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O regresso do Mourinhismo: como o futebol feio de França e Portugal deu cabo dos românticos

De 2014 para cá os maiores troféus acabaram nas mãos de quem não tem medo de jogar feio e a partir de uma acampamento em frente à própria baliza: adeus ao tiki-taka, bem-vindo de volta, autocarro.

Podia tudo ter sido muito diferente: quando Mario Gotze se isolou, dominou de peito e depois, esticando o pé direito, colocou em jeito fundo das redes, ninguém imaginava que os próximos quatro anos nos trouxessem fruta feita, foram designar o regresso do resultadismo ao trono do futebol mundial.

Era suposto – entre outras predições que pareciam inabaláveis – que, depois do golo decisivo na final do Campeonato do Mundo de 2014, Gotze viesse a ser o novo Messi, um Messi menos Gaudi e mais Bauhaus, mas ainda assim um Messi, para mais sendo treinado por Pep Guardiola, o homem que é responsável pela “criação” do argentino e que entretanto se mudara para a Baviera.

[o golo de Gotze em 2014:]

O futebol perfumado venceria; e Leonel, depois de coleccionar Champions e Bolas de Ouro, imitaria Maradona, conduzindo a Argentina ao Campeonato do Mundo após cerca de apenas um milhão de passes à entrada da área adversária. O tiki-taka, na sua versão espanhola ou na versão alemã espalhar-se-ia pelo mundo e a ribalta seria ocupada por milhões de rapazes de escassos centímetros e imenso labor na ponta da bota. O futebol físico, bruto, defensivo, estava enterrado, tornar-se-ia apenas memória desses tempos obscuros em que os humanos, ainda pouco esclarecidos, não haviam descoberto a languidez de uma finta, a delicadeza de uma trivela.

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Não foi bem assim: a Mario traiu-o o corpo – o ano passado foi descoberto que o internacional germânico sofre de uma estranha forma de mialgia que o cansa para lá do que seria esperado num desportista profissional. Ainda não há diagnóstico oficial mas o futebol de toque no pé também parece sofrer do mesmo: de 2014 para cá os maiores troféus do desporto-rei acabaram nas mãos de quem não tem medo de jogar feio, longo e a partir de uma acampamento acantonado em frente à própria baliza: adeus ao tiki-taka, bem-vindo de volta, autocarro.

Em tempos idos, os Europeus e os Mundiais ainda eram a melhor forma de aferir a variedade futebolística à face da Terra, as diferenças entre os estilos: em 1986 ainda se podia dizer que os ingleses jogavam longo, que os italianos praticavam o catenaccio, que os argentinos (ou um em particular) tinham magia, por oposição aos alemães, mecanizados mas limitados na capacidade de improviso.

Portugal venceu o Europeu de 2016 montado num autocarro; França saca o Mundial sem sair da tracção atrás. Na Champions as últimas três edições pertenceram ao Real Madrid e a de 2015 a um Barça, de Luis Enrique, que rejeitou a posse de bola em troco de um jogo mais directo.

Vinte e oito anos mais tarde é difícil dizer o mesmo – e se tinham saudades da expressão “num mundo globalizado” pois aqui vem ela: num globalizado e pós-lei Bosman, os jogadores circulam quase livremente, levando para outros países as características do seu país de origem, que por sua vez é “colonizado” pelos estrangeiros que para lá vão jogar. Além disso, os seleccionadores nacionais não são obrigatoriamente do país que treinam e, como se não bastasse, todos os jogos e mais alguns são transmitidos na televisão e os treinadores imitam-se mutuamente.

Mas o tiki-taka não ia tomar conta do mundo?

De modo que não é certo que possamos tirar ilações extraordinariamente conclusivas de um Mundial. É melhor olhar para os dados: Portugal venceu o Europeu de 2016 montado num autocarro; França saca o Mundial sem sair da tracção atrás. Na Champions as últimas três edições pertenceram ao Real Madrid e a de 2015 a um Barça, de Luis Enrique, que rejeitou a posse de bola em troco de um jogo mais directo.

Um par dessas finais, o Real venceu-as ao Atlético de Madrid, que não tem orçamento para lutar com Real, Barcelona, Juventus, Bayern de Munique ou mesmo qualquer um dos clubes ingleses mais ricos, mas compensa esse (relativo) défice financeiro com as exactas características que permitiram as conquistas de Portugal e França: tremenda organização defensiva, recusa de arriscar, fisicalidade sempre presente, intensidade ao máximo, medo algum de baixar linhas e sofrer.

As três selecções que mais quiseram jogar com a bola no pé durante o Mundial, Brasil, Bélgica e Croácia, saíram de mãos a abanar, as duas últimas batidas por uma França cujo primeiro golo em ambos os jogos foi uma bola parada – no que podia ser um decalque do livro de regras de Diego Simeone: sai pela certa, quando houver espaço, sai rápido e se não puderes avançar saca uma falta e sobe os homens altos.

O que aconteceu? Como foi isto possível? Mas então o tiki-taka não ia tomar conta do mundo? A ideia, falsamente atribuída a Pep Guardiola, quando foi Luis Aragonés, no Europeu de 2008, a cunhá-la, era bonita: assumir o lado mais técnico do jogo, privilegiar as tabelinhas, o jogo entre as linhas defensivas do adversário, o jogo anterior (ao invés dessa doença chamada cruzamento compulsivo), a inteligência táctica, a movimentação ofensiva constante, a posse com a bola a circular rápido.

Luis Aragonés (à direita), o seleccionador espanhol na qualificação para o Euro 2008

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Aragonés pode tê-la assumido primeiro mas foi de facto Guardiola a levar a ideia ao extremo e desde que o catalão pegou no Barcelona que parece que vivemos no mundo dele e de Leonel Messi – a esmagadora vitória do City na Premier este ano pareceu confirmar isso, mesmo dando de barato que ocasionalmente o City já arrisca uma bola longa e até presta atenção às segundas bolas. Naquele onze o médio defensivo era Fernandinho – que nunca havia jogado nessa posição e passou a carreira bem à frente no campo.

Olha-se para o meio-campo da Bélgica e não havia um médio defensivo; olha-se para o meio-campo da Croácia e vemos não um trinco a cortar e dar pau mas sim dois quase anões: Modric e Rakitic. Ambas as selecções privilegiaram a saída de bola, a circulação, a posse – e ambas foram dizimadas pelo bloco de cimento da França.

Vez após vez as equipas mais ofensivas têm falhado nos momentos decisivos: o City estraçalhado na Champions por um Liverpool que aposta tudo na intensidade; o próprio Liverpool passado a ferro por um Real que, apesar de Ronaldo, Modric, Isco e Toni Kroos, nunca assume qualquer tipo de ideologia futebolística, simplesmente se adapta ao adversário, anulando-o.

Não são apenas os colossos de pendor romântico que sofrem: os Spurs nunca viram o seu perfume estético confirmado com troféus; o Arsenal afundou-se num mar de equívocos; o Dortmund tornou-se no novo Arsenal; o Nápoles coleccionou falhanços consecutivos; a Roma fraquejou nos momentos vitais; e o Sporting é o Sporting.

Durante algum tempo pareceu que o tiki-taka, enquanto filosofia vigente e popular e vencedora, poderia ceder o seu lugar cimeiro para a intensidade de Dortmund, Liverpool, Spurs; mas quem foi com os troféus para casa foram os fanáticos do ferrolho.

Talvez tenhamos estado ligeiramente enganados acerca do poder do toque de bola, do fervor ofensivo, da positividade: logo no ano seguinte à primeira vitória do Barcelona de Guardiola na Champions, o Inter de Mourinho conquistou o troféu depois de uma meia-final em Camp Nou em que o autocarro se mitificou enquanto paradigma. O Barça recuperou a taça mas no ano seguinte, para equilibrar o karma, foi um Chelsea artilhado de retrancas e ferrolhos quem saiu vencedor, sobre um Bayern sedoso, que se vingaria no ano seguinte do ainda mais romântico Dortmund. E daí para cá só deu praticamente Real – uma equipa que em Kroos, Modric e Isco tem jogadores que gostam de assumir o jogo mas que é, antes de mais, uma equipa pragmática e resultadista.

Positivo, ofensivo e frontal? Isso não

Algo aconteceu. Durante algum tempo pareceu que o tiki-taka, enquanto filosofia vigente e popular e vencedora, poderia ceder o seu lugar cimeiro para a intensidade de Dortmund, Liverpool, Spurs; mas quem foi com os troféus para casa foram os fanáticos do ferrolho: a França joga com Kanté, Pogba e ainda Matuidi, mais preocupados em calafetar cada frincha que em abrir a janela alheia; Portugal foi campeão europeu com William, Adrien, Renato e André Gomes, emblema maior da recusa em ser positivo e ofensivo e frontal.

E se pode parecer injusto comparar troféus de selecções e troféus de clubes, convém fazer notar que são torneios como o Mundial, o Europeu e a Champions que chegam a toda a gente e criam mitos e narrativas – sem a Champions o Barcelona de Pep seria uma equipa de consumo interno.

A selecção portuguesa campeã europeia em 2016

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Algo aconteceu: com o tempo, as equipas mais fracas aprenderam a posicionar-se ainda melhor contra os belos tratadores de bola; recuperaram técnicas antigas, como a marcação homem a homem, de modo a anular os mágicos; elevaram a sua condição física de modo a aguentar o desgaste de perseguir a bola; e aprimoraram ainda mais o contra-ataque.

E talvez o tiki-taka se tenha aburguesado – talvez estes jogadores, de Iniesta a Kroos, de Neymar a Hazard, já tenham ganho demais, dinheiro demais, campeonatos demais, seguidores do Instagram demais. A selecção espanhola caiu no fetichismo do passe, mas mesmo ao nível dos clubes parece faltar qualquer coisa: com a excepção do City de Guardiola às demais equipas dominadoras tem faltado talvez suor, talvez vertigem, talvez vontade, talvez imaginação.

Numa competição longa os Citys e os Barcelonas (enquanto houver Messi) ganharão a maior parte das vezes – mas nestas competições curtas, que poem frente a frente os melhores artistas, a cautela está de novo a compensar. A ratice vai destruindo a magia: sem espaço as equipas mais românticas lançam homens na frente e, para quem defende, surge finalmente o espaço: uma bola longa e está feito.

Talvez nunca tenha sido tão difícil o talento sobrepor-se ao tacticismo – e devagarinho a retranca voltou a impor-se à técnica. De uma estranha e irónica forma, Mourinho – o Mourinho das finais – parece ter voltado a sorrir.

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