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Hannelore Fischer Cruz tinha 76 anos, morreu na passada semana com Covid-19 no Hospital de Braga
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Hannelore Fischer Cruz tinha 76 anos, morreu na passada semana com Covid-19 no Hospital de Braga

Hannelore Fischer Cruz tinha 76 anos, morreu na passada semana com Covid-19 no Hospital de Braga

Uma entre 295 mortos em Portugal, Hannelore Cruz foi (como todos os outros) bem mais do que isso. Esta é a sua história

No pós-II Guerra Mundial, Hannelore Cruz era criança e foi acolhida em Portugal. Aos 76 anos, morreu em Braga com Covid. Foi mãe de quatro, professora de centenas e uma soprano admirável.

Há sete anos, quando uma exposição no Centro Cultural de Belém comemorou o acolhimento de milhares de crianças austríacas por famílias portuguesas no pós-II Guerra Mundial, Hannelore Cruz chegou a dizer umas palavras por telefone aos jornais — e foi descrita como uma de entre os 5.500 rapazes e raparigas que aqui chegaram entre 1947 e 1952 vindos daquele país (talvez a única com sotaque minhoto).

Agora, que não resistiu aos sintomas da Covid-19 e morreu, na manhã do passado 25 de março, depois de quatro dias de internamento no Hospital de Braga, também apareceu nas notícias — primeiro a engrossar a lista de óbitos provocados pelo novo coronavírus em Portugal; depois por causa do processo por negligência que um dos netos moveu contra a residência geriátrica onde morava, por alegadamente ter ignorado os sintomas da doença durante dias e só a ter encaminhado para as urgências demasiado tarde.

Hannelore, à porta do lar onde morava

Ao todo, até este domingo havia 295 mortos confirmados pelo novo coronavírus. Hannelore faz parte da lista mas, como todos os que com ela figuram nas tabelas divulgadas pela Direção-Geral de Saúde, em forma de número e em colunas repartidas por região, género ou grupo etário, foi bem mais do que isso. E se é verdade que através dos números podemos retirar muita informação, há coisas que eles simplesmente são incapazes de transmitir.

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Ficou por contar que Hannelore Fischer Cruz, nascida em Viena a 29 de outubro de 1943, era, por exemplo, uma soprano admirável, uma das mais emblemáticas e extravagantes figuras da sociedade bracarense, mãe de quatro filhos e avó de cinco netos. Ou que, professora de Educação Musical, de Canto e de Técnica Vocal, fã de Bach e de Mozart, deu aulas a centenas de alunos de várias escolas da cidade e correu o País em concertos e recitais. Uma vez que a história da sua morte já foi contada, esta é a história da sua vida.

Hannelore Friederike Andromache Fischer tinha apenas 5 anos quando, em 1948, numa Viena destruída pela guerra, foi depositada pela mãe no carro de palha onde haveria de seguir viagem rumo à estação de comboios, com uma mala com algumas peças de roupa e um cartão com o seu nome e um número pendurado ao pescoço.

Na altura, através de uma missão especial da Cáritas, foram milhares as crianças, austríacas e não só, que encontraram em Portugal um alívio temporário para a fome e para o resto.

Hannelore, pouco depois da chegada a Portugal

No caso de Hannelore, que só bastante mais tarde, e por via do casamento, veio a tornar-se Cruz, o que era para ser só um interregno acabou por transformar-se na vida inteira. Apesar de se ter mantido sempre em contacto por correio postal com a mãe e com os tios, que também eram artistas — nunca chegou a conhecer o pai, morto em combate, em data e local incógnitos —, nunca voltou à Áustria para viver, só para os visitar, e apenas uma vez, quando tinha 23 anos e já não sabia falar alemão.

A viagem para Portugal durava cerca de uma semana, era feita de comboio até Génova, em Itália, e daí as crianças seguiam por mar até Lisboa, recordou em 2013 a “Ação Crianças Cáritas Portugal”. Quando chegou, foi acolhida por um casal de Ponte de Lima, que tinha já recebido uma outra criança, alemã, quatro anos mais velha. “Ela chamava-se Carlota Cardoso Rangel de Amorim e ele João de Deus Abreu e Maia, tinham umas propriedades no Paço do Beiral, em Ponte de Lima. Não chegámos a ser adotadas, mas tomaram conta de nós e criaram-nos como filhas. Viemos para nos restabelecer e adaptámo-nos muito bem. Sempre nos considerámos irmãs. A mãe da Hannelore chegou a vir a Portugal uma vez visitá-la”, explica ao Observador a “mana” Rose Marie, hoje com 80 anos.

Sabia que após a Segunda Guerra Mundial mais de 5.500 crianças austríacas foram acolhidas por famílias portuguesas?…

Posted by Projeto Memória on Monday, January 28, 2013

Sobre a infância, numa entrevista que deu em 2013 ao Público, Hannelore falou pouco. Evocou memórias sobre as vacas dos caseiros, os passeios que dava de bicicleta e as brincadeiras que tinha ao ar livre; recordou as caminhadas de 3 quilómetros que todos os dias tinha de fazer com o “pai adotivo”, “que trabalhava na câmara”, para chegar à escola. O que não contou, nem ao jornal, nessa ocasião, nem depois a José Miguel, o neto mais velho, foi que das histórias daquele tempo recordava a referência ao carro de palha e pouco mais — nem se lembrava de como terá sido chegar sozinha e tão pequena à casa de uma nova família, num novo país, onde não reconhecia nada nem conseguia comunicar.

A viagem para Portugal durava cerca de uma semana, era feita de comboio até Génova, em Itália, e daí as crianças seguiam por mar até Lisboa. Quando chegou, foi acolhida por um casal de Ponte de Lima, que tinha já recebido uma outra criança, alemã, quatro anos mais velha.

Embora no papel a adoção nunca tivesse sido consumada, aos portugueses que a criaram como filha Hannelore chamou sempre “pais adotivos”. “Quando morreram deixaram-lhe parte da herança e tudo”, revela José Miguel, o mais velho de cinco netos, que, no fundo, acabou também por ser uma espécie de filho, por ter nascido ainda a avó era muito nova.

Uma vida de música (e improviso)

Foi ainda em Ponte de Lima, nos tempos do liceu, que conheceu o marido — ela morava de um lado do rio, ele do outro, mas uns amigos dela, primos dele, encarregaram-se de os apresentar.  Ele chamava-se José Rodrigues Cruz, era dentista e uns oito ou nove anos mais velho. Quando casaram, mudaram-se para Braga, para a casa de três andares na Rua da Fundação Gulbenkian, que ainda hoje pertence à família.

“O meu avô era médico, por tradição daquele tempo a mulher não fazia nada, mas a minha avó sempre teve um espírito muito futurista e depois de casar continuou a estudar”, conta José Miguel. No Conservatório de Música fez o curso Geral de Piano e Superior de Canto. Em casa, foi mãe: Sofia nasceu em 1969, Catarina, Raquel e José Alexandre seguiram-se-lhe, em intervalos irregulares de dois e três anos.

Pelo meio, começou a dar aulas — ao longo da carreira ensinou alunos dos 5.º e 6.º anos nas Escolas Básicas André Soares e Francisco Sanches e no Colégio Dom Diogo de Sousa; e estudantes mais velhos na Universidade do Minho e nos Conservatórios de Braga, Guimarães e Barcelos.

Com o marido, os filhos Catarina e José Alexandre e o neto José Miguel; e a dar aulas

Na cidade, era conhecida como “aquela senhora que tinha sempre cores de cabelo estranhas”, recorda o neto mais velho. “Estava sempre na moda, até na reforma, todas as sextas-feiras de manhã ia ao cabeleireiro, andava sempre impecável, com brincos, pulseiras e anéis. Era extremamente extravagante e avançada na maneira de vestir, de pensar e de atuar. Quando alguma coisa não corria conforme o plano A, tinha sempre um plano B delineado”, conta José Miguel.

Ainda assim, apesar dos planos, ao longo da vida, Hannelore teve de improvisar várias vezes. Primeiro, quando a filha mais velha engravidou com apenas 15 anos — “Foi um escândalo de todo o tamanho, a filha do médico e da professora doutora engravidou. Nos primeiros tempos a minha avó lidou mal com a situação, mas depois foi aceitando, e nunca senti qualquer tipo de rejeição”, conta José Miguel, hoje com 35 anos. “Entretanto a minha mãe foi emancipada e obrigada a casar, mas passados uns tempos, já nos anos 90, tanto ela como o meu pai entraram no desaire das drogas e eu fiquei a viver com os meus avós. Ele tinha uma sabedoria imensa para tudo e jeito para as bricolages, ela, que como professora era muito rígida e implacável, se bem que sempre pronta a ajudar os alunos, comigo foi sempre compreensiva e atenta. Foi uma mãe, mais do que uma avó.”

Mais tarde, em 1995, quando o marido morreu, com um tumor cerebral, ainda antes de fazer 60 anos, tinha ela 52, Hannelore reinventou-se outra vez. Os filhos mais novos e o neto ainda estavam a estudar, passou a ter de ser ela o único sustento da família, recorda José Miguel — “Tivemos dias e anos turbulentos”.

Hannelore deu aulas de técnica vocal a Frei Hermano da Câmara, com quem atuou várias vezes. Ao longo da carreira cantou em recitais, casamentos e concertos

Para além das aulas, dos recitais e das participações ocasionais em júris de seleção de canções e de tunas académicas, Hannelore passou a fazer também casamentos. “Dependendo dos orçamentos e do requinte das cerimónias, podia cantar com piano, flauta transversal, violino ou harpa. Lembro-me dela a cantar o ‘Ave Maria’ de Schubert, por exemplo, cantava muito bem”, elogia o neto, que viveu com ela até 2002, altura em que Hannelore refez novamente a vida e se mudou para casa de um amigo de longa data, que se tornou o seu novo companheiro.

Reformada antes de tempo — “Estava cansada de aturar esta nova malta que não respeita os professores” —, decidiu antecipar também uma outra etapa e, quando o novo companheiro também morreu, mudou-se para o Asilo de São José, também em Braga.

No quarto, que dividia com uma antiga colega professora, tinha uma pequena aparelhagem e a sua coleção de CD, uns quantos livros e algumas imagens de santos; fora dele, sempre que se organizavam festas ou convívios, fazia-se notar. “Sempre que havia festarola no lar, lá estava ela no centro das atenções. Por um lado, porque já tinha esse atrevimento natural e essa jovialidade, por outro, por ser realmente diferente da maior parte dos outros, pelo conhecimento, sabedoria e cultura que sempre teve”, elogia o neto.

No quarto, que dividia com uma antiga colega professora, tinha uma pequena aparelhagem e a sua coleção de CD, uns quantos livros e algumas imagens de santos; fora dele, sempre que se organizavam festas ou convívios, fazia-se notar. “Sempre que havia festarola no lar, lá estava ela no centro das atenções. Por um lado, porque já tinha esse atrevimento natural e essa jovialidade, por outro, por ser realmente diferente da maior parte dos outros, pelo conhecimento, sabedoria e cultura que sempre teve”, elogia o neto.

Diz que tentou várias vezes convencê-la a voltar a casa, incluindo com uma remodelação quase total do piso térreo, para a poder acolher, mas que a avó nunca quis. “Dizia-me sempre que não: ‘Eu hoje estou bem mas de hoje para amanhã imagina que tenho de usar fraldas, que preciso de ajuda para tomar banho ou para comer, lá tenho essa ajuda’. No último Natal voltei a insistir mas a resposta foi igual, não queria ser um fardo para a minha mãe nem para mim. ‘Imagina que daqui a dois ou três anos quero ir para um lar e não tenho vaga’.”

No dia do seu último aniversário e com o neto José Miguel

Com José Miguel, que a visitava todos os dias antes de seguir para o trabalho, continuava a sair com frequência: para beber café, ir ao centro comercial comprar roupa nova, arranjar o cabelo, jogar no Euromilhões ou fazer umas raspadinhas. E para ir ao médico: “Era hipocondríaca, se lhe aparecesse uma borbulha na cara corria logo cinco ou seis médicos e três vezes por ano fazia exames ao coração. Adorava ir a consultas, era o melhor desporto para ela, mas não tinha problema de saúde nenhum”, assegura o neto. “Curiosamente, no ano passado começou a dizer que ia morrer este ano, quis fazer o testamento e tudo.”

Com o novo coronavírus, que acabou por lhe custar a vida, Hannelore estava assustada q.b., diz José Miguel: por um lado fez questão de comprar máscaras e gel desinfetante na farmácia para os netos; por outro chegou a brincar às sessões fotográficas, ora com máscara, depois sem.

“Era hipocondríaca, se lhe aparecesse uma borbulha na cara corria logo cinco ou seis médicos e três vezes por ano fazia exames ao coração. Adorava ir a consultas, era o melhor desporto para ela, mas não tinha problema de saúde nenhum”, assegura o neto. “Curiosamente, no ano passado começou a dizer que ia morrer este ano, quis fazer o testamento e tudo.”

Em quarentena obrigatória no lar onde morava desde 6 de março, terá desenvolvido sintomas como febre alta e tosse a partir de quinta-feira, dia 19, mas só no sábado seguinte deu entrada no serviço de infecciologia do Hospital de Braga, onde, de acordo com o neto, foi imediatamente ligada a um ventilador. Morreu quatro dias depois, às 7h00 da quarta-feira, dia 25 de março. Desde então, pelo menos outros três utentes do Asilo de São José já perderam também a vida pelo mesmo motivo.

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