Circula nas redes sociais um vídeo com mais de seis minutos em que Roberto Petrella, um ginecologista italiano reformado, faz declarações erradas e sem qualquer fundamento científico sobre a pandemia da Covid-19, num discurso confuso, incoerente e sem qualquer lógica. No arranque do vídeo, o médico começa por explicar que vai ler um documento e apela aos utilizadores que partilhem a publicação. Só que Roberto Petrella não tem qualquer especialização em saúde pública e, em 2019, foi expulso da Ordem dos Médicos de Teramo, em Itália, por se mostrar contra a vacinação obrigatória contra o vírus do papiloma humano (HPV).

A primeira alegação que faz é a de que “Covid-19 não é o nome do vírus”, mas é a sigla para “certificado de identificação da vacinação com inteligência artificial”, sendo o número 19 “o ano em que foi criado”. Trata-se, na tese do autor do vídeo, de um “plano internacional de controlo e redução de população” que foi “desenvolvido nas últimas décadas e lançado em 2020”. O médico afirma que o objetivo é exterminar 80% da população — o que, desde logo, não faz sentido uma vez que a percentagem de pessoas infetadas que morre é baixa. De acordo com a Universidade Johns Hopkins, o país com uma taxa de letalidade maior é o México (com 9,7% de mortes na população infetada com o novo coronavírus), seguido do Irão (com 5,2%), Reino Unido (com 3,6%) e Itália (com 3,5%) — a partir daí, todos os países têm uma taxa de letalidade inferior a 3%.

Uma das publicações com o vídeo do ginecologista reformado Roberto Petrella

De facto, o médico está certo quando afirma que Covid-19 não é o nome do vírus, porque é o nome da doença por ele provocada: é o nome em inglês para Corona Virus Disease, isto é, doença do coronavírus. E o número 19 é referente a 2019, o ano em que a China detetou os primeiros casos de infeção na cidade de Wuhan. Foi a Organização Mundial de Saúde (OMS) que, numa conferência de imprensa no dia 11 de fevereiro de 2020 anunciou o nome desta nova doença, depois de um fórum de dois dias que juntou cientistas, investigadores e peritos de saúde. “Agora, temos um nome para a doença. É Covid-19”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da organização, soletrando de seguida.

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[O vídeo da conferência de imprensa da OMS de 11 de fevereiro em que o diretor-geral anunciou o nome da doença do coronavírus, nomeadamente a partir do minuto 5:33]

O responsável explicou que a OMS seguiu diretrizes previamente desenvolvidas com a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) para “encontrar um nome que não referisse uma localização geográfica, um animal, um indivíduo ou grupo de pessoas, mas que também fosse pronunciável e relacionado à doença”. O diretor-geral explicava ainda as razões para se atribuir um nome à doença: para a designação serviria para “evitar o uso de outros nomes que podem ser imprecisos ou estigmatizantes”, mas também permitira criar “um formato padrão para usar em qualquer futuro surto de coronavírus”. Já a nomeação do vírus, não da doença, é determinada pelo Comité Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV) que no mesmo dia anunciou qual era: SARS-CoV-2, que é a sigla para Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave Coronavírus 2).

O vídeo continua com uma série de informações confusas. O autor não concretiza as ideias nem esclarece qual a ligação entre cada uma das suas afirmações, alternando entre um discurso ora sobre testes para detetar o SARS- CoV-2 ora sobre a vacina contra a Covid-19 — pelo que, independentemente da falsidade das suas afirmações, acaba por ser difícil seguir a sua linha de raciocínio.

Médico afirma que “o que reativa o vírus é o terreno imunitário enfraquecido pelas vacinas anteriores”

Ora, depois de argumentar que Covid-19 é um “plano internacional de controlo e redução de população”, Roberto Petrella dispara uma frase, sem a explicar exatamente: “O que reativa o vírus é o terreno imunitário enfraquecido pelas vacinas anteriores”. Só que “é exatamente ao contrário”, nas palavras de Pedro Madureira, imunologista e investigador do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3s). “Há dados científicos a mostrar mesmo isso”, garante ao Observador, dando o exemplo da vacina BCG que, descobriu-se recentemente, “pode trazer alguma proteção porque ativa o sistema imune de uma forma genérica”.

Pedro Madureira explica que “o sistema imune tem duas formas de atuar” ao receber uma vacina. Na primeira fase, mais “imediata”, há uma “ativação do glóbulos brancos”. Na segunda, “uma fase mais tardia”, vai “produzir os anticorpos que são específicos daquela molécula, daquele vírus”. Ora, na primeira fase, a vacina “vai, de uma forma geral, ativar todo o sistema imune” e não enfraquecê-lo, como o médico afirma no vídeo. “E, ao ficar ativado, vai ficar ativado contra a Covid-19, contra a gripe, etc”, explicou o imunologista. “Isso é o que se aponta para explicar que as crianças são muito mais resistentes ao SARS-CoV-2 que os adultos. Porque tomaram vacinas há pouco tempo e têm uma ativação generalizada do sistema imune”, acrescenta.

“Não façam testes porque os testes não são confiáveis”, afirma autor do vídeo

Depois, o autor do vídeo faz um apelo à população: “Não façam testes porque os testes não são confiáveis”. Na tese do médico, “nenhum dos testes é capaz de detetar com precisão o vírus SARS COV-2” e “detetam apenas uma infinidade de pequenos vírus inofensivos ou fragmentos celulares que naturalmente já fazem parte da nossa microbiota”.

Antes de mais, é preciso saber que há vários tipos de testes. Os serológicos, por exemplo, não detetam o vírus, mas sim “se a pessoa desenvolveu anticorpos em relação ao vírus”, explica Ricardo Mexia,  presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. “Esses testes, não os utilizamos como diagnósticos, mas como ferramentas para planeamento e para perceber qual a proporção de população que já foi afetada”, adianta ao Observador.

Podemos confiar nos números da DGS? Testes têm 98% de certeza — e os falsos positivos são muito raros

Depois, há mais dois tipos de testes capazes de identificar o vírus: o PCR e os testes de antigénio. O primeiro “é particularmente sensível”, mais do que o segundo, que é “melhor a identificar quem está infeccioso”. Ricardo Mexia admite que os testes PCR têm, por vezes, resultados que são falsos negativos, só que essa “questão tem a ver com a técnica de colheita” — por exemplo, se a zaragatoa não for introduzida de forma adequada, não estando, portanto, em causa a sua fiabilidade, como acusa o autor do vídeo.

De facto, há uma crítica feita aos testes PCR: “Identificam a presença do vírus ou, pelo menos, do fragmentos do vírus, mas não quer dizer que identifiquem vírus viáveis”. “Por isso é que às vezes há aquelas situações de pessoas que permanecem positivas durante algum tempo, apesar de não terem doença. O que se acredita é que essas pessoas já não têm capacidade de transmitir a doença, mas ainda há restos de material genético do vírus”, explica Ricardo Mexia.  O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) já tinha também dito ao Observador que estes testes têm uma sensibilidade de “aproximadamente 100%” e uma especificidade de “entre 91% e 100%”.

No entanto, o especialista Ricardo Mexia defende que, “através das diferentes características que cada um tem, faz sentido aplicá-los no controlo da pandemia”. “Os testes diagnósticos identificam material do vírus e têm sensibilidade e especificidade suficiente para serem utilizados. Como qualquer outro teste de diagnóstico, não são 100% sensíveis nem 100% específicos, mas toda a gente que utiliza os testes sabe dessas características e adota o procedimento em função dessa circunstâncias”, adianta ainda.

Médico alega que 90% das pessoas testadas dão positivo

De seguida, o médico alega que aparecem cada vez mais casos positivos entre as pessoas testadas e indica até uma percentagem: 90% das pessoas testadas dão positivo. O autor defende que as pessoas são “apenas portadores saudáveis desse vírus” porque “ter o vírus não significa necessariamente que alguém está doente”. “Mas, ainda assim, todos aparecerão positivo nos testes”, afirma. Na sua tese, “o objetivo deles” — diz, sem concretizar quem são “eles” — é fazer com que toda a população seja testada e “todos acreditarem que estão doentes porque ser positivo é prejudicial”.

Ora, esse valor de 90% está longe da realidade. Em Portugal, explica Ricardo Mexia, “a taxa de positividade nunca esteve acima dos 20% e agora andará em torno dos 15%” — e o cenário é idêntico em vários países. Nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa chegou a estar nos 21,9% em abril, mas agora encontra-se à volta dos 9%, segundo os dados da Universidade Johns Hopkins. Em Itália, a taxa é um pouco mais alta, de cerca de 28% — mesmo assim, muito longe dos 90% —, segundo dados da Proteção Civil italiana.

É nesse sentido, para que toda a população seja testada, que o autor alega que foram iniciados testes “com crianças em todo o mundo”. O autor acusa mesmo a comunicação social de não ter noticiado a 11 de maio que “França anunciou que testes em massa estavam a ser impostos em todas as escolas”. “Foram cerca de 700 mil testes por semana. Ninguém deu essa notícia”, afirma, explicando que uma vez que a criança seja testada, “toda a família e todos os contactos serão forçados a passar por uma triagem”.

Ora, o governo francês nunca aprovou qualquer medida que obrigasse os estudantes a fazerem testes à Covid-19: a única obrigação é a de as crianças com mais de 11 anos usarem máscara. Aliás, o Conselho Científico do Ministério da Saúde francês publicou orientações, a 24 de abril, onde recomendava exatamente o contrário: não recomenda a realização de testes em massa em estudantes porque isso “afetaria mais de 14 milhões de pessoas e teriam que ser realizados regularmente (a cada 5 a 7 dias) para detetar casos”. O governo francês, de facto, estipulou um objetivo em abril de fazer 700 mil testes por semana, mas à população em geral e não aos estudantes.

Médico afirma que cidades chinesas já estão a proibir pessoas que não tomem vacinas de sair de casa

Por fim, o médico alega que ninguém “poderá viajar sem vacina, ir ao cinema e no futuro não poderá nem sair de casa”. Roberto Petrella diz mesmo que “isto já está a acontecer em algumas cidades chinesas” e que Espanha, Argentina e todos os países latinos “já estão a passar por uma fase piloto” de implementação desta medida.

Ora, estas afirmações estão erradas pelo simples facto de não haver ainda uma vacina contra a Covid-19 que esteja a ser administrada à população. Já há quatro vacinas com eficácia no combate à doença, mas nenhuma delas está a ser distribuída de forma universal, pelo que não é possível que algum país esteja a obrigar a população a tomar vacina para poder sair de casa ou viajar.

Conclusão

A primeira alegação que faz é a de que “Covid-19 não é o nome do vírus”, mas é a sigla para “certificado de identificação da vacinação com inteligência artificial”. Covid-19 é o nome em inglês para Corona Virus Disease, isto é, doença do coronavírus. E o número 19 é referente a 2019, o ano em que a China detetou os primeiros casos de infeção na cidade de Wuhan. Foi Organização Mundial de Saúde (OMS) que, numa conferência de imprensa no dia 11 de fevereiro de 2020 anunciou o nome desta nova doença.

O médico afirma também que o “que reativa o vírus é o terreno imunitário enfraquecido pelas vacinas anteriores”. Mas o imunologista Pedro Madureira ouvido pelo Observador afirma que qualquer vacina “vai, de uma forma geral, ativar todo o sistema imune” e não enfraquecê-lo.

Depois, o autor do vídeo faz um apelo à população: “Não façam testes porque os testes não são confiáveis”. Ricardo Mexia,  presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, explica que os testes “têm sensibilidade e especificidade suficiente para serem utilizados” e “faz sentido aplicá-los no controlo da pandemia”.

O médico alega que aparecem cada vez mais casos positivos entre as pessoas testadas e indica até uma percentagem: 90% das pessoas testadas dão positivo. Só que, em Portugal, explica Ricardo Mexia, “a taxa de positividade nunca esteve acima dos 20% e agora andará em torno dos 15%” — e o cenário é idêntico em vários países.

Por fim, o médico alega que ninguém “poderá viajar sem vacina, ir ao cinema e no futuro não poderá nem sair de casa” e que já está a acontecer em algumas cidades chinesas”. Ora, estas afirmações estão erradas pelo simples facto de não haver ainda uma vacina contra a Covid-19 que esteja a ser administrada à população.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota 1: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts / DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.

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