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MICHAEL REYNOLDS/EPA

MICHAEL REYNOLDS/EPA

Um espectáculo de nomeação para o Supreme Court

É um clássico americano: a nomeação de juízes para o Supremo Tribunal é sempre um espetáculo mediático. Quais são as polémicas e as virtudes do escolhido por Trump? Ensaio de Miguel da Câmara Machado

Ao contrário do que li em vários sítios, fazer das nomeações dos juízes para o Supreme Court of the United States um espectáculo é um clássico americano e não foi mais uma “inovação” do Presidente Trump. Para ilustrar e ver alguns desses momentos, recomendo ler sobre o historial e os relatos das vésperas da nomeação, pelo Presidente Clinton, da famosa “RBG” (Ruth Bader Ginsburg, uma das juízas liberais mais famosas do mundo) e podemos ver essa nomeação aqui:

Para quem goste de seguir as carreiras de juristas e professores de Direito como se fossem jogadores de futebol, o processo de nomeações para este Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (também conhecido como SCOTUS) é um tempo de luxo. Ficamos a conhecer listas de nomes famosos, podemos estudar percursos e carreiras e fazem-se mesmo apostas sobre quem será o próximo Supreme e muitos discutem posições jurídicas e casos judiciais com mais energia e ânimo do que os pénaltis ou faltas do fim-de-semana passado.

Composto por nove juízes, nomeados para a vida, este é o tribunal responsável por uniformizar o Direito daqueles cinquenta estados desde a fundação e os seus casos são seguidos por todo o mundo, influenciando as decisões de tribunais e o pensamento jurídico a uma escala global. Qualquer aluno de Direito americano conhece aqueles juízes pelo nome, são estrelas que enchem salas para os ouvir, e as suas opinions (ou dissenting opinions) são repetidamente citadas por lá, usadas em filmes ou séries e, também por cá, as conhecemos em aulas de Direito comparado ou até estudadas para fazer reformas legislativas informadas e bem preparadas.

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Sempre que um juiz do SCOTUS renuncia ou morre, os holofotes viram-se para Washington e começa uma contagem decrescente para conhecer o novo juiz nomeado pelo Presidente e saber se o mesmo vai ser confirmado em votação no Senado depois de audições seguidas em direto e acompanhadas ao minuto.

A renúncia do juiz Anthony Kennedy

A 27 de junho, o juiz Anthony Kennedy (nomeado em 1987 pelo Presidente Reagan) anunciou a sua renúncia ao cargo a partir de dia 31 de julho de 2018. Depois de mais de três décadas sentado naquele tribunal, responsável por muitas das mais famosas decisões da sua História recente e conhecido como o principal swing vote (o voto de “desempate”) desde a saída da juíza Sandra Day O’Connor em 2006, muito mundo mediático “tremeu” com as notícias, antecipando-se um tribunal mais conservador na sequência da nomeação de um substituto pelo atual Presidente dos EUA.

O preenchimento da última vaga antes desta naquele tribunal foi das mais polémicas de sempre, depois de ter morrido um dos heróis dos conservadores americanos, o juiz Antonin Scalia, durante as eleições presidenciais de 2016, e o Senado dominado pelos republicanos se ter recusado a ouvir sequer o juiz Merrick Garland, nomeado pelo Presidente Obama, tendo deixado caducar essa nomeação e permitindo ao Presidente Trump começar o seu mandato com a escolha do juiz Neil Gorsuch para aquele mesmo lugar, facilmente confirmado e elogiado mesmo do “outro lado da barricada”, mas escolhido por ser um juiz “nos mesmos moldes” do velho Scalia.

Apesar de o juiz Kennedy ter sido o principal swing vote (ou “quinto voto”) em muitos dos landmark cases dos últimos anos, vejam-se por exemplo os casos Obergefell v. Hodges (2015) – sobre o casamento homossexual; Citizens United v. FEC (2010) – sobre as contribuições de pessoas coletivas para campanhas eleitorais; Boumediene v. Bush (2008) – sobre os direitos dos detidos de Guantanamo; Roper v. Simmons (2005) – que acabou com a pena de morte para menores; ou Planned Parenthood v. Casey (1992) que manteve o “direito ao aborto” decorrente do Roe v. Wade (1973), em 2018 não foi assim e ele não era, nem foi o único a decidir casos relevantes, mesmo para os mais liberais.

A 27 de junho, o juiz Anthony Kennedy (nomeado em 1987 pelo Presidente Reagan) anunciou a sua renúncia ao cargo a partir de dia 31 de julho de 2018

Getty Images

Pode não interessar muito a quem queira fazer desta saída um momento único e mais dramático da história do tribunal, mas, mesmo no último ano, dois dos mais importantes casos 5-4 com maioria liberal tiveram como swing votes o Chief Justice John Roberts Jr. (juiz-presidente, nomeado pelo Presidente Bush) – Carpenter v. United States (2018) – sobre telemóveis, dados de localização, buscas e provas em processo penal; ou o recém-chegado juiz Gorsuch que seguiu os passos mais liberais do seu antecessor Scalia, também em matéria penal, e decidiu, com os liberais, a favor de um imigrante, contra a administração, no caso Sessions v. Dimaya (2018), tendo considerado que uma lei usada para deportações era inconstitucionalmente vaga e permitia “penas” arbitrárias.

Já em 2012, no caso National Federation of Independent Business v. Sebelius, o Patient Protection and Affordable Care Act (a lei que suporta o “Obamacare”), a maioria liberal fez-se contra o juiz Kennedy e com o voto a favor do moderado John Roberts Jr. Este juiz, que chefia o tribunal desde 2005 e, pelo que tem afirmado sobre a regra do precedente (e de, por princípio, ser contra a reversão do sentido de decisões anteriores do tribunal) e pela defesa institucional do tribunal, deverá ser o novo swing vote mais recorrente (e já vem desempenhando esse papel até melhor do que o juiz Kennedy, na opinião de muitos).

Repetiram-se cartoons com juízes instrumentalizados por Trump e com cabelinhos com aquelas ondas que o caracterizam, mas não é novidade nenhuma que o Supreme Court tenha uma maioria de juízes nomeados por republicanos (no início do mandato Clinton, 8 dos 9 juízes tinham sido nomeados por republicanos!), sendo a constante mais a qualidade dos juízes e o facto de serem mais independentes e surpreendentes do que se esperava antes das nomeações.

A escolha do juiz Brett Kavanaugh

Quanto à mais recente escolha do Presidente Trump, podemos dizer que é a menos surpreendente e inesperada e a mais “mainstream” do seu mandato (a maior surpresa foi não ser surpresa!). O juiz Brett Kavanaugh (já apresentado aqui) é uma solução mais de compromisso e mais próxima do Chief Justice do que se pensa. Há mesmo muitos conservadores que o acusam de ter sido o primeiro “salvador” do Obamacare há uns anos: foi dele uma opinion que abriu caminho para a do SCOTUS.

O juiz Kavanaugh é muito respeitado pelos juízes do tribunal a que agora se poderá juntar: foi contratado pela juíza Elena Kagan para Harvard e até Scalia gostava de o citar e elogiar. Trabalhou muito de perto com o juiz Kennedy, que agora vai substituir. Dentro da lista de possíveis nomeados, não seria o preferido do senador Mitch McConnell (o “chefe” dos republicanos no Senado) que demonstrou que, em termos de confirmação, seriam mais fáceis nomes como Raymond Kethledge ou Thomas Hardiman – bons juristas, vale a pena ir procurar os percursos deles! Contudo, pelo seu percurso como juiz claramente parece ter potencial para melhores concurring ou dissenting opinions do que os outros finalistas nas casas de apostas (a que se juntavam ainda a juíza Amy Coney Barrett ou o juiz Amul Thapar). Pode-se ver uma breve apresentação dos juízes da “lista” aqui.

Aquilo que muitos agora têm exigido aos democratas — serem mais “combativos” nestas nomeações judiciais — foi o que nas últimas décadas se exigiu do lado dos republicanos em que a tradição era os democratas serem muito “piores” com os nomeados “opostos” do que os republicanos.

Prometem-se tempos de grande luta em Washington, mas o juiz Kavanaugh tem muitas armas do seu lado, para garantir que a maioria republicana (e talvez alguns democratas moderados) ajudem à sua confirmação. É muito conhecido e consensual entre os republicanos — a mulher foi a secretária pessoal do Presidente W. Bush – vai tendo críticas também dos mais conservadores (parece ser mais liberal do que o juiz Gorsuch) e pode trazer algumas surpresas em várias matérias. Já passou por um processo de nomeação muito sujo e os democratas adiaram uma confirmação dele por mais de três anos, é pouco provável que apareçam “podres” que o afastem agora. E os republicanos têm a maioria e há alguns democratas eleitos em Estados tradicionalmente republicanos que, em ano de midterms (eleições intercalares) terão dificuldade em não votar também nele. Pode-se encontrar uma boa análise do lugar onde este juiz se pode situar aqui.

O argumento sobre o juiz Merrick Garland

A primeira reação dos democratas a esta nomeação foi de “vingança” (“trataram mal o “nosso” agora vamos fazer isso com o “vosso”!) e de acusações de hipocrisia: depois de, em 2016, alegarem que, por se estar em ano eleitoral, os republicanos (que nem acreditavam verdadeiramente, como o mundo inteiro, acho, numa vitória de um dos seus) não terem votado no último nomeado do Presidente Obama, agora vão “apressar” uma votação neste novo nomeado?

Ao contrário do que se fez crer, na altura e agora, os senadores americanos funcionam muito com a força das maiorias que têm. Para termos noção, com uma maioria democrata, este mesmo Kavanaugh ficou três anos à espera de uma confirmação (e não os meses antes das eleições presidenciais em que todas as apostas apontavam para uma maioria democrata e ainda mais para uma Presidente Clinton, depois de ter morrido o juiz mais “herói dos conservadores” das últimas décadas). Sendo que, num twist engraçado, este juiz trabalhou com Merrick Garland e foi um dos vários conservadores que o vieram elogiar publicamente e elogiar a escolha em 2016. Trabalharam os dois juntos no tribunal para onde vão (e de onde vêm) mais vezes as maiores estrelas jurídicas que chegam ao Supreme Court.

Aquilo que muitos agora têm exigido aos democratas — serem mais “combativos” nestas nomeações judiciais — foi o que nas últimas décadas se exigiu do lado dos republicanos em que a tradição era os democratas serem muito “piores” com os nomeados “opostos” do que os republicanos.

Basta lembrar que, antes de A. Kennedy, foram dois os nomeados de Reagan afastados e chumbados no senado; o juiz Thomas ainda hoje diz que foi perseguido pelos mesmos que um ou dois anos depois desculpavam o Presidente Clinton por coisas bem mais feias; Harriet Miers, nomeada pelo Presidente W. Bush teve de se afastar. Houve muito mais republicanos a votar a favor dos juízes Ginsburg, Breyer, Sottomayor ou Kagan (os “liberais”) do que democratas a favor dos juízes Roberts, Alito ou Gorsuch (apesar de todos terem “sterling resumes“). Dois dos maiores liberais nas últimas décadas, o juiz John Paul Stevens e o juiz David Souter, foram nomeados por presidentes republicanos, em tempos de compromisso (os Presidentes Ford e HW Bush).

Neil Gorsuch foi nomeado por Trump para substituir Antonin Scalia

Getty Images

Depois de morrer o juiz Scalia, o Presidente Obama podia ter tentado nomear um conservador moderado para convencer o Senado, mas muitos dizem que se “borrifou” neles (podia ter tentado ter alguns a aconselhar e patrocinar a nomeação, como noutros tempos da história dos EUA e não o fez) e decidiu comprar uma guerra que se prometia suja. O argumento na altura era que já estavam em eleições presidenciais gerais (e estavam) que iriam determinar o nomeado (na realidade isso até era conhecido como uma “Biden rule“, de quando o Vice-Presidente Joe Biden presidia ao comité responsável por apreciar os candidatos e defendeu posição semelhante) e que deviam “deixar os americanos escolher” e agora dizem que o presidente foi eleito há um ano e meio e nestas eleições de 2018 está apenas um terço do senado em causa. Não é igual… e é uma ilustração evidente de tempos em que os dois lados se diabolizam mutuamente. Há quem diga que o juiz Kennedy forçou a saída agora porque com um Senado diferente poderíamos ficar anos sem um confirmado e a luta seria ainda mais feia. E provavelmente seria. A moderação infelizmente anda como o senador John McCain, muito doente.

Mas… roubaram uma nomeação ao Obama!!

Como discutia com uma amiga, a Constituição dos EUA prevê um processo para nomeação. Senados democratas chumbaram vários nomeados republicanos nas últimas décadas — nesses casos “roubaram” nomeações ao Presidente Reagan ou aos Presidentes Bush? Parece-me que é bastante claro que deveriam ter ouvido o juiz Garland, ainda que fosse para o chumbar (ou até adiar, na técnica comum dos democratas dos tempos Bush). Mas cabe a qualquer presidente fazer propostas que o Senado aprove e o Presidente Obama não soube nem quis “jogar” com isso também. E com a elevada probabilidade de Hillary Clinton ser eleita (e até de o Senado passar a azul, com maioria democrata) estava nas mãos dele seduzir os republicanos e não o fez. Agora, o Presidente Trump tem, potencialmente, maioria no Senado. Não há um “direito ao nomeado” nem roubos na política. É como, em Portugal, dizermos que Costa roubou o governo a Passos…

E falar de não terem ouvido Garland como caso único é desconhecer alguma história recente da política americana, é uma prática relativamente comum naquele Senado. Os democratas fizeram isso ao próprio Kavanaugh durante mais de três anos e no caso do actual Chief Justice, John Roberts, impediram mesmo uma nomeação para um Court of Appeal “roubando” uma nomeação em moldes muito semelhantes ao que aconteceu com Garland (é um caso muito referido porque empurrou Roberts para a prática privada onde não só fez muito dinheiro como não teve de se comprometer com decisões que poderiam ter dificultado a sua nomeação futura para o SCOTUS).

Curiosamente, enquanto trabalhou com o Presidente Bush, após alguns desses casos mais polémicos, o juiz Kavanaugh foi um dos responsáveis por uma proposta para garantir um “tempo máximo” após uma nomeação presidencial de juízes que não foi aceite pelos democratas e que teria evitado o “caso Garland” em 2016, garantindo uma votação em alguns meses. E hoje a nomeação poderia ser muito diferente!

Irresponsabilizar e dar imunidades a presidentes? Foi por isso que o Trump o escolheu!

Nos dias que se seguiram à nomeação começaram as “escavações” do que poderia comprometer o novo nomeado e leu-se repetidamente esta afirmação: “I believe that the President should be excused from some of the burdens of ordinary citizenship while serving in office. We should not burden a sitting President with civil suits, criminal investigations, or criminal prosecutions. An indictment and trial of a sitting President would cripple the federal government“.

Ouvimos gritos de que era uma afirmação inqualificável e inaceitável no actual estado de coisas.
No entanto, pareciam esquecer o Presidente sobre quem foi escrita essa frase! Foi sobre o Presidente Bill Clinton, a partir de pareceres preparados no âmbito do relatório Starr e das investigações Whitewater que culminaram no caso Monica Lewinsky. E o principal artigo de há mais de dez anos terminava assim, e poderá servir para enquadrar as acusações bem mais “graves” que hoje pairam sobre o presidente actual: “If the President does something dastardly, the impeachment process is available (…) no single prosecutor, judge, or jury should be able to accomplish what the Constitution assigns to the Congress“. (está disponível para leitura gratuita aqui).

Sobre juízes julgarem os presidentes que os nomeiam, a surpresa só se pode explicar por pouca memória ou ignorância sobre o próprio SCOTUS e as relações de enorme proximidade com o poder executivo.

Este “tirar as coisas do contexto” parece ser um bom exemplo das “fake news” de que todos se vão queixando… Estas frases faziam parte de um artigo de debate a partir do papel que o próprio juiz Kavanaugh teve a promover esse tipo de investigações e diligências. Não é uma coisa escrita sobre a “situação atual”, nem sequer contrária aos regimes excecionais que nós temos pacificamente em Portugal para os titulares de órgãos de soberania, por exemplo.

Ao ler muitos daqueles que, mesmo na Europa, nas ruas de Londres ou nas nossas redes sociais em português, dizem que o Presidente Trump tem de sair do cargo através das investigações lideradas por Robert Muller, ser preso e tudo o mais, só me lembro de alguns dos mais maluquinhos apoiantes dele, com bonés vermelhos a gritar “lock her up!”. Se o debate político ficar resumido a isso, as piores críticas e alertas sobre o Trump já se concretizaram.

Do que já é conhecido tem de se reconhecer que o juiz Kavanaugh é um jurista com um percurso incrível e só continuando o mesmo registo “clubístico” que do lado democrata criticaram quanto a Garland não se reconhece isso. E esse extremismo irracional sente-se de parte a parte, desde uma das primeiras declarações de grupos democratas que saíram logo a opor-se ao “judge XXX” que fizeram sair sem sequer preencher o nome do candidato até a uma petição de alguns alunos de Yale a dizer que, por causa desta escolha “people will die”, tendo-se afastado disso mesmo as direções de Yale ou Harvard que reconhecem àquele seu professor e especialista em separação de poderes inúmeras qualidades e talentos.

E Trump está a escolher o juiz que o vai julgar a ele?

Outra das linhas de argumentação, já secundária, tem sido a de tentar garantir o afastamento deste juiz de todos os casos que envolvam o Presidente Trump. No entanto, como vários autores têm tentado demonstrar, esse tema e essa lógica são relativamente perigosos e escorregadios nesta discussão e na visão possível sobre a maneira como funciona o Supreme Court e se relaciona com os Presidentes dos EUA.

Do lado republicano tentaram pedir o mesmo recentemente quanto à juíza Ginsburg depois de uma entrevista particularmente enérgica contra Trump, durante a campanha presidencial, defendendo que haveria ainda mais fundamento para ela se escusar em casos que o envolvessem. Nesses casos, se a questão se vier a colocar para Kavanaugh (e talvez até para Gorsuch também, por ter sido nomeado por ele) talvez todos ganhassem em fazer uma opinion contestando preventivamente as acusações de falta de imparcialidade (em moldes semelhantes aos de uma que Scalia escreveu há uns anos, conquistando até alguns dos mais liberais, num caso que envolvia o Vice-Presidente Cheney, depois de terem participado numa caçada juntos. Pode-se ler mais sobre isso aqui).

A posição que agora mais se discute de Kavanaugh tem mais de 20 anos, fazia parte de pareceres que preparou sobre um caso específico — a acusação a Bill Clinton que, aliás, avançou contra esse parecer tendo Kavanaugh tido um papel determinante num caso que envolvia expor ao país e ao mundo que o Presidente andava envolvido num escândalo sexual. Nos mesmos textos ele próprio traça a distinção entre casos mais e menos graves, não se pronunciou sobre Trump, nem disse alguma vez o que aconselharia se uma investigação concluísse que um presidente tinha conseguido ser eleito através de esquemas montados com uma potência estrangeira (isso é dos casos que será sempre visto como “mais grave” por qualquer autor razoável, como ele é). Estão a pegar em afirmações de um artigo académico sobre um tema de possível “imunidade presidencial” que é pacífica em muitos Estados de Direito.

Nos Federalist Papers, em especial no n.º 69, um dos mais famosos founding fathers, Alexander Hamilton, traça um contraste entre o papel do Presidente dos EUA e o do Rei da Grã-Bretanha, sublinhando que a Constituição americana prevê mandatos limitados no tempo e um importante remédio no caso de corrupção ou abusos de poder pelo presidente: o processo de impeachment. No texto original: “The President of the United States would be liable to be impeached, tried, and, upon conviction of treason, bribery, or other high crimes or misdemeanors, removed from office; and would afterwards be liable to prosecution and punishment in the ordinary course of law“. (qualquer coisa como “o Presidente dos Estados Unidos poderá ser acusado, julgado e, após condenação por traição, suborno ou outros crimes graves ou contravenções, ser afastado do cargo e, depois poderá ser responsabilizado e sujeito a processo e punição nos termos normais da lei”).

A Constituição, e os mais famosos textos em sua defesa, estes Federalist Papers apontam no mesmo sentido. Há textos de James Madison e discussões em Filadélfia sobre o estatuto presidencial privilegiado que suportam esta mesma interpretação que a tantos agora escandalizou. Por cá, é ler o artigo 11.º do Estatuto dos Deputados Portugueses (“1. Nenhum Deputado pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito. 2. Os Deputados não podem ser ouvidos como declarantes nem como arguidos sem autorização da Assembleia, sendo obrigatória a decisão de autorização, no segundo caso, quando houver fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos”).

Aqui encontramos um estudo de Direito comparado do nosso Parlamento sobre imunidades parlamentares. A posição que alguns atacam com tanta força é maioritária e pacífica nos Estados-membros da UE. Em Portugal estamos sempre dependentes de uma decisão da Assembleia da República para acusar… um deputado! Parece-me que esta primeira linha de ataque ao novo juiz é exagerada e uma política questionável (um péssimo incentivo à liberdade académica e serem nomeados juízes ou titulares de altos cargos públicos com essa proveniência) tomar essa posição e acho mesmo que nos EUA (e na imprensa que por cá traduz principalmente muita da mais liberal imprensa americana) só clubismo e alguma desonestidade intelectual vão levar essa lógica de argumentação longe.

E vai surgir de novo a questão da RBG, como boa ilustração de que o tipo de discurso que reclama escusas de juízes é muito perigoso. Em campanha eleitoral, um juiz do SCOTUS apareceu a dizer mal de um candidato (coisa que nunca tinha acontecido na política americana, pelo menos com essa violência e expressividade), um juiz que depois iria julgar casos em que esse mesmo candidato/presidente iria estar envolvido. No caso concreto do Travel Ban fazia parte do objeto do processo a personalidade do Presidente, afirmações por ele proferidas (se racistas, se não) e a juíza já se tinha pronunciado exactamente sobre isso. O artigo que citamos acima não pedia sequer a escusa, mas apenas uma fundamentação da não-escusa.

Sobre juízes julgarem os presidentes que os nomeiam, a surpresa só se pode explicar por pouca memória ou ignorância sobre o próprio SCOTUS e as relações de enorme proximidade com o poder executivo verificadas desde as suas origens, a começar no mais famoso caso (e base de toda a judicial review), Marbury v. Madison (1803), em que o Chief Justice John Marshall (Secretary of State e nomeado pelo Presidente John Adams) julgou uma nomeação de Adams, em que ele tinha participado, contra a atuação de James Madison e de Thomas Jefferson (o Secretary of State e o Presidente recém-eleito). Todos tinham sido founding fathers juntos, eram rivais políticos e continua a ser impressionante ler o que o Presidente Jefferson escreveu depois sobre o Chief Justice e o Supreme Court. O modelo constitucional americano assenta há quase 250 anos nessa lógica e em todos os mandatos os juízes recém-nomeados julgam os actos (e os presidentes) que os elegeram. Nixon perdeu no Supreme Court em que tinham assento quatro juízes nomeados por ele. O “Obamacare” foi aprovado por duas juízas nomeadas por Obama (Elena Kagan tinha inclusivamente participado no processo legislativo que esteve na base do mesmo!).

E queria mesmo terminar defendendo que o futuro do tribunal me parece menos negro ou dramático do que hoje nos querem fazer crer. Será entusiasmante, certamente, mas a qualidade e a inteligência publicamente demonstrada dos juízes que o compõem (e do que agora foi nomeado) garantem-nos décadas de bom debate e boa fundamentação jurídica, de boas leading opinions, concurring opinions e dissenting opinions e um espectáculo jurídico que dá muito gosto ver e ler.

Quem nos dera que em todos os espaços de debate e de pensamento houvesse o respeito pelos outros, as amizades para além das ideologias (é lembrar RBG e Scalia juntos na ópera ou em festas de família) e o esforço em pensar e fundamentar bem as decisões como as que se têm naquele edifício elevado por uma das maiores escadarias de Washington, bem atrás do gigante Capitólio, com tão mais profundidade. Houve e haverá sempre decisões criticáveis, mas continuo confiante de que muitos dos maiores avanços no Direito e nos direitos dos nossos tempos virão de lá. E o juiz Kavanaugh poderá ser um importante actor nesse espectáculo da Justiça.

Miguel da Câmara Machado é assistente convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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