Discurso de Carlos César na rentrée do PS

Presidente do PS encerrou a conferência nacional do PS, que serviu de rentrée, e aumentou a pressão sobre a esquerda

Anotações

 “A obrigação do PS é reclamar os contributos em geral de todos os partidos e da generalidade dos atores sociais e económicos, estimulando e promovendo a concertação social, mas já dissemos e reiterámos inúmeras vezes: a nossa opção inequívoca é de trabalhar com os nossos parceiros estratégicos que têm sido essenciais para os muitos progressos dos últimos cinco anos”.

Ao contrário de António Costa, que fez um discurso de uma hora muito centrado nos eixos estratégicos do plano de recuperação económica e muito virado para dentro, Carlos César fez o discurso de encerramento que se impunha numa rentrée: falou para fora, para os parceiros parlamentares com quem o PS está a negociar o próximo Orçamento do Estado (e não só). Bastaram 15 minutos para cumprir o propósito: Carlos César disse com todas as letras o que os restantes intervenientes na conferência nacional da rentrée foram soltando — que, apesar de o apelo aos consensos ser dirigido a todos, é a esquerda que o PS quer. A opção pela esquerda é “inequívoca”, começou por dizer Carlos César. A pressão viria a seguir, mas com pezinhos de lã, porque as negociações ainda vão no adro e não é hora de hostilizar.

“O que está em causa para recuperar Portugal é muito para concordarmos apenas em pouco.”

Depois de reafirmar, sem equívocos, que é com a esquerda que o PS quer pensar o plano de recuperação da economia, e não quer voltar a aparecer na fotografia ao lado do PSD como no Orçamento Suplementar (em que o PCP votou contra e foi o PSD, com o BE, que viabilizou o documento), Carlos César foi descascando o argumentário. Primeiro: sabemos que somos diferentes, sempre fomos, mas isso não nos impediu de conseguir os ‘feitos’ da recuperação de rendimentos e do crescimento da economia no tempo da geringonça. Depois: se antes conseguimos, agora, com uma pandemia às costas, ainda devíamos conseguir mais. Mais à frente, César diria mais: “É claro que não pode haver acordos onde sempre se discordou, ou sobre aquilo que os outros sempre discordaram, mas haverá certamente matérias suficientes para estabelecer um propósito comum”. Ou seja, o apelo é para os partidos porem as diferenças de lado e unirem-se no propósito comum de dar uma resposta à crise.

“Exige muito diálogo mas exige vontade política antes e compromissos em concreto para depois”.

Na política, como na vida, para haver qualquer acordo é sempre preciso que haja, primeiro, vontade. É a chamada “vontade política”. Isso, no entender de Carlos César deveria bastar para servir de base comum para os partidos da esquerda avançarem. Ou seja, se Catarina Martins e Jerónimo de Sousa respondem aos apelos socialistas de renovação de votos com uma postura de ‘palavras leva-as o vento, queremos é coisas concretas’, César responde de volta: compromissos concretos vêm depois. Primeiro é preciso vontade para sentar à mesa e conversar. Aqui, o recado atinge em cheio o PCP, que optou por faltar à reunião com António Costa que esteve marcada para esta sexta-feira (só foi o BE, PAN e PEV), tendo manifestado indisponibilidade de agenda. Para já, o PCP informou que vai estar nas reuniões técnicas, que terão lugar para a semana, mas com uma espécie de um pé dentro e outro fora.

“O governo, neste tempo decisivo, não pode depender de humores acidentais. A nossa obrigação é pensarmos que tudo isto tem a ver com interesse nacional e pouco a ver com calculismos passageiros”.

Aqui, o aviso à negação é claro: há autárquicas no outono do ano que vem, e há calculismos a fazer, mas isso não deve toldar o cenário maior que é a recuperação económica do país que está a braços com uma pandemia. Mais uma vez, o alvo é o PCP, que já foi muito castigado nas urnas nas últimas eleições locais (perdeu câmaras históricas para o PS) e que agora não deverá querer repetir o erro. Certo é que a “geringonça” sempre foi difícil de explicar aos militantes comunistas, e é esse tipo de calculismo que o presidente do PS quer evitar. César até usou expressões duras como “humores acidentais” e “calculismos passageiros”, embora tenha sido genericamente contido na pressão que impôs aos velhos parceiros parlamentares.

“Não só são importantes as aprovações dos Orçamentos do Estado como são importantes outras decisões e aprovações estratégicas no plano parlamentar. (…) O que está em causa é demasiado prolongado para pensarmos apenas ano a ano”.

O acordo tem de ser de longo prazo. O acordo tem de ser de longo prazo. O acordo tem de ser de longo prazo. Se isto fosse uma sala de aula, era esta frase que o professor Carlos César estaria a pedir a Catarina e Jerónimo para escrever repetidas vezes no quadro. César não se tem cansado de o dizer de todas as maneiras, tal como Costa o vai dizendo (embora se tenha abstido de o fazer neste discurso da rentrée, deixando o palco para o presidente do partido): querem um “roteiro de ação de médio e longo prazo no horizonte da legislatura” ou um “enunciado programático” que se estenda ao longo da legislatura. Não basta a negociação de Orçamento do Estado em Orçamento do Estado. Para conferir “estabilidade” ao Governo — talvez a palavra mais repetida em todas as intervenções deste longo dia de trabalhos — é preciso que os acordos se estendam para lá disso. Na memória dos socialistas está ainda o famoso PEC IV, o Programa de Estabilidade e Crescimento que derrubou o ex-primeiro-ministro José Sócrates no Parlamento. Um PEC, porém, só vai a votos se algum partido assim o entende. O mesmo irá acontecer ao Plano de Recuperação económica que Costa vai enviar para Bruxelas e o qual quer discutir com os parceiros da esquerda.

“Não vejo chantagens ou arrogâncias nesses apelos, vejo humildade e uma grande consciência do interesse nacional”.

Catarina Martins apressou-se a reagir, este domingo, à entrevista de António Costa ao Expresso dizendo que se tratou de um “ultimato”. Já na semana passada, na sequência de uma publicação de Carlos César no Facebook, Francisco Louçã tinha vindo a correr apelidar as declarações de “chantagem”. A “chantagem”, no entender da esquerda, é mais ou menos esta: ou entram no barco ou, se não entrarem, serão vocês os responsáveis por uma crise política que ninguém quer. Mas Carlos César não vê chantagem nisso, vê antes um apelo “humilde”, já que o PS não tem maioria absoluta e precisa de parceiros para governar, e uma “consciência do interesse nacional” por entender que é com a esquerda que os portugueses ficam melhor servidos.

“Os portugueses terão certamente razões para julgar com severidade os que virarem as costas ao futuro. O PS está aqui, aqui ninguém se demitiu de procurar cuidar do futuro dos portugueses e portuguesas”.

No fim de tudo, a conclusão é uma e é simples: se no fim do dia os parceiros da esquerda (ou um deles) saltarem fora, então os portugueses, no entender de Carlos César, saberão julgar quem “esteve lá” para responder à crise e quem “virou costas ao futuro”. Chantagem? Carlos César diria que é interesse nacional.