790kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Terramoto de 1755: a tragédia que arrasou Lisboa e também mudou o mundo

O sismo que teve epicentro na zona de Arraiolos relançou a questão: e se Lisboa voltar a tremer? Carlos Maria Bobone escreve sobre a tragédia que mudou a cidade mas também a filosofia.

    Índice

    Índice

A descrição do martírio de Santo Estêvão, nos Actos dos Apóstolos, pode servir de contrapeso. Se, com o primeiro mártir, se abriram os céus, naquele fatídico dia de todos os Santos foi a Terra que se abriu. Se um caso era o maior esplendor da glória, o outro foi a maior tragédia da era moderna.

Nenhuma catástrofe chocou tanto o mundo como o terramoto de Lisboa, em 1755. O desastre monumental inspirou poetas, interessou filósofos, irou profetas e motivou políticos. O epicentro do Império Português era reduzido à insignificância da obra humana: num sopro, num movimento preguiçoso das placas subterrâneas, todas as maravilhas da técnica e do progresso civilizacional aluíam como construções de crianças.

Os desastres vinham uns depois dos outros, o gigantesco maremoto seguiu-se ao chocalhar da terra, e nem a fúria do rio revolto apagava os incêndios que persistiam pela cidade. Todos os elementos conluiavam contra a cidade, castigada com todo o arsenal da Natureza.

Qual é o plano especial da Proteção Civil para um grande sismo em Lisboa?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Percebe-se o choro e ranger de dentes dos sobreviventes, a toada alarmista do Padre Malagrida e seus sucedâneos, percebe-se o desespero de uma monarquia que vê os seus tesouros arruinados, de uma nação que vê a sua História reduzida a escombros e das famílias, decepadas brutalmente de vários ramos das suas árvores genealógicas de uma assentada. Tudo isto se percebe. Ainda assim, a importância do terramoto ultrapassa largamente as tragédias emocionais em larga escala.

A sucessão dos dias, repleta de feitos heroicos, está bem explicada na crónica da época, impressionada sobretudo com a dimensão apocalíptica das desgraças em catadupa.

É, não apenas o drama familiar ou a perda patrimonial, mas um marco revolucionário, à maneira de um 11 de Setembro setecentista. Isto porque o sismo vem mostrar, não apenas o poderio da natureza, mas o equilíbrio instável de uma sociedade suspensa sobre modelos filosóficos e políticos concorrentes e em disputa muda. De alguma forma, o terramoto destapa os fundamentos e aquilo que se vê é aterrador: a corrosão e o cansaço de velhos alicerces, bichados por uma filosofia que se prepara para escorar um mundo completamente diferente. Não que seja o sismo a provocar o confronto: esse já existe há muito; mas as reacções ao terramoto mostram como a sociedade vivia em mundos tão diferentes, sem vergonha de se mostrarem diante da tragédia. O terramoto é o acontecimento limite que não permite mais a coexistência pacífica e o confronto velado. A discussão filosófica e política salta dos salões eruditos para o quotidiano, e revela-se tão confusa quanto a cidade devastada.

Miséria, violência e milagres

Do terramoto propriamente dito e da História política que se lhe seguiu, há muita informação e, desde há muito, bastante organizada. Um Oratoriano do Convento da Rua Nova do Almada, o Padre Manuel Portal, escreveu logo na altura uma História da Ruína de Lisboa muito informativa. A documentação coeva dá ideia de algum do património artístico perdido, das misérias e da violência, mas também dá conta da proliferação de episódios milagrosos, conta os episódios pios de assistência, os exemplos de abnegação a reerguer a cidade, o papel de algumas casas sobreviventes, como o Palácio Almada, por exemplo, na assistência aos trabalhadores e aos feridos, alojados aos milhares nas arcadas daquele que é hoje o palácio da Independência, entre milhares de outros episódios. A sucessão dos dias, repleta de feitos heroicos, está bem explicada na crónica da época, impressionada sobretudo com a dimensão apocalíptica das desgraças em catadupa.

Quanto ao património, entre os exageros fabulosos e os tesouros que nunca ninguém inventariou, é de facto difícil saber o que se perdeu. O património régio está razoavelmente documentado, as alterações mais significativas na paisagem também, mas a história portuguesa é de facto impiedosamente mutilada com a tragédia. Numa tese muito interessante de 2012, Pedro Madureira dá conta dos palácios que existiam antes do terramoto. Só os palácios são suficientes para se perceber a dimensão das perdas: Pedro Madureira explica que ruíram completamente pelo menos 43 palácios de Lisboa.

Ilustração da destruição provocada pelo terramoto

Claro que, no cenário de devastação que o terramoto provocou, também surgiram milhares de oportunidades. Além da consagração do poderio do Marquês de Pombal, o terramoto permitiu, provavelmente pela primeira vez na Europa, a instauração de uma arquitectura cartesiana, pensada a partir da cidade e não do indivíduo. A compreensão da cidade como um todo e como uma espécie de oportunidade para o a construção social de um Homem novo, que têm sido copiosamente estudadas por José-Augusto França são, como é óbvio, um dos legados mais interessantes do terramoto. A arquitectura da cidade é, pela primeira vez, conscientemente desenhada de acordo com um princípio filosófico aplicado a uma arte prática. E se, nesta matéria, o princípio é firme e uniforme, noutras o caso torna-se muito mais complicado. O terramoto transforma-se, rapidamente, no epicentro de uma grande controvérsia filosófica.

A ira divina e a corrupção da sociedade

Habitualmente, a influência filosófica do terramoto é ensinado como se o terramoto fosse uma espécie de machadada final nas concepções providencialistas do mundo.

Recriações do terramoto de 1755

A condenação do Padre Malagrida seria o exemplo mais óbvio. Malagrida, que clamava pelo arrependimento do povo e da monarquia, que tomava o terramoto como sintoma da ira divina contra a corrupção da sociedade, não seria condenado por um qualquer despeito da monarquia contra uma voz influente que os acusava de má conduta, nem por verdadeiras heresias clericais. A condenação do Padre Malagrida seria, antes de mais, um sinal da pouca tolerância em relação às interpretações místicas e providencialistas, uma forma de cortar os alarmismos escatológicos e de indicar o caminho: a interpretação necessária é uma interpretação positiva (passe o anacronismo), centrada no natural e na capacidade da técnica para prevenir futuras tragédias deste jaez.

Se Lisboa abanar, cai como Amatrice?

Ora, a grande discussão filosófica, porém, a discussão que anima Voltaire e Kant, por exemplo, não se centra bem nestes pontos. É fácil perceber porquê: em primeiro lugar, se o terramoto exigia uma tomada de posição em relação à técnica, seria de grande cepticismo. O terramoto era precisamente o exemplo da vanidade da técnica humana diante do poderio da Natureza. Além disso, o desastre é, à época, precisamente o ponto sensível numa interpretação natural dos fenómenos físicos. O desastre é a excepção, a refutação do princípio mecânico de que os seres se comportam sempre da mesma maneira.

A desgraça do terramoto é, assim, um argumento capital para mostrar como este não pode ser o melhor dos mundos possíveis. É facilmente imaginável um mundo sem terramoto, e seria decerto um mundo melhor.

O primeiro alvo filosófico do terramoto é, assim, precisamente uma interpretação racionalista e excessivamente natural da história. A teodiceia de Leibniz (embora truncada e caricaturada, como é habitual no método de Voltaire) é permanentemente confrontada pela existência do terramoto. Para o Leibniz que Voltaire caricaturou, Deus não precisa de milagres nem de actuações excepcionais porque a sua bondade cria a lógica do mundo de tal forma que ele segue naturalmente o seu curso. E se foi este o mundo que criou, este seria naturalmente o melhor dos mundos possíveis: não é possível que um Deus bom pudesse criar um mundo melhor e não o criasse. A desgraça do terramoto é, assim, um argumento capital para mostrar como este não pode ser o melhor dos mundos possíveis. É facilmente imaginável um mundo sem terramoto, e seria decerto um mundo melhor.

A terra tremeu e o mundo mudou

O que Voltaire faz, então, é materializar a acção divina. Na concepção de Leibniz, como é óbvio, aquilo a que se chama o mal natural não é um verdadeiro mal. O mal é sempre moral, pelo que depende da maneira como o Homem reage à desgraça, a desgraça em si não é um mal. Voltaire, porém, com o terramoto, materializa o mal. Voltaire não é, ao contrário do que é costume afirmar, um verdadeiro ateu; ele vê, isso sim, um pouco à maneira de Espinosa, a obra de Deus como a manifestação d’Ele mesmo. É isso que permite olhar para o mundo de um ponto de vista Natural: não é preciso olhar para o mundo à procura de intenções ocultas, de causas finais ou de desígnios divinos. Não porque eles não existam, mas porque a própria Natureza é sinal deles.

Ruínas da igreja de São Nicolau (Jacques Philippe LeBas)

O grande confronto não é, assim, entre aqueles que vêem no terramoto um sinal claro da providência e aqueles que vêem nela uma prova da inexistência da Providência. Entre os vários grupos místicos que se formam e o iluminismo mais “esclarecido”, o inimigo comum parece ser, antes de mais a concepção racionalista da história, atacada por lados opostos. Essa, mais do que qualquer outra, foi a grande discussão que ficou do terramoto, e que fez dele um ponto central também da História da filosofia. Passados os tempos áureos dos conimbricenses e mais do que a geração pombalina de Verney e Teodoro de Almeida, este foi o nosso grande contributo para a filosofia moderna: aquele fatídico 1 de Novembro em que a terra tremeu.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora