podem apreciar esta abordagem honesta a um período relativamente recente, que ainda é tabu. E que [essas pessoas] só não têm expressado essa opinião abertamente.”

A ficção científica como trunfo para a República Popular da China

Apesar das declarações de Liu Cixin sobre a Revolução Cultural, o autor faz questão de frisar nas várias entrevistas que dá que não se considera um autor político. Mas a política infiltra-se, quer Cixin queira quer não. O sucesso literário de “O Problema dos 3 Corpos” — que chegou a ser recomendado por figuras internacionais como Barack Obama e Mark Zuckerberg — fez que com Liu Cixin desse nas vistas: “Chamou a atenção dos media chineses e do governo chinês. E ele tornou-se um ícone da ficção científica chinesa, bem como um símbolo do soft power chinês em terreno internacional”, resume Hua Li.

O próprio género da ficção científica presta-se a leituras por vezes políticas, com o mesmo a acontecer com “O Problema dos 3 Corpos”. Há quem identifique na obra paralelos com a realidade geopolítica atual, nomeadamente no que diz respeito à teoria da “Floresta Negra” — “Cada civilização é como um caçador armado numa floresta negra: quando vê outro caçador, não tem hipótese senão disparar”, resume o autor sobre o conceito.

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Liu Cixin, autor da obra literária original, que venceu o Prémio Hugo

China News Service via Getty Ima

Esta visão de um confronto entre civilizações é explorada na obra como sendo a da Terra contra uma de alienígenas, em que só uma das partes pode sobreviver. Outros não hesitam em ler nisto uma metáfora para a relação da China com o Ocidente, em concreto com os Estados Unidos. Joel Martinsen, tradutor do segundo livro da trilogia de Cixin, diz isso mesmo: “Não é difícil ver paralelismos entre os Trissolaris [os extraterrestres] e os ímpetos imperialistas da China, guiada por uma fome de recursos e medo de ser extinta.” Outros interpretam a história precisamente ao contrário: a de que a China é a “Terra”, em risco de invasão pelos Trissolaris (os Estados Unidos).

Ken Liu, o tradutor para inglês de “O Problema dos 3 Corpos”, explica que o próprio processo de tradução de qualquer obra de ficção científica chinesa é difícil por isso mesmo: “Muitos escritores chineses são habilidosos a escrever de forma ambígua, de maneira a que haja vários significados no mesmo texto. Tenho de lhes perguntar: ‘Quão explícito queres que seja?’”

No caso desta obra, as interpretações de recontro de civilizações são, para o professor Stenberg, “legítimas” e comuns: “O Ocidente também tem um confronto frequente com o seu passado imperalista e qualquer história de contacto com aliens pode ser entendida como Colombo, [Jacques] Cartier ou o Capitão Cook”. Mas a interpretação, afirma o académico, “diz respeito aos leitores”, não ao autor.

Hua Li também considera que essas leituras têm sido “exageradas” por académicos: “A visão de Liu Cixin sobre a ficção científica é bastante mais sublime do que um mero comentário à geopolítica contemporânea”, afirma a investigadora da Universidade do Montana. Kenny Ng concorda: “O pessimismo de Liu Cixin sobre os valores da Humanidade estende-se a áreas como o ambiente, o pós-humanismo, o pós-colonialismo.”

“A cobertura mediática, o apoio estatal e a resposta entusiástica do mercado livreiro fizeram de ‘O Problema dos 3 Corpos’ um nome conhecido, mas também criaram oportunidades para o desenvolvimento da ficção científica chinesa que pode ser visto como um novo ‘Made in China’”.
Kenny Ng, professor de media culturais na Universidade Baptista de Hong Kong

Mesmo que não haja uma mensagem taxativa do autor no campo geopolítico, não há dúvidas de que o sucesso da sua obra acaba por ter reflexos nessa mesma área, dizem os vários especialistas ouvidos pelo Observador. “O discurso mainstream na China reconhece que a ficção científica se tornou uma ‘janela’ para o desenvolvimento do país”, nota Kenny Ng. “A cobertura mediática, o apoio estatal e a resposta entusiástica do mercado livreiro fizeram de ‘O Problema dos 3 Corpos’ um nome conhecido, mas também criaram oportunidades para o desenvolvimento da ficção científica chinesa que pode ser visto como um novo ‘Made in China’”.

A professora Hua Li concorda e acrescenta uma dimensão particular: a de como a ficção científica ajuda a promover a ideia de uma China tecnologicamente avançada. “A promoção da ficção científica encaixa no plano estratégico do governo chinês, porque é associada ao avanço cientifico e à inovação tecnológica”, afirma. Como exemplo, a académica destaca o discurso do líder Xi Jinping no 20.º Congresso do PCC, em 2022, quando este apelou à nação para que “acelere a aplicação de um desenvolvimento estratégico orientado pela inovação e acelere a autosuficiência tecnológica de alto nível”.

No meio deste contexto, “O Problema dos 3 Corpos” pode servir precisamente para estimular a visão internacional da China que o próprio regime deseja: a de um país inovador e tecnologicamente avançado. No fundo, apesar das críticas vindas de dentro da China, a série da Netflix pode ser um trunfo para a República Popular da China. E o Partido Comunista Chinês pode dar-se ao luxo de permitir que o mundo veja a representação de uma “sessão de crítica”, em troca de ter um instrumento de soft power como não tinha há anos.

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