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Na semana que passou, foram batidos vários recordes de temperatura em Portugal e Espanha — num contexto em que a Europa está a aquecer ao dobro da velocidade do resto do mundo

Bloomberg via Getty Images

Na semana que passou, foram batidos vários recordes de temperatura em Portugal e Espanha — num contexto em que a Europa está a aquecer ao dobro da velocidade do resto do mundo

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Temperaturas recorde, um continente a aquecer e a ameaça de seca. O que se passa com o clima da Europa?

Em Portugal, nunca esteve tanto calor em abril. Em Espanha, seca já é de longa duração — e a Europa aquece ao dobro da velocidade do resto do mundo. Como as alterações climáticas afetam o continente?

O “campeonato dos recordes” foi desvalorizado pelo presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), mas a verdade é que os valores máximos de temperatura, batidos sucessivamente e com cada vez mais frequência, são um sinal eloquente da irreversibilidade e intensidade do aquecimento do planeta. Em meados da semana passada, as temperaturas em Portugal continental já estavam a bater vários recordes: apesar de ainda ser abril, o país viveu na última semana dias comparáveis ao pico do verão. Em pelo menos seis estações meteorológicas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), já tinham sido ultrapassados os máximos históricos de temperatura registados no mês de abril — e a questão que se colocava era se o recorde absoluto de temperaturas em abril em Portugal (Pinhão, Alijó, em 20 de abril de 1945) seria destronado. Foi: na última quinta-feira, a estação meteorológica de Mora, no Alentejo, registou 36,9ºC, um novo máximo absoluto para o mês de abril em Portugal.

Através de um comunicado, o IPMA explicava, tecnicamente, o que estava a acontecer por aqueles dias: “Uma massa de ar quente com origem no norte de África e transportada na circulação de um anticiclone localizado junto à Península Ibérica está a atingir Portugal Continental, originando valores de temperatura muito acima da média para a época do ano, em especial da máxima e na região Sul, onde a anomalia prevista para o dia 27 será entre 10 a 15°C acima da normal climatológica.” Mas havia mais: às temperaturas elevadas importadas do norte de África, somavam-se os “valores baixos da humidade relativa do ar”, resultando num “aumento significativo” do risco de incêndios rurais.

Termómetros ultrapassaram os 36º C esta quinta-feira. Há 78 anos que temperaturas não eram tão altas em abril

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Em declarações à Rádio Observador, o presidente do IPMA, Miguel Miranda, assumiu que os especialistas do instituto estavam “razoavelmente preocupados”, sobretudo por estes dias de calor excecional e baixa humidade abrirem as portas a um período de grandes riscos, a começar pelo perigo de incêndio rural — além do risco de Portugal mergulhar num período de grande seca. “Se por acaso estiverem atentos ao que se passa aqui em Espanha, ao pé de nós, sabem que as condições de seca começam a agravar-se de forma significativa”, exemplificou o responsável. “Em Portugal, a situação não é ainda tão grave, mas para lá caminha.”

As temperaturas têm batido recordes consecutivos no continente europeu ao longo dos últimos anos

Vincent Jannink/EPA

Naturalmente, estabelecer uma relação de causa e efeito entre as alterações climáticas e este período concreto de temperaturas excecionalmente elevadas depende de estudos que possam vir a ser realizados no futuro, no campo da complexa ciência da atribuição climática. Ainda assim, dados como os revelados recentemente num estudo feito por cientistas da NASA mostram como fenómenos extremos como secas ou grandes chuvas estão a tornar-se mais frequentes em correlação com alguns indicadores-chave das mudanças climáticas. Daí a sentença de Miguel Miranda aos microfones da Rádio Observador: “A irregularidade veio para ficar. Os recordes sucessivos vieram para ficar. E agora nós temos de nos adaptar a eles.”

Mas, afinal, o que se está a passar no clima da Europa? Como se situam, no plano mais amplo das mudanças climáticas, os fenómenos de temperaturas elevadas que se verificaram por estes dias em Portugal e na Península Ibérica? O que nos diz a ciência sobre a intensidade e a frequência destes acontecimentos? E que cenários de seca podem estar no horizonte mais próximo? O Observador procura algumas respostas a estas perguntas.

O que se está a passar no clima europeu?

Embora os dias de calor extremo da última semana surjam no contexto específico da massa de ar quente transportada do norte de África, o que é certo é que se verificam num período em que na Europa os termómetros continuam, consecutivamente, a bater recordes — e em que o continente está a aquecer ao dobro da velocidade do resto do mundo. Os dados mais recentes sobre a realidade climática da Europa estão na última edição do European State of The Climate (ESOTC), estudo produzido anualmente pelos cientistas do programa Copernicus, da União Europeia. A edição que diz respeito ao ano de 2022 foi publicada no mês de abril e dá conta de como, no ano passado, a Europa viveu o verão mais quente desde que há registos.

Globalmente, 2022 foi o segundo mais quente desde que há registos no continente europeu, apenas atrás de 2020 — e “a maioria da Europa sofreu ondas de calor intensas e prolongadas”. Como era de esperar, foi nas regiões do sul da Europa que se registou o maior número de dias com níveis “muito fortes” de stress de temperatura. Os dados que surgem no ESOTC de 2022 mostram “as temperaturas a aumentar e os fenómenos extremos a intensificarem-se” na Europa, diz o Copernicus. Simultaneamente, o ano de 2022 foi também o quinto mais quente a nível mundial desde que há registos, atrás de 2016, 2020, 2019 e 2017.

“O aumento da temperatura é um importante indicador climático e põe em evidência o clima em mudança na Europa”, aponta o documento do laboratório europeu. “Os dados mostram que a média europeia para o período dos últimos cinco anos foi de cerca de 2,2ºC acima da era pré-industrial (1850-1900). 2022 foi o segundo ano mais quente desde que há registos, 0,9ºC acima da média recente (usando como referência o período de 1991-2020). O último verão foi o mais quente desde que há registos na Europa, 1,4ºC acima da média recente.” Isto significa, na prática, que a Europa está a aquecer ao dobro da velocidade da média do planeta: atualmente, o planeta já está 1,1ºC acima da temperatura média do período pré-industrial, usado como referência para as temperaturas antes de o planeta começar a aquecer em consequência da atividade humana; mas, na Europa, a temperatura já estava por estes anos 2,2ºC acima da era pré-industrial, ou seja, o dobro.

Nas palavras do diretor do Serviço de Alterações Climáticas do projeto Copernicus, Carlo Buontempo, “o relatório coloca em evidência as mudanças alarmantes no nosso clima, incluindo o verão mais quente alguma vez registado na Europa”. O climatologista sublinha também que o verão de 2022 ficou “marcado por ondas de calor marinhas sem precedentes no Mar Mediterrâneo e temperaturas recorde na Gronelândia”. As ondas de calor terão mesmo causado cerca de 20 mil mortes a mais do que o que seria expectável na Europa durante o ano.

"O relatório coloca em evidência as mudanças alarmantes no nosso clima, incluindo o verão mais quente alguma vez registado na Europa."
Carlo Buontempo, diretor do Serviço de Alterações Climáticas do projeto Copernicus

“Compreender as dinâmicas climáticas na Europa é crucial para os nossos esforços para nos adaptarmos e mitigarmos os impactos negativos que as alterações climáticas têm no continente”, acrescenta Buontempo.

Além das conclusões sobre uma Europa que está consistentemente a aquecer ao dobro da velocidade do resto do mundo, o ESOTC de 2022, que enquadra a realidade climática contemporânea do continente europeu no plano mais abrangente das alterações climáticas, traz também notícias preocupantes sobre o que se passa na região do Ártico, que está a passar por “mudanças drásticas no seu clima”.

“As temperaturas no Ártico subiram muito mais rapidamente do que no resto do mundo. 2022 foi o sexto ano mais quente desde que há registos na totalidade da região do Ártico, e o quarto ano mais quente nas regiões terrestres do Ártico”, explica o relatório, que aponta também a Gronelândia como exemplo de uma região onde se verificaram “condições climáticas extremas, incluindo calor extraordinário e chuva em setembro, uma altura do ano em que o mais típico seria a queda de neve”. Nesse mês, as temperaturas médias na Gronelândia estiveram 8ºC acima da média e o território foi afetado por três ondas de calor, o que levou a camada de gelo da Gronelândia a derreter a um ritmo recorde.

Ainda que o recente período de calor verificado em Portugal tenha como causa direta a chegada de uma massa de ar oriunda do norte de África, o contexto global é fundamental para compreender que estas temperaturas acontecem de modo cada vez mais frequente e intenso devido às alterações climáticas. À Rádio Observador, quando questionado sobre as causas de um abril tão quente, o presidente do IPMA clarificou que o que está na origem destas temperaturas é “uma certa mudança progressiva das condições meteorológicas, em particular nas latitudes médias”.

Vêm aí temperaturas ainda mais altas?

Se é verdade que 2022 foi um ano particularmente quente na Europa, as previsões para 2023 e 2024 são de temperaturas ainda mais elevadas. É que, nos últimos três anos, as temperaturas globais foram influenciadas pelo fenómeno La Niña — padrão meteorológico no Oceano Pacífico que tende a baixar ligeiramente as temperaturas do planeta —, que deverá em breve dar novamente lugar ao fenómeno oposto, o El Niño, que tende a favorecer anos mais quentes e secos.

Como explica o IPMA, o El Niño “é um fenómeno oceano-atmosférico que afeta o clima e regional e global, e que afeta a circulação geral da atmosfera”. Trata-se “do aquecimento anómalo das águas superficiais do setor centro-leste do Oceano Pacífico, predominantemente na sua faixa equatorial” — e “é responsável por anos considerados secos ou muito secos”. Ainda segundo o IPMA, “o El Niño é caracterizado por variações na atmosfera sobre a região de águas aquecidas”, sendo um fenómeno que “ocorre em intervalos médios de 4 anos e persiste de 6 a 15 meses”.

Em contrapartida, o fenómeno La Niña “é o oposto do El Niño” e “corresponde ao arrefecimento anómalo das águas superficiais do Oceano Pacífico Central e Orienal, formando o que vulgarmente se designa por ‘piscina de águas frias’ nesse oceano”. Trata-se, explica o IPMA, de um “fenómeno natural que produz fortes mudanças na dinâmica geral da atmosfera” — e que é responsável por baixar as temperaturas globais, já que o fenómeno é caracterizado por águas mais frias na região equatorial do Oceano Pacífico.

O fenómeno El Niño está associado a anos mais quentes e secos

AFP/Getty Images

Como se lê no relatório realizado pelo Copernicus, “o principal motor da variabilidade anual [das temperaturas da superfície oceânica, que influenciam as temperaturas da atmosfera do planeta] é a Oscilação do Sul El Niño — períodos mais quentes (El Niño) ou mais frios (La Niña) que as temperaturas médias da superfície do mar”. Enquanto o El Niño “aumenta temporariamente a temperatura média da superfície do mar a nível global”, a La Niña “fá-la descer temporariamente”.

Ora, 2022 foi o “terceiro ano consecutivo de condições La Niña”. A previsão dos climatologistas é que, após três anos de La Niña, o El Niño regresse, fazendo aumentar ainda mais a temperatura do planeta. “O El Niño está habitualmente associado a temperaturas recorde a nível global”, assumiu Carlo Buontempo, citado pela agência Reuters. “Se isto vai acontecer em 2023 ou 2024 ainda não sabemos, mas é, penso eu, mais provável do que improvável.”

Se acontecer, é provável que venham a ser batidos novos recordes de temperatura a nível mundial. Basta lembrar que o ano mais quente desde que há registos, a nível global, continua a ser 2016 — ano em que se verificou com grande intensidade o fenómeno El Niño — e que os últimos oito anos foram os oito anos mais quentes desde que há registos. A subida das temperaturas motivada pelas alterações climáticas, que se registou mesmo em anos de La Niña, permite antecipar que o impacto do El Niño nos próximos anos poderá ser ainda mais intenso do que em 2016.

“Se o El Niño de facto se desenvolver, há uma grande probabilidade de 2023 ser ainda mais quente do que 2016, considerando que o mundo continuou a aquecer à medida que os humanos continuam a queimar combustíveis fósseis”, disse à Reuters o climatologista Friederike Otto, do Imperial College de Londres.

Esta quarta-feira, por seu turno, as Nações Unidas também já lançaram o alerta, estimando que há 60% de probabilidade de o El Niño se desenvolver até ao final de julho e 80% até ao final de setembro — pelo que “o mundo deve preparar-se” para um período em que um novo El Niño “provavelmente levará a um novo pico no aquecimento global e aumentará as hipóteses de se baterem recordes de temperatura”.

ONU alerta: fenómeno El Niño vai regressar, planeta deve preparar-se para novos recordes de temperaturas

Espera-se uma seca em Portugal?

Outra das principais conclusões dos climatologistas europeus em relação ao ano de 2022 foi a grave seca que afetou o continente. Segundo o relatório, “durante o inverno de 2021-2022, uma grande parte da Europa experienciou menos dias de neve do que a média, com muitos locais a terem menos cerca de 30 dias”. Por outro lado, “na primavera, a precipitação estava abaixo da média em grande parte do continente”. Somando a falta de neve e as temperaturas elevadas do verão, verificou-se “uma perda recorde de gelo nos glaciares dos Alpes, equivalente a mais de 5 quilómetros cúbicos de gelo”.

A falta de precipitação, por seu turno, somada às intensas ondas de calor, resultou numa “seca alargada e prolongada que afetou vários setores, como a agricultura, o transporte fluvial e a energia”.

De facto, os dados do IPMA mostram como, no início de 2022, Portugal se encontrava fortemente afetado pela seca. Em fevereiro do ano passado, 66,2% do país encontrava-se em seca extrema e 29,3% em seca severa. Uma reportagem feita pelo Observador junto de vários produtores agrícolas do interior do país dava conta de como a seca estava a afetar duramente a produção de diversos bens alimentares e a aumentar os seus preços.

Em fevereiro de 2022, Portugal atravessava uma profunda seca — e o IPMA avisa que este ano pode registar-se uma nova seca de grandes dimensões

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Este ano, os dados do IPMA ainda não apontavam para uma situação tão dramática, mas já indiciavam um país em seca: em março, 10,2% do país encontrava-se em seca severa, 14,2% em seca moderada e 23,7% em seca fraca, o que significa, apesar de tudo, que quase metade do território nacional se encontrava em alguma categoria de seca.

À Rádio Observador, o presidente do instituto, Miguel Miranda, sublinhou que Portugal tem tido “uma sequência significativa de períodos de calor acima da média e de pouca precipitação desde, praticamente, o princípio do ano” — o que agrava o risco de seca no país. “Além daquele campeonato contínuo dos recordes, que na verdade não é assim tão importante, o que é importante é utilizar-se esta situação para chamar a atenção das pessoas”, avisou o responsável. “É preciso pensar que podemos estar no início de um período de seca importante e de necessidade de ter em atenção os riscos relacionados com os incêndios rurais.”

Carne de vitela, maçãs e queijo da Serra. Como a seca ameaça os agricultores portugueses

“A previsão para o verão na Europa, em particular na bacia do Mediterrâneo, é de um verão quente e seco. Esperamos que não seja assim na totalidade do território do continente e das ilhas, mas claro que estamos com alguma apreensão em relação aos meses que se seguem”, acrescentou ainda Miguel Miranda.

Basta olhar para o que se está a passar em Espanha para compreender a gravidade da seca que pode vir a afetar também Portugal ao longo do ano. Como escrevia recentemente o jornal espanhol El Mundo, há zonas do país vizinho que já levam 100 dias sem chuva — ou melhor, sem precipitação relevante (só com uma precipitação acima dos 2,5 milímetros se considera um dia como tendo tido chuva relevante). Àquele jornal, um porta-voz da Agência Estatal de Meteorologia (AEMET, o equivalente espanhol ao IPMA) explicou que o país atravessa já uma seca “de longa duração” e que entre 1 de janeiro de 10 de abril só choveu em Espanha metade do que seria normal para este período. No que toca ao ano hidrológico (que começa em 1 de outubro), já se verifica um défice de 20% na precipitação esperada.

Em declarações ao jornal El Mundo, a meteorologista espanhola Mar Gómez sublinhou que o principal fator a impedir a chuva em Espanha tem sido a grande “estabilidade” meteorológica, ou seja, “um tempo muito marcado por anticiclones, isto é, áreas de alta pressão que inibem a formação de nuvens”.

“O anticiclone faz de escudo e impede que cheguem as tempestades e, com elas, a chuva. Além desses anticiclones na superfície, a atmosfera tem, nas camadas mais altas, as dorsais, que são estruturas nas quais o ar é muito estável e que também estão associadas a um tempo quente e sem chuvas”, explicou ainda Mar Gómez. E isto é tudo consequência das alterações climáticas? “Seria necessário fazer um estudo de atribuição, que ainda não foi feito. No entanto, embora as secas sejam um fenómeno cíclico que se dá a cada certo tempo, estão a agudizar-se devido às mudanças climáticas.”

"Se por acaso estiverem atentos ao que se passa aqui em Espanha, ao pé de nós, sabem que as condições de seca começam a agravar-se de forma significativa. Em Portugal, a situação não é ainda tão grave, mas para lá caminha."
Miguel Miranda, presidente do IPMA

Também ao El Mundo, o climatologista espanhol Francisco J. Doblas Reyes, que é um dos especialistas envolvidos na produção do último relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas da ONU, considerou que a atual seca gravíssima que se verifica na Península Ibérica (ainda que com maior intensidade em Espanha) é “uma manifestação de como vai ser no futuro” a realidade da seca: “Não tanto secas longas, que é algo da essência da região mediterrânica desde há muito tempo, mas no sentido em que, pelas alterações climáticas, estas secas serão mais frequentes e, sobretudo, mais intensas.”

Isto porque a própria forma de chover está a mudar. “Haverá chuvas concentradas num período muito curto, separadas por períodos de longa duração sem chuva”, explicou Doblas Reyes, frisando que esta realidade impacta a evapotranspiração, “isto é, a evaporação da água que há na superfície devido ao aumento da temperatura”.

“Quando faz mais calor, evapora-se mais água, do solo e das folhas das plantas. E essa água deixa de estar disponível”, aponta o climatologista, assinalando que, por esta razão, mais importante do que as temperaturas recorde que possam a vir registar-se, é fundamental analisar “o número de dias em que a chuva está acima do normal, porque é isso que diferencia um fenómeno isolado de um fenómeno persistente, com muitos dias com o solo sob stress”.

É mesmo verdade que as alterações climáticas tornam as secas mais intensas e frequentes?

Apesar de a generalidade dos cientistas sentenciarem habitualmente que os fenómenos meteorológicos extremos, como as secas ou as inundações, se estão a tornar mais frequentes e intensos por conta das alterações climáticas, a verdade é que tem sido relativamente difícil atestar sem margem para dúvidas a correlação entre o aquecimento global e um aumento da frequência de fenómenos extremos no planeta atual.

Contudo, um estudo conduzido por cientistas da NASA e publicado no mês de março na revista Nature mostra como a maior frequência de fenómenos extremos está mais relacionada com o aumento da temperatura média do planeta do que com oscilações meteorológicas cíclicas, como o fenómeno El Niño. O estudo foca-se em secas e períodos de chuva intensa — os dois extremos do ciclo da água, que os cientistas consideram “as mais notáveis consequências das alterações climáticas” — e centra-se na análise de 1.056 acontecimentos extremos ocorridos entre 2002 e 2021.

A conclusão, lê-se no estudo, é que “a intensidade total dos acontecimentos extremos esteve fortemente correlacionada com a temperatura média global, mais do que com a Oscilação do Sul El Niño ou outros indicadores climáticos, o que indica que um aquecimento continuado do planeta vai causar secas e chuvas fortes mais frequentes, mais graves, mais longas e mais alargadas”.

A título de exemplo, os investigadores Matthew Rodell e Bailing Li concluíram que entre 2015 e 2021 houve uma média de quatro acontecimentos extremos por ano, enquanto nos 13 anos anteriores a média foi de três acontecimentos por ano. Por um lado, uma temperatura mais elevada intensifica os fenómenos de seca ao acelerar a evaporação da água; em sentido contrário, durante os períodos de chuva forte, a temperatura elevada aumenta a humidade e favorece uma precipitação mais intensa.

“A ideia de alterações climáticas pode ser abstrata”, reconhecia Matthew Rodell, em declarações citadas no site da NASA. “Um par de graus de aumento de temperatura não parece muito, mas os impactos no ciclo da água são tangíveis.”

As secas estão a tornar-se mais intensas e frequentes em correlação com as alterações climáticas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“O aquecimento global vai causar secas e períodos húmidos mais intensos, o que afeta as pessoas, a economia e a agricultura em todo o mundo. Monitorizar os extremos hidrológicos é importante para nos prepararmos para acontecimentos futuros, para mitigar os seus impactos e para nos adaptarmos.”

Para realizarem o estudo, os cientistas usaram informações recolhidas através de satélite para detetar anomalias no armazenamento de água no planeta terra, incluindo nos solos, aquíferos, lagos, rios, camadas de neve e gelo, e procuraram identificar a correlação entre as alterações nos dados sobre o armazenamento da água e a evolução de indicadores climáticos. “É como ver o nível de água numa banheira”, exemplificou Rodell, citado no site da NASA. “É possível ver quanto sobe e desce, mesmo sem saber a quantidade total de água na banheira.”

A conclusão do estudo é a de que a intensidade dos fenómenos extremos aumentou entre 2002 e 2021 — a um ritmo que refletiu justamente o aumento da temperatura média do planeta. À medida que a temperatura média a nível global continua a aumentar gradualmente, a expectativa dos cientistas é que os fenómenos climáticos extremos, como as secas e as inundações, aumentem de frequência na mesma medida.

Há lugares do mundo imunes às ondas de calor?

As temperaturas recorde registadas nos últimos dias em Portugal e o cenário de seca que se vive em Espanha são um sinal claro de uma realidade inevitável: a zona sul da Europa, banhada pelo Mediterrâneo, é uma das regiões do mundo em que o aquecimento do planeta mais se faz sentir. À medida que as temperaturas nas latitudes mais baixas, em torno do Equador, vão subindo, transformando algumas regiões da África subsaariana em zonas demasiado quentes para suportar a vida humana, o clima atualmente sentido em algumas partes do norte de África começa tem vindo gradualmente a subir até ao sul da Europa.

Por isso, as fortes ondas de calor em Portugal, Espanha, sul de França, Itália, Grécia ou Turquia já não são propriamente surpreendentes.

Mas as altas temperaturas não se verificam exclusivamente nos lugares que a estatística aponta como tendo maior probabilidade de sofrer ondas de calor. Basta pensar, por exemplo, nos 49,6ºC registados no verão de 2021 na pequena vila de Lytton, no Canadá — uma temperatura que supera em mais de dois graus o recorde português de 47,3ºC, registado na Amareleja em 2003. “De um ponto de vista puramente estatístico, devia ter sido impossível”, escreveu recentemente o investigador da Universidade de Oxford Nicholas Leach, um dos autores de um estudo que procurou identificar as regiões do mundo em maior risco de sofrer ondas de calor estatisticamente implausíveis.

“Identificar estas ondas de calor anómalas é importante, não apenas porque as próprias ondas de calor são perigosas, mas porque os países tendem a preparar-se para enfrentar, em média, o nível do acontecimento mais extremo que está na memória coletiva. Uma onda de calor sem precedentes pode, por isso, motivar respostas políticas para reduzir o impacto de uma onda de calor”, aponta Leach, lembrando o exemplo da enorme onda de calor de 2003, na Europa, que terá causado entre 50 e 70 mil mortes em excesso.

“Embora tenha havido ondas de calor mais intensas depois, nenhuma delas resultou em tantas mortes, devido a planos de gestão implementados depois de 2003”, explica o investigador.

Segundo Nicholas Leach, os métodos científicos tradicionais procuram identificar as probabilidades de um fenómeno extremo acontecer num determinado lugar através de uma análise dos fenómenos que ocorreram nesse lugar no passado — o que significa que, na maioria das vezes, pode ser muito difícil antever a ocorrência de um fenómeno anómalo, que fuja às médias do passado e que resulte da combinação de uma miríade de fatores que podem não ser tidos em conta no cálculo da probabilidade.

Os investigadores começaram por olhar para os dados históricos, entre 1959 e 2021, para concluir que, durante este período, 31% da superfície terrestre foi afetada por uma onda de calor estatisticamente implausível — ou seja, por temperaturas que os modelos climáticos não apontavam como prováveis para aquela região.

Depois, os autores do estudo analisaram também um enorme conjunto de dados produzidos por modelos climáticos — na prática, várias simulações sucessivas do clima do planeta — para identificar lugares onde se verificavam fenómenos anómalos. As conclusões? Dezenas de regiões por todo o mundo onde os modelos de previsão não previram determinadas temperaturas extremas, mas, sobretudo, regiões onde apenas por acaso ainda não se verificaram essas temperaturas. Os principais exemplos são o Afeganistão, vários países da América central e as regiões orientais da Rússia.

“Ondas de calor estatisticamente implausíveis podem acontecer em qualquer lugar da Terra e temos de ter muito cuidado quando usamos o registo histórico de forma isolada para estimar a onda de calor ‘máxima’ possível”, avisa Nicholas Leach. “Os decisores políticos em todo o globo devem preparar-se para ondas de calor excecionais, que seriam consideradas implausíveis com base em registos atuais.”

Ao mesmo tempo, alerta o autor, “há um conjunto de regiões cujo registo histórico não é excecional e, por isso, é mais provável que seja ultrapassado”. Segundo Leach, “estas regiões tiveram sorte até agora, mas, em resultado, estão provavelmente menos bem preparadas para uma onda de calor sem precedentes no futuro próximo. É especialmente importante que estas regiões se preparem para ondas de calor mais intensas do que as que já experienciaram.”

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