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Uma indemnização choruda para sair da TAP, um convite para presidir à NAV e depois outro para ser secretária de Estado do Tesouro. Até à inevitável demissão e a uma crise política que também fez cair um peso pesado do Governo. Não uma crise política qualquer — a mais grave até agora de uma maioria absoluta que parece achar que tudo lhe é permitido, mas não é. |
Há pequenos detalhes que não valem nada mas podem valer imenso. O detalhe para que hoje vos chamo a atenção é para os sapatos que Alexandra Reis levou à cerimónia de tomada de posse, quando se tornou secretária de Estado do Tesouro. Ela podia ter passado discretamente pelo evento, até porque não parece ser alguém que dê muito nas vistas, não fossem as solas vermelhas dos seus sapatos. Só há umas solas vermelhas assim: as usadas por Christian Louboutin no seu calçado de luxo. Pelo que se viu nas imagens do evento o modelo usado por Alexandra Reis será o da fotografia, não propriamente um design daqueles que fez a fama de Louboutin, mas mesmo assim coisa para 645 euros. |
Confesso que nunca me interessei por sapatos e nem olharia para estas solas vermelhas não fossem elas serem sinais do deslumbramento de quem parece achar que tudo lhe é permitido. Um deslumbramento que não é só, não foi só, não parece continuar só a ser de Alexandra Reis, pelo contrário. É o deslumbramento de quem obteve há quase um ano uma maioria absoluta que não esperava nem merecia – sublinho o “nem merecia” – e que a partir daí revelou todos os seus limites políticos e éticos. Que são o limites do amiguismo, do quero, posso e mando, da ilusão de que se pode fazer tudo e “comer” tudo que no fim o povo não só perdoa como até premeia. |
João Miguel Tavares chamou a este estado de coisas O prognatismo mandibular do Governo de António Costa – “um governo de amigos, irmãos, filhos, maridos, mulheres e velhos colegas que se cruzam no Conselho de Ministros, nos reguladores, nas empresas estatais, nas câmaras municipais, nas direcções-gerais; sempre os mesmos, nomeando-se uns aos outros, saltando incansavelmente entre lugares na esfera do Estado” –, António Barreto escreveu que esta é, provavelmente, a pior crise, até porque “os nossos governantes consideram que, com votos e boas intenções, podem fazer o que quiserem”, Ângela Silva verificou os limites do poder desta geração que nos governa e que soma décadas de instalada partidarite à antiga – “Não é líquido que um Governo de ‘meninos de ouro’ do PS consiga reinventar-se” –, Henrique Monteiro não esteve com meias tintas e falou de A podridão: “pode discutir-se à exaustão o caso, olhá-lo de todos os ângulos, mesmo do da ex-secretária de Estado do Tesouro; em todos eles há mentira, sofreguidão, ganância e um desprezo total pelos cidadãos contribuintes”. |
Não creio que desta vez tudo passe impune, que sobre-venha o esquecimento até à próxima crise ou que ninguém se sobressalte até à próxima sondagem. Há alturas em que o que é demais, é demais, em que a tolerância indiferente é abalada, em que se passa “para o lado de lá”, o lado descendente do múnus da política. Suspeito que chegámos a esse ponto, tive disso o primeiro sinal na entrevista do “habituem-se”, falei sobre isso com a Helena Matos em dois Contra-corrente esta semana: Governo a desintegrar-se e o PM farto disto tudo e E agora: vamos ter novo governo ou mais do mesmo?, noto cada vez mais isso nos comentários que circulam nas redes. |
Mas talvez quem tenha acertado no tom, ou na alegoria, tenha sido o Pedro Jorge Castro, no programa E o vencedor é desta sexta-feira. “Está um cheiro esquisito, não está? Cheira a fim do cavaquismo”, disse ele a certa altura e eu tendo a concordar. E ainda mais concordo se pensar que o nosso primeiro-ministro parece querer insistir na desastrada fórmula de governo que criou depois de ter alcançado a maioria absoluta, ou seja, que está preparado para alterar apenas “membros do Governo que estão agora em falta”, como contaram no Observador a Mariana Lima Cunha e a Rita Tavares. |
Não sei se conseguirá, o Miguel Pinheiro também acredita que, com a saída de Pedro Nuno Santos, António Costa não perdeu apenas um ministro, viu os seus dias de poder absoluto acabarem. E não sei se conseguirá até porque não creio que vá ter descanso ou conhecer tréguas, pois a desastrada prestação de Fernando Medina esta sexta-feira, quando interrompeu abruptamente uma conferência de imprensa por lhe desagradarem algumas perguntas, apenas fará aumentar a pressão para termos todos os esclarecimentos – quem duvide que leia o que a Ana Sanlez escreveu sobre as explicações, dúvidas e irritações do ministro sobre o caso Alexandra Reis. |
Não tem sido assim nos últimos anos, nestes sete últimos longos anos onde tudo se foi permitindo a António Costa e aos seus, pelo que o mais natural era mesmo a percepção de impunidade que até autoriza sinais exteriores de riqueza como o dos sapatos com sola vermelha, um pequeno nada se pensarmos no que a agora ex-secretária de Estado recebeu ao sair da TAP. Mas um pequeno nada com um significado que ajuda a fatal percepção pública de uns comem tudo e que para os outros fica a inflação. Essa percepção, mais tarde ou mais cedo, acabará por ser fatal aos “meninos de ouro” do PS. |
Não há magia nenhuma no Kremlin, é muito pior do que isso |
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Às vezes é nos livros mais inesperados que se encontram as melhores explicações para os dias que passam e muito frequentemente, para não dizer quase sempre, é em romances que melhor se compreende como se vivia e pensava – ou como se vive e se pensa. Como não sou grande consumidor de romances nem sempre é para eles que olho, mesmo numa época de Festas como a que vivemos, mas por estes dias calhou-me começar a ler O Mago do Kremlin, de Giuliano da Empoli, até porque João Marques de Almeida o recomendara vivamente. Aconteceu-me o mesmo que lhe tinha acontecido a ele: devorei-o quase de um só fôlego com a surpresa de ir descobrindo, ou confirmando, que a realidade é muitas vezes a melhor ficção. E este livro parte da realidade – os bastidores do Kremlin nos últimos 20 anos –, os seus personagens são os protagonistas da história recente da Rússia com excepção de quem faz de narrador, aqui identificado como Nadim Baranov mas que sabemos ser uma espécie de alter ego de um personagem também bem real, o spin doctor que acompanhou Putin na sua ascensão ao estatuto de novo Czar, um tal Vladislav Surkov. Sem pretender revelar novos segredos sobre os caminhos que levaram a Rússia a tornar-se na potência agressiva que hoje enfrentamos, Giuliano da Empoli, que também foi assessor de um primeiro-ministro, só que do italiano Matteo Renzi, vai-nos levando a perceber o racional do que parece irracional, isto é, o porquê do sucesso de um líder autoritário e o porquê de na Rússia se poder ensaiar todo o tipo de regimes, da revolução proletária à mais selvagem economia de mercado, se se acabar sempre no mesmo lugar, em concreto com os oprichniki, os cães de guarda do Czar, no topo do poder e sem limites ao seu poder. Importa pouco que o czar se chame Nicolau II, Estaline ou agora Putin. |
Todo o livro é em torno deste implacável racional e há uma passagem onde isso é bem sintetizado. É quando Putin chama este assessor ao seu gabinete para lhe perguntar como está nas sondagens, a resposta é que está muito bem, 50 pontos à frente do principal rival, mas isso não satisfaz o senhor do Kremlin, para quem há um líder russo que continua a ser mais popular do ele: Estaline, “o paizinho”. E explica porquê: |
“Vocês, os intelectuais, estão convencidos de que as pessoas esqueceram. Segundo vós, elas já não se lembram das purgas, dos massacres. É por isso que continuam a publicar artigo atrás de artigo, livro atrás de livro, a propósito de 1937, dos gulags, das vítimas do estalinismo. Vocês pensam que Estaline é popular apesar dos massacres. Ora bem, estão enganados. Ele é popular por causa dos massacres. Porque sabia lidar com os ladrões e os traidores”. |
E explica porquê: quando havia um problema na União Soviética, a primeira preocupação de Estaline não era resolvê-lo, era encontrar um suposto sabotador que pudesse fuzilar, isto porque “a sabotagem é uma explicação muito mais convincente do que a ineficácia. Quando é descoberto, o culpado pode ser punido. Faz-se justiça, alguém pagou e a ordem é restabelecida. É esse o ponto fundamental”. |
Estas passagens e outros semelhantes ajudaram-me a perceber melhor como funciona a Rússia, como sempre funcionou a Rússia e como na Rússia um tchekista como Putin pode ter o sucesso que teve, e ainda tem. |
… e o Kremlin antes do mago (os 100 anos da URSS) |
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A Rádio Observador é a minha rádio, a que oiço sempre no carro, no computador, no telemóvel, em podcast, mas de vez em quando passo pelas outras rádios pois temos de saber o que andam a fazer. Ora acontece que passei, esta sexta-feira, dia 30, pela Antena Um, rádio pública, paga por todos nós, e num dos noticiários da manhã havia uma pequena peça sobre os 100 anos da constituição da URSS, que passavam nesse dia. Eu sabia da data, até fiz um Conversas à Quinta com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, sobre a efeméride – O centenário que quase ninguém celebra: o da URSS –, pelo que decidi ficar a ouvir. Para meu espanto só se recolhia a opinião de uma pessoa nessa pequena peça jornalística, e não uma pessoa qualquer: o historiador Manuel Loff. Tudo estaria certo não se desse a circunstância de se tratar de alguém próximo do PCP (foi candidato independente da CDU nas eleições legislativas) e de faltar qualquer balanço crítico sobre uma das experiências mais trágicas do século XX. Pelo contrário, ele lembrou-se de destacar o facto de a Rússia soviética ter sido o primeiro país a despenalizar o aborto e a homossexualidade mas omitiu que, sensivelmente dez anos depois, com Estaline, ambos voltaram a ser criminalizados. |
Não creio que muitos tenham dado pela notícia da “rádio pública”, mas para esses e para os demais recomendo que ao menos passem os olhos pelo texto de Jorge Almeida Fernandes no Público, A URSS nasceu há 100 anos, onde se recorda, por exemplo, que: |
A colectivização agrária dos anos 1930 foi um erro e um fracasso, escreveu Pasternak, no Doutor Jivago. “Para mascarar o fracasso foi necessário recorrer a todos os meios de intimidação possíveis para retirar às pessoas o hábito de pensar, para as forçar continuamente a ver o que não existia e a provar o contrário da evidência.” É outra síntese possível dos 70 anos do comunismo russo. |
Como julgo que continuamos a precisar de perceber o que foi o logro do comunismo, tal como necessitamos de conhecer o Holocausto e tantos outros dramas humanos do nosso passado recente, deixo-vos a seguir algumas referências a livros que ajudam a perceber a URSS, uma selecção naturalmente muito pontual pois a bibliografia é imensa: |
- De Orlando Figes, um historiador notável que recorrer com grande mestria a testemunhos pessoais, recomendo A Tragédia de um Povo – A Revolução Russa (1891 – 1924), sobre os primeiros anos do mundo soviético, e Sussurros: A vida privada na Rússia de Stalin, um relato impressionante de como era o dia a dia (havia uma edição portuguesa da Aletheia que julgo estar esgotada).
- Um dia na vida de Ivan Denissovitch talvez não seja a opus magnum de Aleksandr Soljenítsin mas é um relato que nos introduz à vida no Gulag e também foi, na opinião de Rui Ramos (no nosso podcast O Resto é História), um dos dois grandes livros que mudaram o século XX.
- Para não me alongar muito sugiro apenas mais outro romance: Os Filhos da Rua Arbat, de Anatoli Ribakov, um título já editado em português mas infelizmente esgotado, só possível de encontrar em alfarrabistas. Poucas obras retratarão tão bem a expectativa, a desilusão e depois o terror no quadro da Revolução de Outubro e da tal URSS.
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Bento XVI, Linda de Suza, António Mega Ferreira, Pelé: RIP |
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Comenta-se às vezes nas redações que na última semana do ano, por regra um tempo com poucas notícias, há sempre alguém que morre para que os noticiários tenham tema. Talvez seja da época do ano, talvez seja só um daqueles mitos que circulam entre os jornalistas, mas este ano a última semana do ano ficou tragicamente assinalada pelo desaparecimento de muitas figuras de destaque, sendo que entre todas quatro se destacam: Bento XVI, Linda de Suza, António Mega Ferreira, Pelé. |
Não escondo que a que mais me tocou foi a de Bento XVI, o Papa emérito, um homem que mudou mais a Igreja do que se pensa e que, até na morte, foi corajoso. Falo disso no meu texto – Bento XVI escolheu uma morte digna, e essa foi a sua última mensagem de Fé –, mas também vos recomendo o belo perfil que o João Francisco Gomes publicou no Observador – Bento XVI, o teólogo rebelde que transformou a Igreja –, assim como o texto muito pertinente de Paulo Rangel no Público – O Papa que aboliu a monarquia no Vaticano. |
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Sobre as mortes de António Mega Ferreira e Pelé foram publicados inúmeros textos, mas sobre Linda de Suza houve como que uma passagem para segundo plano. Com uma excepção, que quero aqui destacar: a da crónica de Susana Peralta no Público, Uma portuguesa deixou assim seu Portugal. A morte da cantora coincidiu com a morte de uma tia da Susana, também ela ex-emigrante, o que lhe suscita uma reflexão bem interessante. Deixo-vos aqui as palavras com que remata essa sua coluna: |
Nem Linda de Suza, nem os emigrantes que ela cantou são pequeninos. É mesmo provável que tenham sido os melhores da sua geração, que tiveram a coragem de fugir da pobreza, num país que não lhes dava voz nem oportunidades e enviava os seus filhos homens para uma guerra sangrenta além-fronteiras. A pequenez é outra, e muito mais profunda. Nas palavras da escritora Maria João Lehning, portuguesa residente em França: “Tudo o que cheira a emigração cheira a pobreza. Cheira a ridículo. Como se Portugal quisesse esconder as suas traseiras, as traseiras do prédio. A emigração é o retrato da pobreza do país e do seu analfabetismo.” |
Auschwitz-Birkenau, podia lá ser outro lugar? |
Se me dissessem para sugerir um lugar que não se pode deixar de visitar antes de morrer eu talvez sugerisse o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Poucas vezes na vida experimentei sensações mais intensas, e mais dolorosas, do que quando o visitei. Por isso quis lembrá-lo aqui hoje pois a visita a este campo foi um dos momentos mais fortes do pontificado de Bento XVI. Não por ter sido o primeiro Papa a lá ir, João Paulo II já lá tinha estado, mas ele era polaco. Joseph Ratzinger era alemão – e por isso não esteve em Auschwitz apenas como Papa, esteve lá assumindo-se como alemão e falando como alemão, em alemão, e pedindo perdão também como alemão e n~ao apenas como católico. |
As suas palavras não foram logo bem entendidas pela imprensa, sempre desconfiada, mas depois foram largamente saudadas pela comunidade judaica. Lembro-me que na altura houve uma frase que te tocou especialmente, até por saber que Bento XVI crescera numa família profundamente católica que detestava os nazis. Foi esta: “Ao tentarem destruir Israel, com a Shoah, esses [criminosos] desejavam em última análise destruir as raízes da fé cristã e substituí-la pela fé na sua própria invenção: a fé no poder dos homens, a fé no governo dos poderosos”. Não há de facto nada mais perigoso e mais destrutivo do que a fé ilimitada no poder dos homens. |
Também por isso foi significativo que tanto em Auschwitz como depois no Yad Vashem, o museu do Holocausto de Jerusalém, Bento XVI tenha escolhido citar passagens da Bíblia que são comuns à Torá. Nomeadamente uma que recorda a unicidade de cada vida humana, no fundo a unicidade de cada vítima, algo que tanto no Yad Vashem como em Auschwitz se procura mostrar dando um nome a todos os que foram mortos — um nome, não apenas um número, se possível também um rosto. Rostos como estes que tanto me impressionaram nessa minha já longínqua visita ao maior dos campos de extermínio. Daí a escolha da imagem desta semana. |
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Desejo a todos um Bom 2023. Será difícil, mas espero que seja possível. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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