“E os pastéis de nata?”. Levantada por Isabel Herédia, a questão dá pistas claras sobre o fio condutor das festividades. Com os convidados a chegarem de várias partes do mundo num total de quase cerca de 1200 pessoas, o objetivo é que, durante dois dias, Portugal esteja bem representado à mesa — do porco bísaro de Bragança, à vitela de raça barrosã de Boticas, ostras da ria de Aveiro e, espante-se, pastéis de bacalhau, a ideia é que nada falte. A ocasião é, afinal, da maior importância: a sua filha, a infanta Maria Francisca, vai casar com Duarte Martins a 7 de outubro, na basílica do Convento de Mafra.

O calendário de festas da filha do meio, e única rapariga, dos duques de Bragança é extenso e composto por vários etapas. As festividades arrancam na véspera do casamento, a 6 de outubro, com um arraial pensado para a juventude. No dia seguinte, ainda em Mafra e logo depois da cerimónia religiosa, arranca o cocktail. O copo de água segue para a casa da família em Sintra e leva apenas um grupo mais restrito de convidados a provar o menu pensado por Hélio Loureiro, que, com um currículo vasto, é o chef consultor da SóCatering, empresa a cargo dos preparativos para os dois grandes momentos.

Não houve dilemas ou indecisões quanto a quem entregar a responsabilidade de preparar o festim. Já acostumado a comandar os banquetes da família, o chef mantém uma ligação próxima à Casa Real há décadas. Preparou, por exemplo, o jantar de apresentação do infante D. Afonso (o filho mais velho dos duques de Bragança), como príncipe da Beira, em Nelas, ou o menu do batizado do infante D. Dinis, no Porto. É, portanto, natural que tenha sido contactado logo após a marcação da data do casamento da infanta.

Mas de onde vem esta ligação? Conheceu D. Duarte Pio “ainda solteiro”, nas ocasiões em que este se deslocava ao Porto e ficava instalado no Porto Palácio Hotel & Spa, precisamente na altura em que o cozinheiro, que foi durante 20 anos chef da Seleção Nacional e durante três chef do Futebol Clube do Porto, lá trabalhava. Foi-se criando “um laço de amizade”, a partir da “convivência”, que, “como nascem as outras amizades”, foi crescendo ao longo dos anos. “Sempre foi uma amizade com muita simpatia e carinho das duas partes. Apesar das diferenças que existem entre mim e a família real, sempre fui tratado de igual forma”, lembra o chef ao Observador.

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Monárquico “por convicção e não por tradição” — apaixonado por História e por Política, juntou-se à causa por considerar que é o regime que melhor defende “os direitos e imparcialidade dos povos” —  serviu todas as casas reais da Europa, exceto uma: “Nunca recebi a Rainha Isabel II — mas recebi o Rei Carlos III enquanto príncipe, quando veio ao Porto com a princesa Diana, nos anos 80”.

Conhece a infanta desde pequenina, viu-a crescer. “E vi sobretudo a alegria que emana dela. É uma jovem sempre muito virada para o mundo, com muita vontade de conhecer e abraçar o mundo”, descreve. “É muito moderna, muito dinâmica, muito bem formada. Dá-me muito gosto vê-la crescer desta forma e, agora, vê-la casar.”

As três regras: biodiversidade, sazonalidade e proximidade

Hélio Loureiro enquadra o processo criativo a partir dos três princípios fundamentais presentes na oferta gastronómica do arraial e do copo de água — dois momentos em que houve uma preocupação muito grande, por parte da família e do chef para que fossem serviços, na maioria, apenas produtos portugueses — princípios esses que são independentes do nível de formalidade que distingue o arraial do copo de água. A biodiversidade é o primeiro ponto que destaca e expressa a “enorme variedade” de produtos ali presentes; depois, a sazonalidade, “daí que a carne barrosã seja servida com castanhas, batata doce e cogumelos, que são de época”, exemplifica; depois, “um ponto fundamental”, a proximidade, que resultará numa pegada ecológica o mais reduzida possível, o mesmo objetivo que se impõe com o desperdício alimentar.

Mas vamos a pormenores. No arraial, marcado para dia 6 de outubro, um momento marcado por uma menor formalidade que, em parte, serve para que os convidados se possam conhecer e conviver num momento descontraído, detalha o chef, será servido o porco bísaro, uma raça autóctone portuguesa, oriundo de Bragança. Serão também servidas ostras da ria de Aveiro, aqui “para lembrar aquilo que é uma novidade com poucos anos em Portugal”, que são as “ostras e a sua propagação, que cada vez atrai mais os turistas”.

Não faltará, pois, a mesa bem recheada de pães, com referências várias, desde as regueifas de Valongo, ao pão de Favais ou ainda as opções alentejanas. A mesa de queijos será igualmente farta, sempre tudo de origem nacional. Os convidados poderão ainda conhecer, vindos diretamente do Oeste, a pera Rocha e a maçã de Alcobaça; vão provar azeites variados, seja de Trás-os-Montes ou ainda de São Tomé e Príncipe, numa alusão à ligação de D. Duarte Pio a todas as antigas colónias. No campo dos doces, há queijadas de Sintra, queijadinhas de São Gonçalo e, a pièce de résistance, uma carrinha de gelados e sorvetes, feitos pelo chef Tozé Vieira, do Porto, com “produtos de origem portuguesa e frutos sazonais e locais”, detalha Hélio Loureiro.

Em suma, um arraial que é “uma festa bem portuguesa, onde as pessoas podem sentir as nossas tradições mais puras, daquilo que é a nossa gastronomia mais tradicional”, com a particularidade de incluir “vinhos de todas as regiões do país”, um objetivo partilhado entre a família e Hélio Loureiro. Dos vinhos Sogrape, João Maria da Fonseca, Quinta do Arcossó, da região dos Vinhos Verdes, espumantes Caves Messias ou moscatel de Favaios da Adega Cooperativa de Favaios a festa será, pois, sempre bem regada de Portugal — idealmente com conta, peso e medida, já que o dia seguinte integra o grande momento. É para aí que avançamos.

No “simples e elegante” cabem pastéis de bacalhau e um bolo de chocolate vegan

Alianças trocadas, já de noivos a casados, é na Escola das Armas, no Palácio Nacional de Mafra, que será servido o cocktail. O momento estará a cargo da Quinta do Roseiral e o menu segue a mesma lógica: choco frito com mousse de aneto, empadinhas de cogumelos silvestres, croquetes com carnes nacionais e até pastéis de bacalhau que, a par dos pasteis de nata, foram pedidos especificamente pelos duques. No entanto, aqui existem referências a outros países, como o ceviche ou os canapés de foie gras.

A ligação entre a Quinta do Roseiral e a Casa Real fez-se a partir do mais antigo dos métodos, o passa a palavra. “Fomos contactados, com um convite para apresentar uma proposta de orçamento e menu para o cocktail de receção do casamento”, conta Ana Batalha, CEO da empresa de catering, que indica que, além das boas referências, interessava ainda a associação a fornecedores locais, neste caso de Mafra.

Com várias equipas envolvidas, a empresa dará ainda algum apoio na cerimónia religiosa. Sem revelar detalhes, Ana Batalha descreve brevemente o perfil dos duques de Bragança: são “pessoas muito discretas”, que “não gostam de opulência, de excessos e de exageros”. Preferem antes a “simplicidade, a discrição e a elegância”. Com “uma segurança muito apertada”, a basílica vai estar decorada, claro, mas nenhum dos elementos decorativos irá sobrepor-se ou ofuscar o monumento, indica.

É entre os claustros que o bolo, uma oferta do chef Hélio Loureiro, será servido. O momento acontecerá ainda em Mafra, logo depois do cocktail, para que todos os convidados possam fazer parte dele. Depois, apenas metade da lista, composta pelo círculo mais próximo da Casa Real, seguirá para Sintra, onde, na casa da família, será servido o copo de água.

Voltamos, então, a Hélio Loureiro. O menu terá três momentos: a refeição começa com um robalo, servido com arroz caldoso carolino, um dos preferidos do receituário nacional, “bem português e bem tradicional”, nota o chef. Em cena entra de seguida a vitela Barrosã, vinda diretamente da Cooperativa de Boticas, em Trás-os-Montes. “Optámos por uma carne DOP (Denominação de Origem Protegida)”, nota. “É uma carne que fica sempre bem  e que mostra também o que é a nossa mais valia a nível de pecuária.” No final, a sobremesa, feita pela empregada da casa dos Duques de Bragança, o cheesecake “de sempre”, que faz “divinamente”, descreve o chef.

E os vegetarianos e veganos? Em momento algum, incluindo o cocktail, foram ignorados, assim como aqueles que apresentam alergia ao glúten — ainda que, de acordo com o chef, representem uma fração mínima do casamento. Para eles haverá sempre opção. Neste caso, um chili de abóbora, raviolis de cogumelos com creme de soja e, para terminar, um bolo de chocolate vegan.

Tudo servido de acordo com o que dita o protocolo, essa que é a “ciência de colocar a cidade inteira em fila indiana, segundo as precedências”, resumia um dos professores de Hélio Loureiro. “No fundo, é isso que temos de saber. Quem são as pessoas que se precedem umas às outras, para saber quem é servido primeiro”, detalha. Sem pormenores fechados e memorizados, indica a norma principal: “A regra é bem clara: primeiro o clero, depois as senhoras, depois os cavalheiros.

Com provas por marcar (tanto com a Quinta do Roseiral, como com a SóCatering), Hélio Loureiro conta que teve total liberdade na criação dos dois menus e, tanto os noivos, como os duques de Bragança — Isabel Herédia, a mais envolvida nos detalhes gastronómicos do momento — lhe deram total confiança na criação dos dois jantares. “Fiz uma proposta à senhora duquesa de Bragança, que depois foi apresentada à infanta D. Maria Francisca, e fomos falando e acertando tudo até chegarmos a uma ementa final”, conta. “De facto não houve aqui nenhuma divergência, pelo contrário. Tudo aquilo que foi proposto foi muito bem aceite. São pessoas com que é muito fácil trabalhar”, diz. “Quem nos dera que fossem todos assim”, brinca.