Quando as Doce começaram a alcançar sucesso, Tozé Brito, um dos produtores da banda feminina, foi contactado por Linda de Suza (que morreu esta quqarta-feira aos 74 anos). Estávamos no princípio dos anos 80. O músico e produtor português meteu-se num avião e rumou a Paris para ajudar Linda de Suza a compor algumas das canções do novo disco que a artista estava a preparar. “Fiquei na casa dela, onde já havia um quarto para mim, e passámos duas semanas a trabalhar. Uma das canções que escrevi para ela foi a ‘Chuva Chuvinha’”, recorda o patrão da Universal.
Foi com essa canção que Linda de Suza regressou ao seu país a convite de Júlio Isidro, para participar no famoso programa “Passeio dos Alegres”. “Aparecia em palco debaixo de um guarda-chuva. Na altura já era uma espécie de embaixadora da música popular portuguesa em França”, conta o apresentador de televisão, lembrando também o convite feito depois para participar no Festival da Canção. “Não como participante, mas como convidada.”
Por esta altura, Linda de Suza já tinha uma carreira de sucesso na música. Mas o êxito alcançado fora de portas era olhado de soslaio em Portugal. Desses tempos em que participou em vários programas de Júlio Isidro — também ele um embaixador da música que se fazia em Portugal –, pouco ou nada existe nos arquivos da RTP. “Desapareceu tudo, resta-me uma foto dessa noite no ‘Passeio dos Alegres’”, conta Júlio Isidro, para quem a cantora foi, infelizmente, uma “vítima dos malefícios do sucesso”.
[“Chuva Chuvinha”, de Linda de Suza:]
“Foi uma pessoa que, partindo de um país padrasto para viver uma vida nova, conseguiu, em termos artísticos, alcançar sucesso nacional e internacional. A nível interno, em Portugal, havia uma certa inveja. Foi sempre carimbada de pirosa. Mas ela valia mais do que esse julgamento. Creio que não soube gerir com resistência a própria vida. Não é fácil combater a maledicência. Foi uma vencedora vencida pela vida.”
Linda de Suza morreu esta quarta-feira, aos 74 anos, segundo avançou o agente da cantora. “É com muita dor que eu e o seu filho, João Lança, informamos que a Linda de Suza morreu esta manhã, às 10h”, lê-se no comunicado assinado por Fabien Lecoeuvre e citado pela agência de notícias francesa AFP. A cantora deu entrada de manhã no hospital de Gisors, a 50 quilómetros a norte de Paris, com Covid-19. Acabou por não resistir.
“Self made woman”
Nascida no Alentejo, em Beja, Teolinda Joaquina de Sousa Lança — assim se chamava a cantora — partiu para França na década de 1970 em busca de uma vida melhor, com um filho nos braços. De empregada de limpeza nos primeiros tempos, Linda de Suza passou a cantar no café Chez Loisette, em Saint-Ouen, tendo sido descoberta pelo compositor André Pascal (1932-2001) que a apresentou, posteriormente, ao compositor Alex Alstone (1903-1982). E foi com a canção “Um Português” – que ficaria conhecida como “Mala de Cartão”, graças a uma frase da letra – que se tornou um símbolo da emigração portuguesa em França.
“Não estabeleço comparações com a vida do Tony Carreira, mas tal como outros artistas portugueses em França, começou a cantar em espaços pequenos, tendo atingido depois um enorme sucesso nas rádios francesas”, conta Júlio Isidro. Tozé Brito, que passou duas semanas em casa da artista a produzir canções, recorda como era andar com Linda de Suza na rua. “Ela era uma estrela em França e na rua toda a gente lhe pedia autógrafos. Era gigante, tinha vendido muitos discos e estava numa fase muito boa da carreira. Não era uma mulher objeto, frágil ou insegura, sabia perfeitamente o que queria fazer.”
[“Um Português”, de Linda de Suza:]
Tozé Brito e Linda de Suza já se conheciam. O seu primeiro disco foi lançado em Portugal pela Polygram, editora onde Brito desempenhou funções de AR (Artistas e Repertório). “A certa altura veio cá fazer alguns espetáculos e acabámos por nos conhecer pessoalmente. Eu estava nos Gemini e andava a gravar com o Paulo de Carvalho. Fiquei muito surpreendido quando me convidou para escrever para ela.” Em Paris, Tozé Brito foi recebido pelo filho e companheiro de Linda de Suza numa casa nos arredores de Paris. “Uma boa casa, enorme, cheia de jardins e um escritório onde trabalhávamos todas as tardes.”
Embora não tivesse qualquer formação musical, Linda de Suza acompanhou todas as fases do processo de construção do disco. Escreveu as letras sem interferência do produtor português. “Na parte musical, precisava de alguém. Senti que era uma pessoa muito determinada, sabia o que queria, era uma self made woman”, diz Tozé Brito. “Não foi por acaso que emigrou para França, destacando-se imenso na comunidade portuguesa, como, por exemplo, o Roberto Leal se destacou quando foi para o Brasil.”
Tozé Brito preferia escrever à noite, mas acabaram por acordar que o trabalho seria sempre feito durante a tarde. “De manhã descia para a cozinha e tomava o pequeno-almoço. Muitas vezes ela já não estava, e à noite jantávamos todos juntos, eu, ela, o companheiro e o filho. Embora não fosse o tipo de música que ouvia em casa, escrevi e trabalhámos juntos com enorme honra e prazer. Deixava as canções feitas e depois ela ia para estúdio gravar com os seus músicos.”
Uma limousine para Toy
Além de um símbolo da comunidade portuguesa, Linda de Suza tornou-se também um grande sucesso junto do público francês. O programa “Rendez-Vous du Dimanche”, de Michel Drucker, onde interpretou a canção “Un Portugais” — cujas vendas do single atingiram o Disco de Platina em França em 1979 –, foi visto por 20 milhões de franceses.
“No início da sua carreira já havia cerca de um milhão de portugueses em França, mas não havia cantores de origem portuguesa. Havia cantores de origem espanhola, italiana, mas não portuguesa. Ela foi o rosto visível da imigração portuguesa em França, e também da imigração feminina”, explicou à Lusa Vítor Pereira, investigador principal no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.
Criada num orfanato português entre os 5 e os 11 anos, dificilmente se poderia prever a fulgurante carreira que viria a desenhar: entre 1979 e 1991, lançou 11 álbuns e atuou nalgumas das mais emblemáticas salas parisienses, como o Olympia, um concerto para o qual convidou a mãe. A atuação acabaria por dar origem a um álbum ao vivo.
Vítima de várias fraudes, a sua queda foi altamente mediatizada: em 2015, afirmou receber apenas 400 euros de reforma. Antes disso, o palco era dela, e Toy teve oportunidade de testemunhar isso, quando foi convidado a atuar em Londres ao seu lado. O cartaz do concerto, numa sala com lugares sentados, tinha Linda de Suza, Toy e Lilia Kramer. “Na altura estava numa carreira ainda fresca e ela já tinha passado o pico do sucesso. Mesmo assim, ficamos hospedados num hotel de cinco estrelas e no dia do espetáculo fomos de limousine para o concerto”, recordou Toy.
