Os portugueses pagam pela saúde muito mais do que os outros europeus. Enquanto que, na média da União Europeia (UE), os utentes pagam apenas 15,8% da despesa total com saúde, em Portugal esse valor representa 27,5%, quase o dobro. Em contrapartida, o Estado assegura 66,4% — muito abaixo do que acontece nos países da UE, onde a média é de 79,3%. Esse valor do financiamento público da saúde está, aliás, em queda, segundo os dados mais recentes, relativos a 2017.
O cenário é ainda mais preocupante tendo em conta o impacto que os gastos em saúde a cargo dos utentes tem para o orçamento familiar de alguns agregados: cerca de 330 mil famílias portuguesas usam na saúde mais de 40% de todas as despesas com bens e necessidades essenciais. Uma fatia que faz com que o valor seja definido como “despesa catastrófica”, que pode “minar a acessibilidade e contribuir para empobrecer os agregados familiares”.
As conclusões são do relatório “O Estado da Saúde da UE”, que inclui um perfil de saúde de Portugal e que foi apresentado esta quinta-feira, numa conferência de imprensa em Bruxelas, pelo comissário europeu da Saúde e Segurança dos Alimentos, Vytenis Andriukaitis. Um documento realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e pelo Observatório Europeu de Políticas e Sistemas de Saúde, em cooperação com a Comissão Europeia, que contém perfis de saúde de 30 países — os 28 Estados-membros mais a Noruega e a Islândia — construídos com base em dados disponíveis em julho de 2019, essencialmente estatísticas nacionais enviadas ao Eurostat e à OCDE.
Do relatório sobram ainda outros dados: a despesa total com a saúde, em Portugal, é muito inferior à média da União Europeia — cerca de 30% menos —, 600 mil utentes não têm médico de família e os portugueses vivem cada vez mais anos, especialmente as mulheres, mas apenas metade da população considera-se saudável.
Despesa na saúde é 30% inferior à média da UE. Dinheiro público continua em queda
Apesar de dar conta de que a despesa tem recuperado desde a crise económica, o relatório traça um retrato que afasta Portugal da média dos outros países europeus. A começar pela diferença nos gastos com a saúde: os dados mais recentes são de 2017 e mostram que Portugal gastou, no total, 2.029 euros por pessoa (9% do PIB), o que representa quase um terço abaixo da média europeia, que é de 2.884 euros por pessoa.
Destes gastos, quanto é pago pelo Estado e quanto sai do bolso dos utentes? O mesmo documento refere que, em 2017, 66,4% do setor da saúde foi financiado pelo Estado, sendo que a média da UE foi de 79,3%. Pelo contrário, os utentes pagaram 27,5% das despesas totais de saúde, um valor muito superior — quase o dobro — ao da média europeia (15,8%). O dinheiro dos utentes foi gasto, sobretudo, no pagamento de cuidados ambulatórios (13,1%) e em medicamento (6,4%), sendo que a nível europeu as percentagens são de 3,1% e 5,5% respetivamente. As taxas moderadoras, por sua vez, são insignificantes para estas contas, considera o relatório. Como foram abolidas, recentemente, nos cuidados de saúde primários e noutros cuidados do SNS, pouco vão aligeirar o bolso dos portugueses.
Além de gastar menos que os outros países europeus, em proporção, o Estado está também a gastar cada vez menos, em relação aos anos anteriores. O relatório dá conta de que, entre 2010 e 2017, o valor gasto pelo Estado na área da saúde em Portugal diminuiu devido ao programa de ajustamento económico: a despesa pública com a saúde caiu de 69,8% para 66,4% do total da despesa.
O facto de caber aos portugueses uma fatia tão grande das despesas totais em saúde (os tais 27,5%) leva a Comissão Europeia a fazer um alerta: estes pagamentos diretos dos utentes, que financiam o sistema de saúde, podem “minar a acessibilidade” e contribuir para o empobrecimento dos agregados familiares. Em 2016, 8,1% das famílias (mais de 330 mil, segundo dados da Pordata) tiveram despesas catastróficas, isto é, despesas “superiores a 40% do total das despesas das famílias, líquido das necessidades de subsistência (ou seja, alimentação, habitação, serviços públicos essenciais.)”. Estas despesas catastróficas atingem em particular os agregados familiares com rendimentos mais baixos, mais concretamente 30%.
Em termos de orçamento total para a saúde, os cuidados ambulatórios, os internamentos hospitalares e os produtos farmacêuticos são as principais fontes de despesa, sendo que a primeira representa quase metade dos gastos totais (49%). Em 2017, Portugal despendeu 994 euros por pessoa em cuidados ambulatórios — o que até está acima da média europeia (858 euros). Muito abaixo ficam os 520 euros em cuidados de internamento, quando a média na UE é de 835 euros, e que correspondem a 26% da despesa total. Quanto aos produtos farmacêuticos e dispositivos médicos, foram gastos 382 euros por pessoa (a média europeia foi de 522 euros), ou seja, 19% da despesa total. Apenas 3% e 2% foram gastos em cuidados continuados e em cuidados preventivos, respetivamente, também com números muito inferiores à média da UE: se Portugal gasta 54 euros por pessoa em cuidados continuados e 36 euros em prevenção, a média europeia é de 471 euros e 89 euros, respetivamente.
De acordo com o relatório, há dois fatores que põe em causa a sustentabilidade financeira do sistema de saúde: a população envelhecida e os pagamentos em atraso dos hospitais públicos. O facto de Portugal ter uma população envelhecida, com problemas de saúde crónicos e que implicam maiores cuidados de saúde, faz com que o sistema tenha mais despesas — a maioria dos custos do sistema está ligada à prestação de cuidados a estes utentes. Ainda assim, o documento refere que graças às reduções ao nível da despesa e a medidas pós-crise, como o aumento do número de horas de trabalho e contratos com instituições, fez com que o sistema de saúde português se tornasse “menos dispendioso” e “mais produtivo”.
Quanto às dívidas dos hospitais do SNS, é um problema que dura há já vários anos e que implicou um forte investimento por parte do Estado. E ainda assim, continua a haver problemas, o que levou o Governo a criar, este ano, um programa para avaliar as causas que levam a estes atrasos nos pagamentos por parte dos hospitais do SNS.
600 mil portugueses sem médico de família. Interior é mais prejudicado
O relatório conclui, ainda assim, que Portugal tem “um bom sistema de cuidados primários, capaz e manter os doentes fora dos hospitais quando isso se justifica”. Parte disto deve-se ao aumento do número de utentes com médicos de família. Apesar de o número de pessoas sem médico de família em 2016 ser mais elevado — contavam-se 1,2 milhões de utentes sem médico de família, isto é, 11,6% da população— no início de 2019, ainda havia 600 mil portugueses sem médico de família, o que correspondia a 5,8% da população. A diminuição do valor em três anos deveu-se à iniciativa levada a cabo pelo Governo de atribuir um médico de família a todas as pessoas, explica o documento.
No entanto, um dos problemas que é destacado é o “acesso mais limitado” aos médicos de família por parte dos utentes que vivem em meios rurais. O documento refere que os cuidados primários são assegurados tanto pelo setor público como pelo setor privado, sendo que a grande maioria dos privados — que asseguram cuidados como as consultas de medicina dentária, os serviços de diagnóstico, a hemodiálise e a reabilitação — estão muito centrados nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e ao longo do litoral entre as duas cidades, deixando de fora as populações do rurais e do interior, tornando assim difícil o acesso a médicos de família.
É que a distribuição desigual dos recursos de saúde é tanto a nível de instalações como de profissionais de saúde. Em março 2019, a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo era a que concentrava mais unidades de cuidados de saúde primários (34%), seguindo da ARS do Norte. Em contrapartida, Açores tinha apenas 1,3%, Alentejo 2% e Madeira 3,6%.
Quanto aos profissionais de saúde, apesar de o número ter vindo a aumentar desde 2000 — nos médicos contam-se 5 por cada mil habitantes e 6,7 enfermeiros por mil habitantes, este último inferior à média europeia — os municípios com uma população mais idosa, localizados nas zonas do interior rural, na Madeira e nos Açores, têm menos médicos por cada mil habitantes, em particular nas especialidades de Psiquiatria, Oftalmologia e Ortopedia.
Relativamente às necessidades que não foram respondidas a nível da saúde, em 2017, 2,3% dos portugueses consideraram que as necessidades de cuidados médicos não foram satisfeitas por motivos de custo, distância ou tempos de espera. Das pessoas com rendimentos mais baixos, a taxa das que alegaram motivos financeiros para não terem um acesso satisfatório aos cuidados de saúde é o dobro da média da UE: em Portugal são 4,6% e a média da Europa é 2,3%. 0,5% dos mais pobres invocou as listas de espera como motivo para não estar satisfeita com os cuidados de saúde médicos — abaixo da Europa, cuja média é de 0,8% — e apenas 0,1% diz não estar satisfeito por causa da distância a percorrer — metade da média europeia (0,2%).
Mas mais graves do que os cuidados médicos gerais são os cuidados dentários. O relatório sublinha que Portugal está em segundo lugar no top dos países cujas necessidades nos cuidados dentários não foram satisfeitas, além de que, em termos percentuais, o número de pessoas é quatro vezes maior do que a média europeia: em 2017, 11,6% dos portugueses disseram não estar satisfeitos com o acesso aos cuidados de saúde dentários , enquanto na Europa a percentagem foi de 2,6%. Do total da população, 11,5% apontou como principal causa as dificuldades financeiras para a insatisfação, sendo que a mesma razão foi invocada por apenas 2,6% da média da UE.
Portugueses vivem mais…
Em dezassete anos, entre 2000 e 2017, a esperança de vida em Portugal aumentou cinco anos, situando-se agora nos 81,6 anos. Um número acima da média da UE (80,9 anos), mas abaixo de países como a Espanha (83,4), a Itália (83,1) e a França (82,7).
A diminuição das taxas de mortalidade por doença cardiovascular, em particular o Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a doença cardíaca isquémica, foi o fator que mais influenciou esta situação. Ainda assim, estas continuam a ser as principais causas de morte no país. Relativamente à mortalidade, o relatório refere que, desde 2000, se morre cada vez mais de cancro do pulmão e de cancro colorretal — são as causas de morte mais comuns, a nível oncológico, entre os portugueses — e que o número de mortes por diabetes está acima da média europeia: em 2016 era de 38,7 por 100 mil habitantes em Portugal enquanto que a média europeia era de 22,2.
Mas nem tudo são dados negativos: Portugal está abaixo da média europeia no que toca às mortes que podem ser evitadas com medidas de saúde pública e prevenção primárias (taxa de mortalidade evitável), como os acidentes, cancro do pulmão, doenças cardíacas isquémicas, AVCs, doenças relacionadas com o álcool, entre outros. Em 2016, registaram-se 140 mortes (por causas evitáveis) por cada 100 mil habitantes — menos nove do que em 2011 —, sendo que a média da UE foi de 161. Algo que resultou, segundo o documento, dos “esforços do governo no sentido de melhorar os serviços de prevenção”, nomeadamente dar às unidades locais de saúde a responsabilidade de definir as políticas de saúde locais.
Portugal também está abaixo da média europeia no que toca ao número de mortes que podem ser evitadas com tratamentos apropriados a atempados (taxa de mortalidade por causas tratáveis), nomeadamente cancro da mama, pneumonia, cancro colorretal, entre outras. Em 2016, contabilizaram-se 89 mortes por 100 mil habitantes, sendo que a média da UE foi de 93. E há mais homens a morrer de doenças tratáveis do que mulheres (106 e 75, respetivamente).
… mas mais de metade acha que não está bem de saúde
O aumento da esperança de vida, contudo, não é igual para todos: em 2017, as mulheres viviam mais seis anos do que os homens — a média da UE é de 5,2 anos. O estatuto socioeconómico também tem o seu peso, isto é, os portugueses com um nível de educação mais elevado (que concluíram o ensino superior) vivem mais três a seis anos do que os menos instruídos (não concluíram o ensino secundário). De acordo com o documento, as “diferenças de rendimento decorrentes do nível de escolaridade” e as “diferenças na exposição a vários fatores de risco e estilo de vida” explicam em parte esta disparidade.
O facto de os portugueses viverem mais anos traduziu-se num aumento da população com mais de 65 anos: em 2017, representavam 21% da população total. No entanto, viver mais anos não implica que todos eles sejam vividos de boa saúde. Aliás, em 2017, dos mais 20 anos que se esperava que as pessoas de 65 anos vivessem, era provável que mais de metade (cerca de 13) fossem passados com algum tipo de incapacidade — a média da UE é quase 10 anos com incapacidade. E também aqui se nota uma disparidade no que toca ao género: quanto à esperança de vida as 65 anos, os homens vivem menos anos do que as mulheres — cerca de quatro anos —, mas com melhor qualidade em termos de saúde. O relatório adianta ainda que 53% da população do país com idade igual ou superior a 65 anos dizia ter pelo menos uma doença crónica.
As diferenças a nível socioeconómico também se notam na perceção que a população tem do seu estado de saúde. Isto é, a percentagem de pessoas que dizem estar bem de saúde é mais baixa naqueles com rendimentos mais baixos do que entre as que têm rendimentos elevados (39% para 61%). Sendo que, a nível global, menos de 50% dos portugueses afirma estar de boa saúde — na UE, mais de dois terços dos adultos consideram estar bem ou muito bem de saúde.
Má alimentação, tabaco e álcool matam um terço dos portugueses
No que toca a fatores de risco, o relatório refere que, em 2017, à volta de um terço das mortes em Portugal pode ter tido como causa comportamentos de risco: 14% foram ligadas a riscos a nível alimentar — excesso de alimentos com açúcar e sal e pouco consumo de legumes e frutas — , 12% associadas ao tabaco e 11% relacionadas com o consumo de álcool (apenas esta é superior à média da UE) — e 3% relativa ao pouco exercício físico.
Apesar de haver cada vez menos pessoas a fumar todos os dias (17%, cerca de menos dois pontos percentuais que a média da UE), o consumo de álcool entre os portugueses é superior ao da média europeia: 10,7 litros por adulto enquanto que a média da UE é de 9,9 litros. Ainda assim, importa destacar que há apenas quatro países com valores mais baixos do que Portugal relativamente ao consumo excessivo esporádico de álcool (consumo de seis ou mais bebidas alcoólicas numa ocasião).
Quanto à obesidade, as taxas são mais preocupantes nos adolescentes, que têm vindo a aumentar nos últimos anos. Se em 2017, 15,4% dos adultos diziam ser obesos, um em cada cinco adolescentes afirmava ter excesso de peso ou ser obeso em 2013 e 2014. Algo que está diretamente relacionado com a pouca prática de exercício físico: os adultos em Portugal praticam menos exercício físico moderado todas as semanas do que a média da Europa (57% em 2014, comparativamente a 64%). O cenário não é melhor nos adolescentes, especialmente no caso das raparigas. Em 2013 e 2014, apenas 5% das raparigas de 15 anos dizia fazer exercício físico moderado diariamente, enquanto que a percentagem nos rapazes era de 18%. Contrariamente aos restantes comportamentos de risco, o fator rendimentos ou instrução tem uma influencia significativa neste caso: a obesidade atingia 18% das pessoas com menos educação (sem nível secundário) e apenas 9% das mais instruídas.
O relatório dá ainda conta de que, no que toca à vacinação, Portugal tem níveis de imunização muito elevados, em muitos casos superiores à média europeia. No ano passado, as taxas de vacinação em crianças contra o sarampo e contra a difteria, o tétano e a tosse convulsa (DTP) era de quase 100% — mais concretamente de 99 %, ultrapassando a média da UE (94%) e a meta da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 95 %. No caso da vacina contra a gripe, os valores são positivos, mas não tão bons: 61% da população portuguesa com mais de 65 anos está imunizado, acima da média europeia (44%), mas inferior à meta de 75% da OMS. Estes números, de acordo com o relatório, estão associados, em parte, ao facto de a vacinação ser gratuita e de fácil acesso, estando disponível nos cuidados de saúde primários.