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Olga Ravn: mudar de vida, escrever um livro e procurar o encanto de um dia banal num planeta distante

Ficção científica ou uma distopia sobre o trabalho moderno? Olga Ravn contou-nos como uma vida profissional infeliz a inspirou a escrever "Os Funcionários", um romance que é ao mesmo tempo um desafio.

“Não é difícil limpá-los.” É assim que Olga Ravn começa o seu romance Os Funcionários, um dos finalistas do International Booker Prize 2021. O ambiente da história é de ficção científica, mas a frase diz respeito à banalidade da mais terrena das vidas. Estamos num futuro longínquo, a bordo da nave Seis-Mil, após ter sido confirmada a existência de um novo planeta – Nova Descoberta – e um conjunto de objetos lançam questões a quem está a bordo daquela nave. Objetos que não são difíceis de limpar — como se até numa nave distante estivesse presente a banalidade.

Surgem perguntas que não são novas nesta viagem: estarão as pessoas mais humanas? E que sentido dar a uma ideia de eternidade? Contudo, o que marca em Os Funcionários é a ideia de trabalho, de tarefa, produtividade e de como esses conceitos moldam a humanidade que vive a bordo de uma nave em plena deambulação pelo cosmos. Os objetos despertam estranhas sensações nestes funcionários e é através das suas reações — ou “depoimentos”, como designado no romance — que o leitor ganha noção do futuro que é ali descrito.

Os Funcionários é um romance que desautoriza um protagonista. E, a haver um, é o trabalho. É impossível passar pelas descrições dos objetos, das sensações e memórias que despertam, e não pensar no trabalho de hoje, no nosso trabalho. Estaremos nós também adormecidos numa prisão de conceitos. Nada disto é novidade, a novidade é como Olga Ravn mostra tudo, num livro escrito sem uma pandemia no horizonte, mas que ganha todo um novo contexto depois de se ter passado por uma – e de se ter vivido em teletrabalho. Estivemos à conversa com a escritora via Zoom.

A capa da edição portuguesa de "Os Funcionários", de Olga Ravn (Elsinore)

O primeiro depoimento começa com a frase “Não é difícil limpá-los [os objetos]”. Cria esta ideia de que estes objetos são banais, o que contraria a ideia de objetos estranhos na ficção científica. Porque foi nessa direção?
Há duas respostas. Uma é muito concreta: o livro tem origem no convite da escultura Lea Gulditte Hestelund, que me pediu para escrever uns textos para umas esculturas dela. Essa foi a primeira inspiração para estes objetos, porque adoro arte e tive uma reação muito intuitiva e visceral com esses objetos. Mas não foi algo que tenha decidido, do género: vou descrever os objetos assim. Foi algo que se desenvolveu à medida que escrevia o livro. Agora olho para isso e percebo que quis criar algo que desafiava a categorização, que não era humano ou animal, e que existia naquele mundo apenas para o prazer desse mundo. Porque a lógica deste universo é construída à volta da ideia de trabalho: a eficiência, o controlo, a produção. Foi divertido inserir algo que não era uma força disruptiva, mas que era apenas uma força que não poderia ser implementada ou criada nesse sítio. E que, por si só, seria subversiva. Por isso, os objetos são incríveis e, também, banais.

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A dúvida sobre o que é banal ou não faz parte da vida na nave Seis-Mil. Ao ler Os Funcionários, quer que o leitor questione o seu lugar na sociedade?
Não quero obrigar o leitor a fazer nada [risos], cada um deve encontrar o seu caminho. Mas estou muito interessada na vida ordinária e em retratá-la. Não como algo aborrecido ou prosaico, mas algo que é profundo e cheio de um conhecimento também ele profundo, a vida ordinária enquanto retrato de uma igualdade. Por exemplo, agora estou muito interessada na Idade Média e estou a ler muito sobre a Idade Média na Escandinávia — e sobre a vida quotidiana nesse tempo e nesse lugar. As histórias que contamos sobre a humanidade, a Europa, são sobre reis, economia, fronteiras, como os estados foram criados. Tudo isso é muito importante, mas para mim a entrada na vida ordinária é fundamental porque dá-me a razão da existência, de alguma forma. Quando escrevi este livro, fiz muita pesquisa, li muitas entrevistas de astronautas, cosmonautas, que estiveram muito tempo no espaço e que falam de como a vida se torna igual à vida na Terra. Foi divertido brincar com as expectativas do leitor, ou seja, por vezes uso uma frase no meio do texto em que se fala de algo tão ordinário como fazer limpezas, mas que não é informação para o leitor. Gosto de fazer isso. Adoro a vida ordinária, acho fantástico viver uma vida ordinária que nos dá algo e dá algo ao mundo. Não devíamos viver para as nossas férias.

"Como artista nunca penso algo como 'vou criticar o capitalismo'. Primeiro, quero fazer arte. Depois entram os meus interesses, problemas, o que está a ocupar espaço na minha vida. No dia em que entreguei este livro ao meu editor, despedi-me do trabalho. 'Os Funcionários' não vem de uma afirmação política, mas da minha própria vida."

As descrições são muito detalhadas e sensoriais. Porque se preocupou tanto com os sentidos?
Interessa-me muito os sentidos, algo que adoro é ativar o corpo do leitor enquanto lê. Se escrevo sobre café, quero que o cheirem. Em Os Funcionários queria virar por completo a hierarquia dos sentidos. Temos a tendência para colocar a visão primeiro e depois audição, o toque, e, só no final, é que vem o cheiro. Queria alternar isso, quis descrever as coisas pelo nariz, pela boca. Tentei perceber como posso escrever textos que instigam os sentidos orais do leitor. E aí há uma crítica da divisão entre o corpo e a mente, se o que vemos é o mais importante e o que podemos sentir e provar é secundário. Ao trabalhar o corpo e os sentidos na vida ordinária, podemos aprofundar a experiência da vida ordinária: porque, lá está, estamos mais presente. E isso é algo que confunde os funcionários no meu livro, quando eles encontram os objetos, lentamente toda a vida que viveram até então é questionada. Porque há algo que existe de forma diferente, que é inspirador e perigoso.

Pensou no livro como uma crítica ao capitalismo e à forma como se encara hoje o trabalho?
Como artista nunca penso algo como “vou criticar o capitalismo”. Primeiro, quero fazer arte. Depois entram os meus interesses, problemas, o que está a ocupar espaço na minha vida. Quando escrevi este livro tinha um trabalho muito aborrecido num escritório. Ouvia a linguagem, era tudo muito Recursos Humanos – que, para mim, é uma expressão fascinante. Achava essa linguagem tão assustadora e interessante ao mesmo tempo. Queria sair daquele trabalho, odiava. No dia em que entreguei este livro ao meu editor, despedi-me do trabalho. Os Funcionários não vem de uma afirmação política, mas da minha própria vida. Era infeliz, miserável, a trabalhar dentro daquela mentalidade. É aí que o livro tem uma crítica social, se é algo que me fazia miserável, provavelmente também faz a vida de outras pessoas miserável. Sou muito impressionável, talvez tenha o olfato desenvolvido, não sei… Houve uma altura na minha vida em que queria escrever de forma realista. Mas percebi que não conseguia fazer algo que gostasse. A forma como experienciava o mundo, o que achava excitante, tudo isso acabava por morrer quando passava para dentro deste sistema realista. Gostava de muitas coisas que eram consideradas “de mau gosto” e não tinham lugar no mundo literário, como a ficção científica, que era considerada como “cultura de segunda”. Também escrevi um romance de terror… Comecei a pensar que o que queria fazer era permitido nos subúrbios da literatura e que esses subúrbios estavam a acontecer. E foi aí que comecei a descobrir o meu lugar. Sim, talvez exista uma crítica ao capitalismo, mas vem de uma experiência pessoal: era impossível para mim funcionar naquele espaço. E é impossível a minha escrita existir nos padrões normais, por isso tenho procurado formas diferentes de a concretizar.

Olga Ravn, entre a emoção e uma máquina

Viu a série “Severance”?
Sim, sim, vi.

Não estou a comparar, mas há uma semelhança com a ideia de trabalho, a relação com o local de trabalho, com a questão “seremos escravos?”. Obviamente, que a realidade não é tão má como em “Severance” ou no seu livro, mas está lá.
Não sei se “Severance” é ficção científica. A ficção científica é descrita por muitos pensadores como uma desconfiança face à tecnologia. Por exemplo, o “Frankenstein” pode ser sobre uma desconfiança na eletricidade. Alguma ficção científica russa mostra uma desconfiança para com a bomba atómica. E há uma tecnologia do local de trabalho. A série “Severance” é sobre a vida após a industrialização. A nossa vida em dois rumos, o privada e o público, e este último é o trabalho. E criou-se aquela ideia de oito horas de trabalho, oito horas de divertimento, oito horas de sono. E isso potenciou a noção de que há uma identidade de trabalho e uma identidade doméstica. “Severance” crítica isso, ou seja, defende que é uma forma errada de arrumar as nossas vidas. Em Os Funcionários foi divertido tirar um dos caminhos: o da vida doméstica. Não há vida doméstica, casa, privacidade para mostrar. E o resultado disso é um livro sobre estarmos removidos da nossa própria ecologia. Quando acabei de escrever este livro, mandei-o à minha mãe, como sempre faço, e ela costuma sempre dizer: “Obrigado, gostei muito”. E neste ela disse: “Obrigado, gostei muito. Mas lembra-te, eu não quero ser cremada, quero ser enterrada.” E isso deixou-me muito feliz, porque é uma crítica, uma reação ao livro, depois de ler ela percebeu que queria fazer parte da sua ecologia, da terra. Queria dar ao leitor a ideia de que pertence ao planeta. E de voltar a ligar-se um pouco com o planeta.

"A pandemia transformou por completo esta ideia de casa e trabalho, de ter uma identidade privada e outra pública, de repente estávamos em casa e o trabalho também. Os Funcionários tem o mesmo movimento, mais ao contrário. Foi uma coincidência, dentro da tragédia de tudo o que aconteceu e ainda está a acontecer."

Porque também fazemos parte desta ecologia.
Existe a ideia de que criámos uma hierarquia com o planeta, que os humanos estão no topo e todas as outras formas de vida são secundárias. Penso que nos deveríamos considerar como uma parte igual do sistema ecológico do mundo. Somos muito importantes, mas não somos mais importantes. Temos de pensar na coexistência. Consigo perceber porque é que há tanta gente cínica sobre esta ideia, porque quem está no poder não tem esta ideia.

Imagino que já não tenha um trabalho de escritório. Este livro mudou a sua vida?
Quando saiu na Dinamarca teve boas críticas, mas não fiz montes de dinheiro. Dava para sobreviver, fazendo outros trabalhos e não comprando tanta coisa. Mas foi muito importante para a minha saúde mental sair daquele trabalho. Quando o livro saiu no Reino Unido, em 2020, não teve muitas críticas. Mas com a nomeação para o International Booker Prize, explodiu. Isso veio do nada.

Não estava à espera?
De todo. De todo. Até porque é uma edição pequena no Reino Unido, saiu no meio da pandemia, não teve muita atenção… Mas foi ótimo, agora já foi editado em 25 países.

A pandemia convida a ler-se o livro de forma diferente.
O livro saiu na Dinamarca em 2018 e não é como se não existisse já uma crise ecológica. Para mim, a pandemia é apenas uma intensificação de uma crise planetária em curso. O que quero dizer é que não é como se fosse algo desconhecido. A pandemia transformou por completo esta ideia de casa e trabalho de que falámos há pouco, ter uma identidade privada e outra pública, de repente estávamos em casa e o trabalho também. Os Funcionários tem o mesmo movimento, mais ao contrário. Foi uma coincidência, dentro da tragédia de tudo o que aconteceu e ainda está a acontecer.

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