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Votar está a dar cabo da democracia. Sim, leu bem

Em "Against Elections" ("Contra as Eleições"), o belga David van Reybrouck lança uma proposta, no mínimo, desafiante. Acabar com as eleições pode salvar a democracia. A alternativa? É bem antiga.

Uma votação a uma volta, por maioria simples (isto é, por um voto se ganha e por um voto se perde), tirou o Reino Unido da União Europeia (UE) numa quinta-feira de junho. No dia seguinte — “o Dia da Independência” para os impulsionadores do Brexit 48,1% dos britânicos acordaram para a realidade de que iriam deixar de ser membros da UE, vencidos numa consulta popular em que ambos os lados recorreram à desinformação e a táticas do medo. “Foi um ponto de viragem na História das democracias ocidentais. Nunca o destino de um país — de um continente inteiro, na verdade — foi decidido por tal golpe de machado, desferido por cidadãos desencantados e mal informados”, lamentou David van Reybrouck.

Van Reybrouck é um intelectual belga e autor de Tegen Verkiezingen, traduzido para o inglês Against Elections (Contra as Eleições). Em julho de 2016, no rescaldo do Brexit e quando alguns já adivinhavam uma vitória de Trump nas eleições de novembro, escreveu que “estes são tempos turbulentos” e potencialmente “explosivos”. Isto porque vivemos numa época em que “existe um grande interesse pela política mas pouca fé nos políticos e nas instituições”, o exato inverso do que existia há 50 anos, por exemplo — um agricultor e a sua mulher tinham pouco interesse na política mas uma confiança natural na democracia. Agora, “temos, em simultâneo, paixão e desconfiança“, escreve Reybrouck. Tipicamente, essa não é uma boa mistura — e Van Reybrouck explica porquê.

Os referendos como o que levou ao Brexit já têm levado a um grande debate sobre se estes podem ser perigosos para a democracia. Mas Reybrouck vai mais longe: muito mais longe. Para o belga, toda e qualquer eleição é um péssimo instrumento para nortear a vida democrática das sociedades — o belga diz que é quase uma “heresia perguntar se as eleições, no seu modelo atual, são uma forma obsoleta para converter a vontade coletiva dos povos em governos e políticas“. É quase uma “heresia”, mas é precisamente isso que o autor flamengo, de 45 anos, defende em Against Elections, cuja argumentação o britânico The Times considerou “muito persuasiva”.

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A obra do belga David van Reybrouck foi traduzida para inglês — “Against Elections”.

Alguns meses depois do referendo do Brexit, após uma longa campanha absolutamente visceral, Donald Trump até nem foi o mais votado entre os norte-americanos. Porém, no sistema eleitoral dos EUA, obteve mais votos no Colégio Eleitoral do que Hillary Clinton. Numa terça-feira de novembro, Trump venceu uma corrida à Casa Branca que se baseou mais num concurso de popularidade dos candidatos e telegenia do que num debate de ideias e propostas para o país. Foi mais um caso que ilustra na perfeição a tese central de Reybrouck: o sistema eleitoral que tomamos como garantido e inquestionável não é um garante da democracia, da liberdade e da proteção contra derivas autoritárias. As eleições estão, na realidade, por se terem tornado em teatros de manipulação e calculismo, a ameaçar a confiança dos cidadãos no processo democrático, argumenta o belga.

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Gosta-se da democracia, mas desconfia-se dela

A democracia é uma boa forma de governar? Sim, concordaram quase 92% dos inquiridos num estudo internacional que ouviu mais de 73 mil pessoas em 57 países (o World Values Survey). “A percentagem de população global que tem uma atitude positiva em relação ao conceito de democracia nunca foi tão grande como é hoje”, escreve David van Reybrouck logo no início do livro, lembrando que no final da Segunda Guerra Mundial havia apenas 12 democracias no mundo, com o resto a dividir-se entre governos fascistas, comunistas e colonialistas. “Nunca houve tantas democracias no mundo e nunca houve tantos apoiantes desta forma de governo”, diz Van Reybrouck.

Mas há estatísticas que nos lançam num aparente paradoxo. Segundo dados analisados pelo autor belga, em 1999 havia 33,3% de inquiridos nesta mega-sondagem a defender a escolha de um líder forte que não tivesse de incomodar-se com eleições ou com um parlamento. Na edição seguinte da sondagem, feita entre 2005 e 2008, as percentagem de pessoas que achariam isso boa ideia subiu para 38,1%. Já lá vão quase 10 anos, pelo que será interessante acompanhar a próxima sondagem que faça esta mesma pergunta — é legítimo suspeitar que a percentagem terá continuado a subir.

Outro dado interessante revelado na sondagem de 2005-2008 é que mais de metade (52,4%) disseram ter pouca ou nenhuma confiança no seu governo, mais de 60% disseram o mesmo sobre os seus parlamentos nacionais e uns impressionantes 72,8% mostraram ter muito pouca confiança nos partidos políticos, entidades basilares para a vida em democracia eleitoral como a conhecemos. “Ainda que uma certa dose de ceticismo seja uma componente essencial de uma cidadania crítica, é justo perguntar quão generalizada é que esta desconfiança pode ser e, também, quando é que um ceticismo saudável se transforma numa aversão efetiva”, pergunta o autor, a páginas tantas.

"Ainda que uma certa dose de ceticismo seja uma componente essencial de uma cidadania crítica, é justo perguntar quão generalizada é que esta desconfiança pode ser e, também, quando é que um ceticismo saudável se transforma numa aversão efetiva".
David Van Reybrouck, em "Against elections"

É comum falar-se numa desafetação dos cidadãos em relação à política, um desinteresse que se comprova, por exemplo, com as elevadas taxas de abstenção. Mas esse diagnóstico não convence o autor belga, que cita estudos feitos na Europa que demonstram que as pessoas têm, na realidade, mais interesse pela política do que no passado. “É certo que há uma grande parte da população que tem pouco interesse nas questões políticas, mas isso sempre aconteceu. Não houve qualquer declínio recente a esse respeito, na realidade estudos recentes mostram que as pessoas discutem mais sobre política com amigos, família e colegas, do que no passado”.

Mas isto não é, necessariamente, uma coisa boa. “Há sempre qualquer coisa de explosivo nas eras em que o interesse pela política sobe, ao mesmo tempo que a confiança nas instituições desce”, escreve o autor.

O que pensa sobre aquilo em que não pensou?

Na campanha do Brexit, um dos rostos pela saída, o ex-ministro Michael Gove, disse à população que não se devia dar ouvidos aos alertas dos especialistas (em temas como Economia) e que se devia votar naquilo que se acreditasse, lá no fundo, ser a coisa certa a fazer. Nos EUA, a população elegeu para Presidente um magnata que se recusou a apresentar uma simples declaração de rendimentos e património e que vive numa penthouse banhada a ouro em Nova Iorque mas, ao mesmo tempo, fez campanha a dizer que as “elites” estavam a esquecer-se dos cidadãos mais desfavorecidos.

David Van Reybrouck alerta que algo está mal com este quadro e que, a prazo, a coisa tem tudo para correr mal. Vejamos o caso do referendo britânico: “Pedimos às pessoas que nos digam o que pensam sem que se tenha assegurado que elas pensaram alguma coisa sobre o assunto — ainda que tenham sido bombardeadas com variadíssimas formas de manipulação nos meses anteriores à votação”.

Vote por isto. Ou vote por aquilo. Já está? OK, agora vamos contar-vos, a uns e aos outros, e tirar todo o tipo de conclusões imagináveis: votou assim por isto; votou assado por aquilo; votou assim mas só o fez porque achou que o outro lado ia ganhar facilmente; votou assado mas arrependeu-se na manhã seguinte; votou assim porque está zangado; votou assim porque vive em dificuldades; votou assado porque é um idiota; votou assim porque é contra a globalização, contra os imigrantes, contra o establishment, contra que chova ao fim de semana. A manipulação não termina no dia do voto.

Belgian writer David Van Reybrouck, poses on May 27, 2012 in Saint-Malo, western France, on the sideline of the 23rd edition of the literature festival 'Etonnants Voyageurs' (Travellers writers festival). AFP PHOTO / ALAIN JOCARD (Photo credit should read ALAIN JOCARD/AFP/GettyImages)

David Van Reybrouck, aqui fotografado em 2012, teme pelo futuro da democracia enquanto tomarmos como garantido que democracia é sinónimo de eleições. (ALAIN JOCARD/AFP/GettyImages)

“Síndrome de Fadiga Democrática” é a expressão usada por Van Reybrouck para descrever o terreno fértil em que o populismo tenderá a crescer, sobretudo na era das redes sociais, e em que a política terá cada vez menor capacidade para atrair o tipo certo de pessoas. Tudo isto está relacionado com um conceito que Van Reybrouck lamenta: “As palavras eleições e democracia são, hoje em dia, vistas como sinónimos. Alguém nos convenceu de que a única forma de escolher um representante é através de um voto inserido numa urna”. Será mesmo assim? Não conseguiremos pensar numa alternativa melhor?

Democracia = Eleições. What else?

Os direitos básicos e a forma prática como um deles deve concretizar-se

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“A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto”, pode ler-se na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Van Reybrouck pergunta: “Não é notável que a Declaração Universal dos Direitos do Homem contenha uma definição tão precisa de como a vontade popular tem de ser expressa? Por que razão é que um texto tão conciso, sobre direitos básicos, que tem menos de 2.000 palavras, presta uma atenção especial à execução prática de um desses direitos? É como se as pessoas que criaram a Declaração, em 1948, tenham olhado para o método específico como um direito básico, como se o procedimento, em si, fosse sagrado”.

David van Reybrouck estranha este enfoque nas eleições, legitimado até pela Carta Universal dos Direitos do Homem de 1948, que refere especificamente o voto como forma de garantir a democracia. “Há quase três mil anos que os povos têm experimentado variadas formas de democracia e só nos últimos dois séculos é que a prática foi, exclusivamente, eleições. Apesar disso, tomamos as eleições como o único expediente válido para organizar uma democracia”. O belga pergunta: curioso, não é?

Desde o momento em que os apoiantes das Revoluções Americana e Francesa propuseram as eleições como uma forma de aferir a vontade do povo, muito mudou: na altura não havia partidos políticos, entretanto foi introduzido o sufrágio universal, a sociedade civil organizada tornou-se mais sofisticada, o espaço público foi inundado por meios de comunicação social de índole comercial e, mais recentemente, as redes sociais “vieram dar voz aos clamores das pessoas” — sendo estas redes tudo menos sociais, já que Facebook e Twitter são tão ou mais comerciais do que a CNN e a Fox, “com a diferença que os donos das primeiras querem que veja e ouça e os donos das segundas querem que escreva e partilhe”.

SAN FRANCISCO - NOVEMBER 15: Facebook founder and CEO Mark Zuckerberg speaks during a special event announcing a new Facebook email messaging system at the St. Regis Hotel on November 15, 2010 in San Francisco, California. Facebook will launch a new messaging system aimed at enhancing it's social media product to its 500 million users. (Photo by Justin Sullivan/Getty Images)

As redes sociais são tudo menos sociais, diz o autor belga. São tão ou mais comerciais do que a CNN e a Fox, com a diferença de que os donos das últimas querem que se sente, ouça e veja e os donos das primeiras querem que escreva e partilhe. (Foto: Justin Sullivan/Getty Images)

Van Reybrouck defende que eleições parlamentares foram uma forma ótima de criar cidadãos e virar a página do absolutismo do Antigo Regime do século XVIII, mas as coisas mudaram muito desde então. Hoje, na opinião do autor de Against Elections, estas não são mais do que um mecanismo de perpetuação de uma aristocracia política que só se distingue da aristocracia tradicional por não estar (tão) associada à hereditariedade. É através das eleições que uma elite economicamente favorecida cria uma ilusão de livre-arbítrio nas sociedades e, assim, preserva o seu poder.

A situação atual assemelha-se mais à “pós-democracia” que foi descrita pelo sociólogo britânico Colin Crouch, em 2004, citado na obra de David van Reybrouck:

Ainda que as eleições certamente existam e tenham a capacidade de mudar governos, o debate público eleitoral é um espetáculo exiguamente controlado, orientado por equipas rivais de especialistas profissionais nas técnicas da persuasão e limitado à pequena gama de temas escolhidos por essas equipas. A generalidade dos cidadãos têm um papel passivo, dormente, até apático, não fazendo mais do que reagir a sinais que lhes são transmitidos. Por detrás do espetáculo que é o jogo eleitoral, a política é, na realidade, definida nos bastidores numa interação entre governos eleitos e elites que representam os interesses empresariais“.

A política é demasiado importante para ser deixada aos políticos

Against Elections lê-se numa penada, mas o diagnóstico é bem suportado por pesquisa e pontos de vista invulgares. Mas David Van Reybrouck não se fica pelo diagnóstico, por relembrar a História e por alertar para os riscos no horizonte: o belga deixa algumas propostas para promover a eficácia e a (verdadeira) legitimidade dos cargos públicos. Porque o problema não está na democracia, está nas eleições — a certa altura foram elas que tornaram a democracia possível mas hoje são um obstáculo.

"Onde é que os cidadãos têm, realmente, a possibilidade de obter a melhor informação, discutir diretamente uns com os outros e tomar decisões coletivas sobre o futuro? Onde é que os cidadãos têm uma oportunidade real de moldar o destino das suas sociedades? Não é na cabine de voto, tenho a certeza".
David Van Reybrouck, em "Against elections"

Existem formas muito melhores (e mais ajustadas aos dias de hoje) de deixar as pessoas falar do que um referendo ou eleições periódicas. Parte de um esquema alternativo pode ser o regresso ao princípio central da democracia ateniense, da Grécia Antiga: a escolha aleatória de cidadãos para serem representantes do povo. Foi o que foi feito em várias cidades-Estado do Renascimento, como Veneza e Florença, recorda David Van Reybrouck. E como o cinema norte-americano não se cansa de retratar, em muitos casos é assim que se faz Justiça, isto é, sorteando um conjunto de cidadãos que irão debruçar-se sobre um dado julgamento e irão produzir uma deliberação — é só uma questão de aplicar o mesmo princípio à escolha de líderes democráticos.

“Com a escolha aleatória, não se está a pedir a um grande número de pessoas para votarem sobre algo que apenas alguns compreendem, mas está-se a selecionar uma amostra aleatória da população e assegurar-se que essas pessoas se responsabilizam por obter um conhecimento aprofundado sobre as questões, de forma a tomar uma decisão fundamentada“, defende o autor belga de Against Elections.

Esquemas deste género já foram experimentados nos EUA, na Austrália e na Holanda. E David van Reybrouck aponta o caso da Irlanda, que em 2012 promoveu uma revisão de alguns artigos da Constituição e os participantes não eram apenas uma comissão de deputados a trabalharem à porta fechada. Havia uma mistura de políticos e cidadãos comuns: 33 políticos e 66 cidadãos, sorteados aleatoriamente mas assegurando uma diversidade de idades, género e origem graças ao trabalho prévio de uma agência independente. O resultado do trabalho deste grupo, que se reunia um fim de semana por mês (ao longo de mais de um ano) para ouvir especialistas de várias áreas, foi um conjunto de recomendações que foram ao parlamento e, depois, aí sim, foram votadas em referendo. Mas já foi uma forma inovadora de decidir algo, em democracia.

“Os cidadãos escolhidos aleatoriamente podem não ter o domínio da política que têm os políticos profissionais, mas contribuem com uma coisa absolutamente essencial para o processo democrático: liberdade. Afinal de contas, eles não precisam de ser eleitos ou reeleitos”, resume o autor.

Esta é a base da proposta de David van Reybrouck, que no livro sugere um sistema bi-camarário em que políticos e cidadãos trabalham em conjunto para tomar decisões. A crítica que o autor ouve mais frequentemente à sua proposta está relacionada com uma suposta “incompetência” das pessoas que viessem a formar este tipo de organismos plenários.

“É certo que um conjunto de representantes eleitos terá mais competências técnicas do que um grupo escolhido ao calhas. Mas qual é a utilidade de um parlamento cheio de advogados altamente qualificados se poucos deles sabem quanto custa uma broa de pão?”, pergunta o autor. Para David van Reybrouck, críticas como estas são comparáveis às críticas que se fizeram a quem, a certa altura, propôs que os plebeus também pudessem votar. E, depois, que a classe trabalhadora também pudesse votar. E, mais tarde, que as mulheres também pudessem votar.

David van Reybrouck pergunta: “Precisamos de democratizar a democracia. Do que é que estamos à espera?

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