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"A abordagem a um artista de 22 anos tem mesmo de ser diferente, não posso ter o espírito de que já fui aqui ou ali ou já falei com estes ou aqueles... Isso não lhe diz nada"
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"A abordagem a um artista de 22 anos tem mesmo de ser diferente, não posso ter o espírito de que já fui aqui ou ali ou já falei com estes ou aqueles... Isso não lhe diz nada"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

"A abordagem a um artista de 22 anos tem mesmo de ser diferente, não posso ter o espírito de que já fui aqui ou ali ou já falei com estes ou aqueles... Isso não lhe diz nada"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Pedro Trigueiro: “Os artistas estão hoje numa maior posição de poder, mas é mais difícil destacarem-se”

Pedro Trigueiro é o diretor da Arruada e assinala os 10 anos da agência com uma reflexão sobre os desafios da indústria da música em Portugal e as mudanças que ocorreram ao longo dos anos.

No mês em que a empresa celebra 10 anos, o proprietário e diretor da Arruada, uma das principais agências de música em Portugal, reflete sobre o estado da indústria e as mudanças ocorridas ao longo dos tempos. Aos 45 anos, Pedro Trigueiro leva cerca de duas décadas no mercado da música nacional. Foi fundamental para a fase derradeira do percurso dos Buraka Som Sistema, ajudou a profissionalizar Regula e a catapultar de algum modo o hip hop português, revelou-se essencial na ascensão de artistas como Dino D’Santiago ou Pedro Mafama, tendo trabalhado com muitos outros, de Carminho a Mallu Magalhães, passando por André Henriques e Rita Vian.

Tudo começou nos Olivais, bairro lisboeta de espírito suburbano. Cresceu com a lógica do it yourself e no meio das bandas de garagem de punk rock e heavy metal. Durante a adolescência, Pedro Trigueiro chegou a tocar baixo e guitarra numas quantas (foi baixista dos Laia, banda que editou dois álbuns). Comprava revistas de música e discos, tentava obter o máximo de informação sobre aquele universo.

Acabou por se licenciar em Ciências da Comunicação e da Cultura. Ao mesmo tempo, era militar na Força Aérea e começou a trabalhar na área através do jornalismo musical. Escreveu, durante vários anos, para diversas publicações. Até que em 2006 recebe o convite para integrar o departamento de comunicação da Universal, uma das editoras multinacionais que continuam a operar em Portugal. Mais tarde, torna-se label manager na editora e começa a contribuir decisivamente para construir as carreiras de músicos como Luísa Sobral ou António Zambujo.

Paralelamente, ajudava outros artistas a marcar os seus concertos. Sentia a “inquietação” que José Mário Branco imortalizou em música. Decidiu lançar-se e arriscou fundar o seu próprio projeto. Começou de imediato a trabalhar com os Buraka Som Sistema, fenómeno da música portuguesa que queria chegar ainda mais longe. 10 anos depois, a Arruada tornou-se uma referência no panorama musical nacional, na gestão de artistas mas também na curadoria de festivais. Nesta entrevista, Pedro Trigueiro fala daquilo que mudou em 10 anos, dos desafios que a indústria atual apresenta e das mudanças que se esperam para o futuro.

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"Se há coisa de que não gosto é a velocidade cruzeiro. Isto está fixe, está bem organizado... Não sei se está, porque tudo muda"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Quando deixou a Universal para fundar a Arruada, sentia que a indústria estava a precisar de inovação e de frescura?
Não… É muito fácil bater na indústria musical, sobretudo nas labels. É o bode expiatório de tudo. Por exemplo, o jornalismo, ou o cinema, para falar de outras áreas, estão muito mais atrás. A música e as editoras mudaram muito. A experiência sensorial ou imersiva de ir a um concerto mudou bastante. Pessoas como o David Byrne, o James Murphy dos LCD Soundsystem, o Brian Eno… Contribuíram muito para experienciarmos a música ao vivo de forma diferente. E mesmo a indústria musical… Apareceram os Napster da vida, na altura a indústria era muito gorda, pesada, com uma falta de dinâmica…

Quando entrou na indústria, ela já estava a lidar com essa mudança de paradigma, com os desafios impostos pela disseminação da Internet.
Sim, já nos estávamos a desviar de terra e a ir para alto mar. Já estávamos fora de pé firme. A indústria musical passou de poder vender produtos como o vinil, a cassete e o CD — que era só engordar e sem ser preciso pensar muito no dia de amanhã, não eram necessárias muitas estratégias — e houve um grande corte nisso tudo. As estratégias passaram a ser revistas de dois em dois anos, depois passou de ano para ano, e agora chegámos ao momento em que montamos uma estratégia digital com um artista e daqui a três meses ela está obsoleta.

É essa a principal mudança que sente desde que entrou na indústria? Essa aceleração e constante necessidade de adaptação?
Sim, até para mim virou uma máxima. Mudou brutalmente e muda todos os dias. A abordagem a um artista de 22 anos tem mesmo de ser diferente, não posso ter o espírito de que já fui aqui ou ali ou já falei com estes ou aqueles… Isso não lhe diz nada. E tem todo um manancial de TikTok e de Shazam e não sei quê que eu não tenho. Ou seja, essa mais valia de conhecimento e de bagagem é boa, mas só de vez em quando é que faz sentido tirá-la da prateleira. Porque, de resto, tem de se olhar e resolver as estratégias do agora, com ferramentas do agora. Se há coisa de que não gosto é a velocidade cruzeiro. Isto está fixe, está bem organizado… Não sei se está, porque tudo muda.

É necessário haver uma adaptação constante.
Sempre, e temos de estar atentos às pequenas coisas. Recordo-me de quando enviei o primeiro press-release a dizer que o Regula estava a preparar um novo álbum… Com o Gancho, ele tinha atingido uma comunidade gigante de pessoas, mas não tinha havido um salto para o nacional. Na altura falei com uma promotora portuguesa muito grande e eles disseram: “finalmente conseguimos falar com alguém do hip hop”. Até aí tinha havido nomes do hip hop em festivais, mas era de picos, não havia uma constância. E o importante é poder dialogar e conhecer os novos mundos, tal como eu falava da miúda de 22 anos e sobre perceber o TikTok. Na altura, era perceber: porque é que o hip hop não está a entrar? Onde é que os códigos das pessoas não se estão a entender? Este gajo tem um manancial de gente atrás dele, esta gente frequenta estes eventos, mas porque é que estes eventos não podem recebê-lo? Foi perceber essas questões para passar a haver. E de repente estamos em 2015 no Primavera Sound. São páginas de história. Era preciso abertura da indústria pesada, que não conseguia dialogar com estes tipos. Mais tarde, estou no B.leza com o Kalaf, pergunto como está o disco que ele anda a fazer com o Dino. “Está feito, vai sair pela Sony”. Então e o que vais fazer? “Estou lixado. Ajuda-me, ‘bora lá pensar sobre isto”. Mais uma imperial, depois mais outra. O disco estava feito, mas não havia mais nada. Então foi preciso fazer esse caminho. E eu é que sei os telefonemas que foram feitos para o Portugal real, com o pessoal a dizer: “o quê, Pedro, em crioulo? Não, isso só dá em Lisboa”. Não estavam a ouvir. E houve gente que marcou o Dino no início de 2019 a pensar que era world music. E nem sequer ouviram. Agora, parece tudo super fácil. Como não? Mas se voltarmos a 2018… E o Pedro Mafama, que apareceu de unhas pintadas e com outra pinta, e de repente aquilo dá uma volta e torna-se um artista de famílias. Porque foi o que encontrámos pelo país no ano passado.

"Um artista tem de compreender que não se consegue destacar se quiser ser igual aos outros. [...] Será boa ideia copiar um artista americano muito popular? Há muitos artistas a querer e só alguns é que se destacam."

A forma como se lida hoje com um artista é muito diferente da forma como se lidava quando entrou na indústria?
Sim, felizmente hoje um artista sabe muito mais coisas. Tem mais ferramentas, há mais conhecimento. Isto estava muito virado para os managers e para as labels, que conheciam os contratos, “tu não percebes isto”, e acho que hoje em dia isso já não está assim. Podem não perceber, um artista pode não ser um gajo muito esperto em relação ao contrato que tem à frente…

Mas está numa maior posição de poder?
Muito maior. É tão simples quanto irmos às contas: se dantes lançavam um disco com uma multinacional, a divisão de royalties era muito simples. Eram uns 80% para a editora e 20% para o artista. Isto mudou ao ponto de agora estar ao contrário. Houve uma mudança de poder.

Motivada pela disseminação da Internet, que também provocou a queda da venda de discos e retirou alguma importância aos intermediários.
O conhecimento estava na indústria. Como se fazia, o que era isso dos royalties, o que é a SPA, o que são direitos conexos ou mecânicos… Isso era tudo uma bolha muito específica. Com esta democratização toda de informação, que por vezes também é uma selvajaria de informação…

Muitos dos que não tinham acesso passaram a ter. E a Arruada terá contribuído, e beneficiado disso, mas também coincidiu com essa fase de democratização.
Coincidiu, e não contribuí mais do que beneficiei. O primeiro ponto a encontrar nisto tudo é: qual a minha utilidade perante um produto que é um artista? Ou o percebo e tenho uma visão, ou não percebo e escuso de ir a jogo. Pelo menos temos feito assim nestes 10 anos, seja com os artistas, seja nas nossas parcerias com os festivais. E já tive, nesta mesma sala onde estamos a falar, conversas com artistas que poderiam ser Arruada. Eles são ótimos, mas não acho que seríamos úteis. E, até do ponto de vista económico e do resultado financeiro anual, eles iriam contribuir bastante.

Ou seja, o que prevalece é a compatibilização de ideias conceptuais, porventura até os critérios pessoais?
Claro. Detesto que isto vá para uma questão de gosto, porque é arrogante para caraças. Mas tem de haver essa compatibilização. E é olhar para a equipa e pensar: esta pessoa não pode ficar com este artista, aquela pode.

É algo muito humano, portanto.
É, para ser uma espécie de gestor de produto do artista dentro da casa, tenho de perceber quem é que tem uma certa empatia — ou pela sonoridade do artista, ou por gosto, ou pela personalidade. Isso para nós também é fundamental na questão de sermos ou não úteis. Porque há aqui um lado humano. Se estivéssemos a vender sabonetes, era outra coisa. Com a componente humana, às vezes há um problema na vida pessoal do artista, um twist qualquer, e é preciso apoiar esse twist. O artista é humano, não está para ouvir toda a gente, e é preciso esperar que haja um timing para falar com ele. Até do ponto de vista humano temos de ser úteis, ouvir e perceber: OK, estás aí com uma crise pessoal, vamos aliviar isto durante uns tempos.

"Nem há 10 existiam estes players que faziam as coisas por si, com tanto à vontade. Faziam pontualmente, mas digressões..."

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Que outros desafios é que encontra hoje que não existiam quando entrou para a indústria? A rapidez de novos padrões, a adaptação constante?
Essa é a maior carga de trabalhos, a adaptação rápida e quase diária a novos desafios. E se olharmos para o lado do jornalismo e dos media, é mais difícil quando há crise do outro lado, quando há falta de confiança nas pessoas perante o jornalismo. Temos assessoria interna. Montamos uma estratégia, que é pensada em conjunto com o artista, estamos aqui em brainstorm. E a assessoria é o nosso altifalante. Mas comunica para onde? Se houver uma crise do lado dos media, isso também se reflete em nós. Claro que existe um mar gigante que são as redes sociais e as plataformas digitais. Mas aí vamos para o meio de uma confusão gigante, não temos poder nenhum, não há curadoria nem nada, não há um sentido crítico. Isso para mim é muito mais perigoso, é uma nébula muito maior. Tenho que começar a fazer dancinhas do TikTok a torto e a direito para ver se o algoritmo sobe.

É mais difícil hoje um artista destacar-se?
É muito mais difícil. Mas também depende da pessoa. Um artista tem de compreender que não se consegue destacar se quiser ser igual aos outros. Quanto mais não seja, que pinte uma mancha cor-de-rosa. É só um exemplo absurdo. Será boa ideia copiar um artista americano muito popular? Há muitos artistas a querer e só alguns é que se destacam. Também há um fenómeno que é uma mesmice: a canção do conforto, de voz e viola e uma menina ou um menino a cantar. Acontece muito. Não sei se foi a Taylor Swift que trouxe isso há uns anos e se se foi disseminando, mas agora nem sabemos bem quem é que são. O mercado está recetivo a esse tipo de acontecimento e portanto não vale a pena estar aqui a barafustar muito. O mercado está a curtir, a rádio a gostar, têm plays, bom Spotify, boa performance de bilhética… Se calhar, compete aos outros que veem aquilo com o cotovelo a arder pensarem como é que vão fazer algo que contrarie essa tendência, que talvez até já tenha acalmado um bocadinho.

Sente que o mercado mudou muito nestes anos? Apareceram outras agências que se tornaram players importantes que não existiam quando entrou na Universal, as editoras mudaram, as rádios talvez tenham perdido alguma importância…
Acho que as rádios não perderam importância, acho que se adaptaram muito bem ao digital. E as editoras…

Tiveram de lidar com um certo choque de realidades, porque vinham de um tempo em que tinham mundos e fundos graças às vendas de discos e ao facto de monopolizarem o mercado.
Sim, do ponto de vista do agenciamento e management é que não tenho a certeza. Estratégias super diversificadas e fora da caixa… Não sei se todos o terão feito. Uma coisa que aconteceu muito com esta democratização é que as agências também se tornaram promotoras de espetáculos. E isso afeta outra parte da indústria, porque os promotores não veem isto com muito bons olhos. Da mesma maneira que, antes, os artistas não sabiam nada de royalties e passaram a saber, as agências não sabiam fazer um festival nem sabiam como se abriam bilheteiras, mas passaram a saber. E ao passarem a saber perceberam que poderiam eliminar players pelo meio. Isto veio dar uma carga de trabalhos. Acho que o métier das agências mantém-se mais ou menos, não se reinventam muito, mas esse lado de empreendedorismo, que já está em vários graus, está a fazer a diferença. São poucas as que agarram no seu músculo e se metem para a frente, mas as que o estão a fazer estão a marcar a diferença.

"Se a câmara tem uma política de o fazer [concerto gratuito] uma ou duas vezes por ano, faz uma noite de fado e uma noite mais virada para os jovens... Se tiver políticas de acompanhamento, em que se consiga criar nos teatros dessas cidades públicos e dinâmicas a pagar, para que as pessoas percebam que a cultura tem um valor, acho que não prejudica."

Até porque não existiam há 20 anos.
De todo. Nem há 10 existiam estes players que faziam as coisas por si, com tanto à vontade. Faziam pontualmente, mas digressões… Ainda sou mais prevaricador. Em 2016 olhámos para o mercado, falámos com a Everything is New, e demos uma identidade ao coreto do NOS Alive. O Cooljazz também precisava de apoio. Não sei porquê, já tinha uma paixão muito antiga pelo Cooljazz. Ia sempre. E fizemos outros festivais. Do nada, tivemos um convite da Câmara Municipal de Matosinhos a dizer: tens que ser tu, agarra-te a isto. Por isso é que digo que posso ser ainda mais prevaricador, porque estou mesmo metido nos festivais.

Portugal tornou-se também um país de muitos festivais, talvez o mercado até esteja algo saturado porque são muitos eventos a acontecer. Mesmo que tenham identidades e características completamente diferentes, acabam por concorrer porque as pessoas não podem estar em todo o lado nem têm dinheiro para gastar em todos. Como é que encara este cenário? Chegámos ao pico do número de festivais?
Não sei… Não sou do techno, por exemplo, de todo. Há o Neopop, o Sónar… Mas o pessoal do techno gostava de ter um festival a sério? “Ah, esses malucos metem-se todos no Boom”. Quem diz isto é porque não percebe nada do que está a dizer. São coisas absolutamente diferentes. Não sei se o pessoal da world music tem o seu festival, existe Sines… Mais recentemente, apareceram festivais como o Bons Sons e outros que são dedicados à música portuguesa. E só com música portuguesa fazem um bom festival. Mas acho que isto vai pela lógica da peneira. Não sei se há festivais a mais ou não, mas acho que não são todos sustentáveis.

E o tempo vai fazendo a triagem?
Vai. E montar um festival só porque sim, só porque também queremos ter um festival… Só se houver muito dinheiro. E se for do ponto de vista do Estado e das câmaras municipais, que tipo de produto é que querem dar aos seus munícipes? Querem fazer um só porque sim, porque os outros também têm? Ou querem proporcionar alguma experiência diferenciadora?

Sente que, em geral, os eventos promovidos pelas autarquias, que são festas mais populares, com artistas mainstream, prejudicam os festivais privados? Ou são coisas à parte?
Não prejudicam, correm em paralelo. Só têm um problema que é a má habituação de as pessoas não pagarem bilhetes. Isso é um pouco mais complicado. Uma câmara municipal colocar um artista pop — um Fernando Daniel ou um Richie Campbell — de borla, a sinalizar o dia da cidade… É um dia por ano. É isso que castiga?

A questão é que são muitas câmaras.
E fazem sempre da mesma forma. Se a câmara tem uma política de o fazer uma ou duas vezes por ano, faz uma noite de fado e uma noite mais virada para os jovens… Se tiver políticas de acompanhamento, em que se consiga criar nos teatros dessas cidades públicos e dinâmicas a pagar, para que as pessoas percebam que a cultura tem um valor, acho que não prejudica. Até porque o ecossistema da música vai andando. Mas muitas vezes não se comunica, não há retorno nenhum, aparecem meia dúzia de gatos pingados… E ficam chateados ao dizerem que a cultura não rende. Será que pensaram em assessoria? Pensaram num bom plano de promoção? E não é com um cartaz 8 ou 15 dias antes na rotunda da cidade… Só estão a escorrer dinheiro. Isso não cria público, não cria habituação, não cria amanhã, não cria futuro nenhum. E esse tipo de evento é o que desaparece. É um festival que não tem propósito. E outra coisa que desapareceu, para benesse de tudo isto, foram os pára-quedistas.

"Não sei se há festivais a mais ou não, mas acho que não são todos sustentáveis"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Pessoas que, do nada, sem experiência e conhecimento visível, aparecem para organizar um evento?
E muitos depois desapareciam com o dinheiro. Aquelas histórias que existiam. Felizmente, o panorama foi comendo isso, sabe-se tudo tão bem e já não há muito espaço para o tipo que desaparece com o dinheiro…

Antigamente havia menos controlo?
Não havia Internet, sabiam que o nome não ia ser exposto em lado nenhum. Pessoal que enganava artistas, era muito mais difícil descobrir.

Pensando no nosso mercado, cada país tem as suas características e é consensual que Portugal tem um certo problema de escala, o que faz com que seja mais desafiante. É essa a grande diferença quando olhamos para o nosso mercado e para outros?
É. O problema de escala serve para vários tipos de coisas, inclusive para a qualidade dos nossos artistas. Temos artistas que têm o azar de terem nascido em Portugal. Se tivessem nascido no Brasil ou nos Estados Unidos, artistas que aqui são muito esquisitos nesses países fariam tours e viveriam mesmo disso.

Mesmo que seja um nicho, é um nicho considerável.
É um nicho muito forte. Outra coisa que é muito importante: não estamos mesmo nada atrás do ponto de vista dos nossos serviços. Mesmo que seja uma escala pequenina como Portugal, precisamos de uma mesa de som XPTO e a mesa chega. Precisamos de uma coluna e ela chega. Hotéis e comida? Dos melhores que há. Runners e drivers? Estive num festival como o Parklife, em Manchester, em que os Buraka Som Sistema tocaram. Era um bom alinhamento, mas a carrinha e o driver… Temíamos pela vida. Era uma selvajaria total. Ou seja, aqui providenciamos o melhor. Temos um inglês super OK para quem quer que venha de outra parte do mundo. Temos camarins sempre impecáveis. Os nossos melhores festivais estão absolutamente ao mesmo nível dos melhores da Europa. E isso é algo perfeitamente palpável, não nos falta nada. Até há, e isso penso que ainda não nos passou, uma certa subserviência com o exterior. O que eles dizem é lei. Mas não há mesmo nenhuma diferença, não tenho a menor dúvida de que estamos mesmo ao nível. Temos é coisas que não nos favorecem. Os festivais que vivem da programação internacional vão lidar este ano, e se calhar ainda mais no próximo, com a questão de… Nós sabemos os ordenados que aqui se praticam, sabemos o custo médio de vida. E isto torna-se algo bastante impossível porque não podemos levantar muito o preço do bilhete.

"Há artistas que não trazem uma grande receita financeira mas têm um rasgo muito próprio. Quero esta gente ao pé de mim. São quase como bolsas de investimento, precisamos de as ter para sustentar estes artistas."

Mas, ainda assim, o preço médio dos bilhetes para concertos e festivais tem aumentado significativamente nos últimos anos.
Daquilo que posso interferir, tento sempre chamar à razão. Porque, depois, os sítios ficam vazios. Se os bilhetes são muito caros, as pessoas não vão, não conseguem. Mas, por outro lado, os custos aumentaram. Os preços dos bilhetes de avião estão muito mais elevados. E quando falamos em comitivas de não sei quantas pessoas, fica muito mais caro… É um peso com que o promotor privado tem de lidar. E não se conte com a benevolência do artista ou do agente internacional em relação a isso. A maior parte não quer saber. “Lamento, mas se é este preço vamos ter de passar.” E um gajo fica aziado. E depois vemos os cartazes de outros festivais europeus e estão lá os artistas, mas era impossível trazê-los cá, eles estão no centro da Europa, virem até aqui é diferente…

Não é só o problema de escala, a nossa posição geográfica muitas vezes pode dificultar.
Não ajuda. Dialogamos com Espanha, sim, mas… E a presença cá de festivais espanhóis como o Primavera Sound, o Sónar, o Kalorama… Não é uma coisa a que toda a gente bata imensas palmas. Quem é que trouxe os palcos desses festivais? Quem está a trabalhar? Ah, é uma empresa espanhola. As casas de banho vêm de Espanha, a cerveja também. As infraestruturas idem. Muitas vezes não faz o mercado português trabalhar. E os clientes portugueses é que pagam isso tudo. Mas estamos a um nível do caraças e não é só nos grandes festivais. Em geral, é uma norma mesmo muito boa.

Olhando para a sustentabilidade do negócio: obviamente os modelos económicos mudaram com os anos, com a ascensão da Internet e a queda de venda de discos. A música portuguesa também teve um franco crescimento durante este novo milénio. Isso faz com que os cachets subam, que exista um ecossistema musical nacional mais saudável. Como é que encara esta realidade?
E até podemos falar das quotas de música portuguesa na rádio, mas o consumo de música portuguesa subiu muito e não é um boom que tenha surgido do nada. As coisas semeiam-se. Antigamente, o som dos nossos discos estava mesmo abaixo dos discos internacionais. A determinada altura, começámo-nos a aproximar. E a Antena 3 começa a fazer uma coisa que era a “Quinta dos Portugueses”, em que às quintas-feiras só passavam música portuguesa. E tornaram aquilo um pequeno evento itinerante pelo país. Isto vai espalhando a mensagem. Os jovens de Beja, por exemplo, sabiam que no mesmo recinto da Ovibeja tinham a hipótese de ir conhecer cenas nacionais de que até gostavam. Isso vai semeando. Quando se toca nas terras, em frente das pessoas, isso tem um impacto. E depois, entre outras coisas, começamos a ver os Ornatos Violeta nas semanas académicas. E os Da Weasel. Deixaram de ser uma cena que era só de alguns. Esse espaço passou mesmo a existir. Apareceram muitas bandas. Os próprios Mão Morta ajudaram à sua maneira. E os Moonspell, os Linda Martini… Na altura era estranho ver pessoal aos gritos em português. Depois há a explosão do rap. Acho que foi um espírito identitário que culmina com vários fatores sociológicos com o campeonato da Europa cá, com um espírito de pertença muito forte, e isso leva-nos para sítios em que nos virámos mais para nós próprios.

E isso nota-se na atualidade da música portuguesa.
Nota-se, claro. Na qualidade do produto final. Continuamos é a ter um problema que é a exportação em português.

É um sonho? Ou é um objetivo inalcançável além das raras exceções?
Acho que é difícil. Noutro dia falava com uma agente francesa sobre o Stromae, comparava com o Pedro Mafama, dizia-lhe que ele estava com 300 mil ouvintes mensais, que já não era um artista pequeno. A questão é que o Stromae é francês e existe todo um mundo francófono.

"Se começámos uma relação com um artista, temos que dar um tempo para ver. Mas depois chega a uma altura em que, se está fixe, está fixe, e cada um segue a sua"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Temos um mundo lusófono, mas sabemos que o grande mercado, o brasileiro, não consome, em geral, música portuguesa.
Não dá, falamos mesmo uma língua esquisita para eles. Tem havido abertura, mas também temos de pensar no que é aquela realidade. Tentar o Brasil? Quanto muito tentamos uma cidade. Só em São Paulo são mais de 12 milhões de pessoas. E tentamos uma cidade para uma comunidade específica. Mesmo o próprio fado vagueia pela alta sociedade do Brasil.

Pelas mesmas pessoas que vão ver espetáculos de ópera, por exemplo.
Exato. Aliás, caminham exatamente pelos mesmos sítios, as mesmas salas servem para as duas coisas. Movimentam-se pelos sítios da alta cultura. Tem havido agora umas tentativas do hip hop em ir para o Brasil, e o Plutónio como é de origem moçambicana tem um pouco a questão do “você”, aquilo aproxima-se quase de um linguarejar brasileiro, o que só o beneficia. Ou seja, é sempre possível. Mas é uma grande dor. O Mafama já fez Paris, vai fazer Luxemburgo, já esteve em Barcelona, a Rita Vian também, mas sei que vamos na área dos exóticos, para o palco alternativo. Buraka Som Sistema era diferente porque aquilo era pela sonoridade, pelo impacto que tinha ao vivo, pela energia, então não estavam no circuito de world music.

Qual é o grande desafio na sustentação do negócio para uma agência?
O desafio é perceber que o negócio do Instagram e do TikTok não pode ser encarado como uma coisa de miúdos. E temos de perceber que tipo de rentabilidade é que aquilo pode ter, de awareness mas mesmo do ponto de vista financeiro. Tudo isto importa para as marcas, tudo isto importa para os festivais. Quantas pessoas é que nos seguem e quantas é que não nos seguem. Tudo isto tem um valor comercial que é palpável.

E é melhor do que antes, quando não existiam redes sociais nem plataformas digitais como o YouTube?
Muito melhor, porque aí os únicos números eram os das vendas de discos, mas ficava muito dependente do gosto. E agora não estamos tão dependentes disso. Estamos a falar muito da questão numérica… Há artistas que não trazem uma grande receita financeira mas têm um rasgo muito próprio. Quero esta gente ao pé de mim. São quase como bolsas de investimento, precisamos de as ter para sustentar estes artistas. Um artista que hoje só tem uns 3 mil seguidores pode vir a dar em alguma coisa. Isto já é um jogo, quase uma casa de apostas.

E a sua experiência vai ajudando a jogar o jogo?
Vai, mas com alguma cabeçada violenta posso errar. Até hoje nunca torrámos dinheiro na Arruada, assim milhares de euros…

Nunca houve um tiro ao lado?
Isso não. Mas recordo-me de estar a investir numa artista em que tínhamos perspetiva de crescimento, reforçámos, tocou nos grandes festivais portugueses, investimos num videoclip e a única pessoa da equação que não queria nada disto era a própria artista. Estava distraída a ser feliz. Aí sim, perdemos dinheiro, mas não dava para evoluir.

"Acho que nisto tem que haver um princípio de prazer. E entre gerir aquilo que a vida pessoal por vezes leva de pancada e criar algumas normas para nos estabelecermos... O que é preciso é ter disciplina e prazer."

As relações com os artistas são relações humanas, há aproximações e distanciamentos.
São como namoros. Há aqueles meses mais fortes, meses com maior distância… Às vezes acabam. Mas temos que dar um certo tempo. Se começámos uma relação com um artista, temos que dar um tempo para ver. Mas depois chega a uma altura em que, se está fixe, está fixe, e cada um segue a sua.

O que é que perspetiva nos próximos anos da Arruada? Deseja manter aquilo que tem, com todas as constantes adaptações de que já falámos, ou planeia alcançar coisas diferentes, começar a trabalhar com mais artistas?
A indústria da música leva muitas voltas e estou sempre de olho num próximo movimento. Há uma coisa que criámos dentro da Arruada que se chama Arraial, que é assessoria, da qual tenho muito orgulho. Temos conhecimento muito bom e, por várias razões, ainda não tirámos todo o proveito disso. Se calhar ainda não criámos a estratégia perfeita para o potenciarmos ao máximo. Por outro lado, não quero parar de pensar como é que podemos evoluir, mesmo que seja para áreas de negócio que possam não ser as nossas, em termos teóricos.

Tal como aconteceu com as curadorias em festivais, por exemplo?
Sim. Tenho sempre interesse em falar e pensar sobre isso, e não estar quieto. Tenho a certeza de que nunca vamos ser uma agência de influenciadores. Isso é algo que não domino e não vou mesmo para lá.

Mas a Arruada poderá explorar algo fora da música?
Sim, fora da música, caminhar para outras coisas. Pelo menos pensar sobre isso. É só um exemplo. Por muito que não queira a velocidade cruzeiro, estou mesmo muito contente com a equipa. E tenho que dar mais aos artistas que temos. Não procuro mais, está ótimo. Tem que haver agora um ano de reinvenção, de trabalhar muito melhor aquilo que já temos. Ser consistente é mesmo difícil.

Como é que é conciliar isto tudo com a vida pessoal? Sabemos que é uma área que trabalha bastante fora de horas normais, repleta de relações humanas complexas, não é um trabalho normal de escritório.
Três filhos… Quem é o pai que não diz que os filhos não são a melhor coisa da vida? Acho que nisto tem que haver um princípio de prazer. E entre gerir aquilo que a vida pessoal por vezes leva de pancada e criar algumas normas para nos estabelecermos… A não ser em situações extraordinárias, das 10 às 20 horas estou muito disponível para tudo. A partir das 20h01, já não estou disponível. E às 9h59 também não estou. É tentar implementar isto, explicar a toda a gente. Urgências é no hospital e eu não fui para enfermeiro nem para médico. Às vezes isto cria fricção. O pessoal às vezes às 21 ou 22 horas pensa que teve uma ideia brilhante. Esqueceram-se foi que estavam alcoolizados ou que tinham acordado há pouco tempo… Quando lidávamos mais com música eletrónica, era um pouco diferente porque os programadores ou promotores são mais noturnos. Mas também se contornava e não era um caos. O que é preciso é ter disciplina e prazer. Se conseguirmos combinar os dois, a coisa dá-se.

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