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A silly season da música clássica é agora |
Em 1861, o britânico Brewer’s Dictionary of Phrase and Fable definiu como silly season o período estivo no qual parlamento e tribunais não estavam em funcionamento como um momento em que não havia acontecimentos de jeito. |
Também conhecido noutras línguas como cucumber time, la morte-saison ou serpiente de verano, este fenómeno acontece durante as férias de verão, quando as notícias irrelevantes e frívolas ganham maior destaque sobre o marasmo político geral. |
Ainda que existam acontecimentos urgentes e intensos durante os meses de verão (que em Portugal podem ir das competições desportivas à angustiante deflagração de incêndios florestais), a verdade é que este é um período em que o pouco que acontece a nível noticioso tende a ser previsível: a preparação do ano escolar, as rentrées dos partidos políticos, etc. |
Também na música clássica temos a nossa própria silly season, que curiosamente não acontece durante o verão. Na verdade, o verão é até dos momentos mais entusiasmantes para quem está atento às programações musicais, uma vez que é a estação dos festivais de música. Isto geralmente quer dizer novos palcos, diferentes formatos de concertos e a oportunidade de assistir a música ao vivo fora de portas e com o ritmo próprio de um festival, à razão de um ou mais concertos por dia para os aficionados. |
Não, a nossa silly season não é no verão. A nossa silly season é agora. Começa uma ou duas semanas antes do Natal e vai até à primeira semana de Janeiro. Grosso modo, faz o caminho do advento e termina depois do Dia de Reis. |
Tal como um calendário do advento, também a música clássica tem os seus bombons previsíveis a cada momento deste período, que passo a recapitular. |
Quando começam as férias escolares, é sabido que algum teatro tem de ter em cena um dos bailados de Tchaikovsky, de preferência o natalício Quebra-Nozes. Pode ser um bailado comme il faut, com música ao vivo tocada por uma orquestra, enriquecida em palco pela cenografia, figurinos e um corpo de dança que se preze. Ou pode ser (e quantas vezes não o é?) um bailado em que a música é disparada a partir de altifalantes para suporte em palco de uma qualquer companhia mercenária de nome pomposo mas de que nunca ninguém ouviu falar fora do circuito comercial, tal como a Royal Russian Ballet, como se houvesse ou alguma vez tivesse existido uma Real Companhia de Teatro na Rússia. Quanto muito, seria uma companhia Imperial, mas para isso teríamos de ter recuado mais de cem anos no tempo. |
Estas produções têm sido presença regular nos coliseus de Lisboa e Porto na época festiva em anos recentes. Se não estão programadas de momento, acredito que seja simplesmente devido à guerra na Ucrânia e ao expectável backlash que se pode esperar de um espectáculo que, através do nome altissonante da companhia, celebra a alta cultura russa. De resto, diga-se, Tchaikovsky não tem culpa nenhuma do que está a acontecer e também merecia ser tratado com mais respeito. |
Assim, não é com pena que vejo estes bailados desaparecer dos nossos cartazes, deixando espaço, quem sabe, para produções dos mesmos títulos feitas com maior elevação e consideração pelo público. |
Ou isso ou então estamos prontos para descer ainda mais um nível e levar com os mesmos bailados, mas em versões no gelo. Até me arrepio só de pensar. |
Continuando o nosso calendário do advento, são de esperar as infalíveis cantatas de Bach pertencentes ao Oratório de Natal, uma compilação que o compositor realizou nos anos 30 do século XVIII, reunindo música original e outra pré-existente da sua lavra para uma representação musical da natividade de Cristo e os seus episódios mais marcantes. Apesar de magnífica, esta música parece estar reservada exclusivamente para esta altura do ano, tornando-se previsível a sua reposição, parecendo que se trata apenas de cumprir calendário. |
Ainda no que diz respeito à música barroca alemã, há um só título que é capaz de brilhar mais do que Bach. Falo, é claro, d’O Messias de Händel, com o seu ultra famoso Coro de Aleluia. Uma vez mais, trata-se de música extraordinária que sofre por estar reservada, ad nauseam, para a quadra natalícia. |
Por fim, passado o Natal, entramos na zona estratégica do ano novo, em que as orquestras do mundo inteiro afiam as garras para se atirarem às infalíveis valsas, polcas e marchas vienenses dos compositores da dinastia Strauss. Venham de lá esses Belos Danúbios Azuis, essas marchas Radétzky e essas polcas Trisch-Trasch. |
A tradição do concerto de ano novo é um marco assinalável na música clássica, sem dúvida. Mas para ser tradição, tem de ser genuína. O único lugar onde essa tradição é verdadeira é na sala dourada do Musikverein, em Viena, com a Orquestra Filarmónica da cidade em palco. |
É esse o concerto que conhecemos do primeiro dia de Janeiro, com direito a transmissão em directo pela RTP e os também já tradicionais comentários de Júlio Isidro. De resto, este concerto é transmitido para mais de uma centena de países. É sem dúvida alguma o concerto mais bonito, mais famoso e mais importante na história da música clássica. Faz parte do imaginário de toda a gente e, para os sortudos que lá estão, é um acontecimento a que se vai uma vez na vida e nunca mais se esquece. |
O concerto de ano novo em Viena é isso tudo e é tudo menos silly season. |
Por conseguinte, todo os outros concertos, em todas as outras salas do mundo, onde se tocam as mesmas peças, não passam de imitações. Chega a dar-me vergonha alheia ver maestros a solicitar ao público que bata palmas de forma compassada na Marcha Radétzky como se estivessem em Viena. É o tipo de cringe que me faz arrepios. |
Se quisermos então juntar o pior dos dois mundos, só mesmo fazendo a combinação de André Rieu, patinagem no gelo e valsas de Strauss. Eis, in a nutshell, a silly season da música clássica, servida numa salva de prata, numa sala perto de si. |
Como evitar então cair neste marasmo artístico e estético? Como será possível desfrutar de “um espectáculo para toda a família”, como nos dizem, sem recorrer à pobreza da imitação ou da previsibilidade? |
Felizmente, os teatros, cinemas e espaços de artes performativas “sérios” do nosso país, dotados de programadores dignos desse título, não se vergam às expectativas previsíveis do público, optando antes por oferecer soluções alternativas, mais originais e assentes numa lógica movida pelo espírito da descoberta e da curiosidade, ao mesmo tempo indo ao encontro das temáticas deste período do ano. |
Veja-se, a título de exemplo, o ciclo de sessões de cinema natalícias do Cinema Batalha, no Porto. Uma lufada de ar fresco, para mais com salas cheias, uma atrás da outra, que vi com os meus olhos a semana passada. Não é preciso recorrer ao Grinch ou à saga Sozinho em Casa. É possível entreter sem recorrer ao entretenimento. |
Um outro exemplo feliz, infelizmente interrompido nos últimos anos, é a recuperação do Te Deum em São Roque, uma iniciativa que foi conduzida pelo maestro Jorge Matta através da Fundação Calouste Gulbenkian e com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. |
Esta iniciativa consistiu em recuperar o repertório que fora especificamente escrito para aquela igreja lisboeta, onde se celebrava uma missa de graças na noite de 31 de Dezembro de cada ano no tempo de D. João V. |
Ora, já se sabe que este rei não dava ponto sem nó e o que quer que fizesse, fazia-o com aparato. Assim, qualquer missa solene deveria ter não só o órgão a bombar, mas toda uma orquestra, coro, solistas e o que mais aprouvesse ao rei. Uma vez que a cada ano o rei queria um novo Te Deum, existem várias partituras escritas para estas noites que estavam adormecidas há séculos em arquivos e que o maestro recuperou, transcreveu e deu a ouvir em primeira audição moderna. Isto sim, é uma tradição local, original e relevante. Muito mais do que imitar as valsas de Viena. E, escusado será dizê-lo, a igreja de São Roque esteve cheia de cada vez que se fez um Te Deum de ano novo. |
No fim de contas, e para moral da história, a verdade é que as pessoas aderem quando há oferta de qualidade, feita com critério, que corresponde àquilo que procuram. Veja-se o Cinema Batalha ou a igreja de São Roque. |
Os concertos de ano novo de André Rieu esgotam e as pessoas saem de lá felizes? É certo que sim. Mas os restaurantes de fast food também estão invariavelmente cheios e parecem satisfazer os clientes. E não é certo que seria bom se mais pessoas tivessem vontade de procurar alimentos de melhor qualidade? Parece-me indiscutível, e o mesmo se aplica aos nossos padrões de participação e consumo cultural. |
Quando ouço alguém dizer que “mais vale ir a um concerto de André Rieu do que não ouvir música clássica de todo”, penso que equivale a dizer que “mais vale comer a folha de alface que vem dentro de um Big Mac do que não comer qualquer verdura”. |
Assim, meus caros, a última recomendação que faço este ano vem em sentido lato. Busquemos a qualidade que há nas coisas, sem ceder ao facilitismo ou à previsibilidade. |
Se uma família pretende um programa para o fim de semana, o primeiro resultado que surge numa pesquisa online poderá não ser a experiência mais edificante que há. É por isso que vale a pena pesquisar mais, pedir opiniões, subscrever aquelas newsletters dos cinemas independentes, seguir as páginas dos teatros nas redes sociais ou passar os olhos pelas páginas de cultura dos meios de comunicação. |
Aquilo que nos entra pelos ouvidos e olhos adentro não é diferente do que abrimos a boca para engolir. E já que nesta altura do ano fazemos tantos disparates com a comida, sempre podemos tentar equilibrar e não fazer o mesmo com os restantes sentidos. |
Votos de um feliz 2023 a todos. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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